Machado de Assis - Teses e dissertações



A SEGUNDA VIDA DE BRÁS CUBAS



Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Programa de Pós-Graduação em Filosofia



A SEGUNDA VIDA DE BRÁS CUBAS: Machado de Assis e o problema da autonomia da obra de arte



Patrick Estellita Cavalcanti Pessoa



Rio de Janeiro 2007


A SEGUNDA VIDA DE BRÁS CUBAS: Machado de Assis e o problema da autonomia da obra de arte


Patrick Estellita Cavalcanti Pessoa


Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ como parte dos requisitos à obtenção do grau de Doutor em Filosofia.


Orientador: Prof. Dr. Gilvan Luiz Fogel Co-orientador: Prof. Dr. Christoph Menke


Rio de Janeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais 2007



A SEGUNDA VIDA DE BRÁS CUBAS: Machado de Assis e o problema da autonomia da obra de arte



Patrick Estellita Cavalcanti Pessoa


Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor.


Comissão examinadora:


Prof. Dr. Gilvan Luiz Fogel – Orientador (PPGF – UFRJ)

Prof. Dr. Fernando Augusto da Rocha Rodrigues (PPGF – UFRJ)

Prof. Dr. Alberto Pucheu (Departamento de Letras – UFRJ)

Prof. Dr. Bernardo Barros Coelho de Oliveira (UFES)

Profa. Dra. Rosa Maria Dias (UERJ)


Pessoa, Patrick Estellita Cavalcanti

A segunda vida de Brás Cubas: Machado de Assis e o problema de autonomia da obra de arte / Patrick Estellita Cavalcanti Pessoa. Rio de Janeiro, 2007.

x, 215 f.

Tese (Doutorado em Filosofia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPGF-IFCS, 2007.

Orientador: Gilvan Luiz Fogel

1.Estética. 2. Fenomenologia. 3. Melancolia. I.Fogel, Gilvan Luiz (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. PPGF-IFCS. III. Título.

Para a Anita e o Bernardo

Agradecimentos

À CAPES, pelas bolsas concedidas no Brasil e no exterior, sem as quais este trabalho não teria sido possível.

Ao meu orientador, o Prof. Dr. Gilvan Fogel, cuja importância na minha formação não pode ser superestimada.

Ao meu co-orientador por dois semestres na Universidade de Potsdam, Christoph Menke, cujas questões e sugestões foram preciosas para o desenvolvimento deste trabalho.

Aos amigos Pedro Caldas, Pedro Amaral, Alexandre Costa, Tomás Prado e Vladimir Vieira, pelas sempre fecundas discussões, sem as quais este trabalho seria muito menos vital.

A Ana Flaksman, Thiago e Glória Arruda, Marcus Reis e Júlia Eizirik pela nossa leitura conjunta do Zaratustra, cuja seriedade gaiata contaminou o estilo deste trabalho.

A todos os colegas de percurso na filosofia cujas pegadas são discerníveis neste trabalho.

A Marússia, Glória, Ivete, Branca, Maria Celina e Maria Elvira, alunas do grupo de segunda-feira, por gostarem tanto quanto eu de saborear as palavras de Machado de Assis.

A John e Sandra, Pedro e Márcia, João e Isabel, Marcinha, Ângela, Lúcia, Celina e Branca, alunos do grupo de quinta-feira, pela atenção e as provocações, indispensáveis para fazer também da interpretação uma arte.

Aos meus alunos do IFCS e do Colégio São Vicente de Paulo, pelo questionamento constante.

À Paula Kleve, pela escuta.

A Hylma e Dudu Estellita, pela editoração final do texto.

À Zilda, pelo suporte técnico e afetivo ao longo dos últimos 20 anos.

À minha família, por tudo.

À Anita, por existir.

Ao Bernardo, cujo nascimento foi o impulso necessário para que também este trabalho pudesse nascer.

Resumo

“A obra em si mesma é tudo.” Partindo dessa provocação de Brás Cubas, que implica a idéia de que a autonomia da obra de arte é irrevogável, este trabalho expõe uma leitura das Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, que pretende não apenas trazer à luz os possíveis sentidos deste romance, mas simultaneamente apresentar uma reflexão sobre os fundamentos para uma hermenêutica filosófica da obra de arte (literária).

Qual é a contribuição que filosofia e literatura podem trazer uma à outra sem que a literatura seja convertida em mera ilustração de conceitos filosóficos já existentes? De que maneira a mediação da filosofia pode servir à experiência estética de uma obra como a machadiana? De que modo essa obra pode contribuir para a especulação filosófica contemporânea? Essas são as questões abordadas neste trabalho, que mostra como o respeito à autonomia da obra de arte acaba por conduzir o intérprete à descoberta de sua soberania.

Abstract

The work in itself is everything. Beginning with this Brás Cubas' provocation that implies the autonomy of the work of art is irrevocable -this text not only intends to shed light to the possible meanings of Confessions of a small-time winner, by Machado de Assis, but also reflects upon the fundamentals of philosophical hermeneutics in literary work.

How can philosophy and literature contribute to each other without literature being converted into mere exemplification of pre-existing philosophical concepts? In what ways the mediation of philosophy can serve the aesthetic experience of a work of art such as Machado de Assis'? How can a work of art contribute to contemporary philosophical thought? This text addresses those issues, showing how the respect to the autonomy of the work of art conducts the interpreter to the discovery of its sovereignity.

Sumário

Introdução. O problema da autonomia da obra de arte............................................ 01

Capítulo 1. Fundamentos para uma hermenêutica das Memórias póstumas........... 22

1.1. O problema da interpretação.................................................................................... 22

1.2. O problema da autoria das Memórias póstumas...................................................... 24

1.3. O problema da exemplaridade das Memórias póstumas......................................... 31

1.4. O problema da autonomia das Memórias póstumas................................................ 32

1.5. O problema do círculo hermenêutico nas Memórias póstumas............................... 35

1.6. O problema da arbitrariedade do ponto de partida hermenêutico........................... 43

1.7. O problema da fenomenologia referido às Memórias póstumas............................. 44

1.8. Brás Cubas e a fenomenologia como patologia....................................................... 48

Capítulo 2.Anatomia de um defunto autor................................................................. 52

2.1. O realismo fenomenológico de Machado de Assis.................................................. 52

2.2. O defunto autor e a posição do narrador nas Memórias póstumas.......................... 55

2.3. Antes da melancolia: o nascimento de Brás Cubas................................................. 61

2.4. A consciência boquiaberta: a origem de Brás Cubas............................................... 72

2.5. Na Tijuca: o desabotoar da flor amarela.................................................................. 81

2.6. Eugênia e a borboleta preta..................................................................................... 88

2.7. Marcela e a sege...................................................................................................... 97

2.8. Virgília e a alucinação........................................................................................... 105

2.9. Que (não) escapou a Aristóteles............................................................................ 108

2.10. Da volúpia do aborrecimento ao desdém dos finados......................................... 111

Capítulo 3. A tragédia de Brás Cubas........................................................................120

3.1. Entre Brás Cubas e Brás Cubas: a eterna contradição humana............................ 120

3.2. Entre o drama e a narração: o que não escapou a Brás Cubas.............................. 123

3.3. Entre a poética da tragédia e a filosofia do trágico............................................... 128

3.4.Aestrutura das Memórias póstumas deBrás Cubas................................................ 132

3.5. Brás Cubas como herói trágico............................................................................... 134

3.6. Brás Cubas como tragediógrafo............................................................................. 140

3.7. Brás Cubas como porta-voz da Natureza................................................................ 148

3.8. O sentido retórico-cosmológico do delírio de Brás Cubas...................................... 151

3.9.Ocrepúsculodos ídolos..........................................................................................159

3.10.Atragédia donarrador........................................................................................... 174

3.11. O saldo de Brás Cubas.......................................................................................... 197

Epílogo. Da autonomia à soberania da obra de arte............................................... 202

Bibliografia.................................................................................................................. 212

“Tornara-me objetivo para mim mesmo. Mas não podia distinguir se com isso me achara, ou me perdera.”

Barão de Teive

“O pensamento é profundo por se aprofundar no seu objeto, e não pela profundidade com que é capaz de reduzi-lo a uma outra coisa.”

Theodor Adorno

“há coisas de sobra que não se dizem há coisas que sobram no que se diz nossa miséria é uma alegria de

palavras?” Marcos Siscar

INTRODUÇÃO

O problema da autonomia da obra de arte

“Toda interpretação filosófica deveria ser ao

mesmo tempo uma filosofia da interpretação.”

Friedrich Schlegel1

O primeiro problema com que se confronta aquele que propõe um casamento entre a filosofia e a literatura é a dificuldade de, ao efetuá-lo, não deixar que o primeiro beijo oficial dos recém-casados seja também a sentença de morte de um amor que, se houvesse permanecido clandestino, provavelmente teria durado para sempre. Com o intuito de resolver esse problema, as universidades modernas tendem a adotar a mais antiga das táticas: simplesmente proíbem essa união, e exigem de seus filhos, como outrora os patriarcas das famílias abastadas, que se casem apenas com seus iguais. A tática das universidades modernas, entretanto, é antes uma fuga do que uma resolução do problema, já que o tabu que impõem aos especialistas em filosofia e em literatura não raro serve apenas para fomentar o seu desejo. Qual de nós nunca deparou com um professor universitário que, na penumbra de sua alcova (ou sala de aula), não se comprouvesse em louvar entusiasticamente as prendas de sua amante?

A ambigüidade que marca a relação entre filosofia e literatura, entre os amantes e esposos de uma e outra, está na base deste trabalho, cuja proposta é exibir sob a luz hospitalar de um estudo acadêmico o que, há muito, tanto os filósofos quanto os críticos literários oficiais costumam fazer apenas na clandestinidade. O meu pressuposto é o de que amantes podem ser esposas, e esposas devem ser amantes. Se a verdade é mesmo uma mulher, essa mulher, como no admirável filme de Marco Vicário, precisa ser

1 SCHLEGEL, F. “Athenäums-Fragment, n. 44”. In: Kritische und theoretische Schriften. Stuttgart: Reclam, 2002, p. 81: “Jede philosophische Rezension sollte zugleich Philosophie der Rezensionen sein.”

necessariamente uma “esposamante”.2 Não será um mero preconceito achar que a seriedade exigida pelas relações mais longevas – aquelas que os acadêmicos conservadoramente tanto prezam, com o orgulho suspeito dos monogâmicos de carteirinha – exclui o deleite dos prazeres proibidos? E não será igualmente preconceituoso julgar que os prazeres mais intensos dependem necessariamente da irresponsabilidade e da fugacidade das relações não-oficiais?

A própria formulação dessas questões aponta para o problema da especialização, que, se já foi em alguma medida superado no âmbito dos casamentos modernos, de forma alguma o foi na esfera da produção acadêmica. A minha experiência pessoal de doutorando da faculdade de filosofia ocupado com uma tese sobre Machado de Assis, por exemplo, me confrontou diversas vezes com o olhar sardônico dos colegas filósofos, que relutam em admitir que se possa escrever uma tese que faça jus à profundidade da filosofia sobre um escritor de ficção que não tenha o seu lugar no cânone de nossas faculdades de filosofia, como é o caso dos escritores-filósofos franceses. Quanto aos especialistas em literatura, tendem a considerar por princípio que um “filósofo” é incapaz daquelas análises comparativas da história da arte que julgam fundamentais para a análise de cada obra singular, e que parece depender de uma espécie de erudição que seria exclusiva dos alunos e professores das faculdades de letras. E assim, se é que o leitor me perdoa uma confissão tão pessoal, o meu trabalho fica de antemão condenado a ocupar uma espécie de lugar-nenhum entre a filosofia e a literatura, estigmatizado pelo risco de, ao querer uni-las, acabar por não ser nem filosofia nem crítica literária, “nem carne nem peixe”.3

Ainda que se suponha, como eu de bom grado suporia aqui, que essa minha interpretação dos olhares dos colegas da filosofia e da letras não passa de paranóia, ou mesmo daquele narcisismo típico dos que se julgam perseguidos, e portanto originais, sem de forma alguma o serem, já que se poderia mencionar a existência de diversas obras interdisciplinares filosófico-literárias ou literário-filosóficas, o fato é que a estrutura universitária me confronta cotidianamente com uma questão que dificilmente afloraria em uma faculdade de filosofia quando alguém estuda Parmênides ou Platão, Kant ou Heidegger; ou em uma faculdade de letras quando alguém estuda Clarice

2 Cf. VICARIO, M. Esposamante (Mogliamante). Itália, 1977, 106 minutos. 3 HEGEL, G. A fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 59: “Assim, hoje, um filosofar natural que se julga bom demais para o conceito, e devido à falta de conceito se tem em conta de um pensar intuitivo e poético, lança no mercado combinações caprichosas de uma força de imaginação somente desorganizada por meio do pensamento – imagens que não são carne nem peixe, que nem são poesia nem filosofia.”

Lispector ou Borges, Fernando Pessoa ou o próprio Machado de Assis. Essa questão, normalmente silenciada por razões que a própria razão desconhece, aí naturalmente excluída a razão corporativista dos acadêmicos, tem a mais singela das formulações. Ela pergunta simplesmente “por quê?”. Por que, perguntam-me as sobrancelhas arqueadas dos filósofos, estudar Machado de Assis na faculdade de filosofia? Por que, perguntam-me os olhares desdenhosos dos críticos literários, pesquisar sobre Machado de Assis fora da faculdade de letras?

O incômodo gerado por ambos esses porquês não é pequeno, até mesmo pelo fato de que eu não tenho uma resposta pronta para essas perguntas. Naturalmente, poder-se-ia respondê-las atacando a estrutura feudal da universidade e afirmando que filosofia e literatura não estão essencialmente separadas, como nos poderia fazer crer o fenômeno da especialização. Poder-se-ia ainda argumentar no sentido de que a necessidade da especialização, e que me perdoe Max Weber4, deve-se pouco a uma exigência do próprio objeto de estudos, e muito mais a uma exigência de especialistas preocupados em reservar o seu mercado de trabalho, que, por isso, excluem de antemão, através de mecanismos burocráticos, quaisquer concorrência e questionamento potencialmente perigosos à consolidação do seu domínio de saber.

O problema é que, neste caso, uma argumentação ad hominem é insuficiente. Não basta desqualificar a origem desse questionamento para desqualificar o seu teor. A pergunta original, venha de onde vier, sustenta-se sobre suas próprias pernas: por que estudar Machado de Assis em uma faculdade de filosofia? Em que medida uma interpretação filosófica de uma obra de ficção é possível? Até que ponto é desejável? Qual é a contribuição que filosofia e literatura podem trazer uma à outra sem que a filosofia sufoque a obra de arte com filosofemas que lhe são estranhos e sem que a literatura seja convertida em mera ilustração de conceitos filosóficos já acabados e de uso disseminado? De que maneira a mediação da filosofia pode servir à experiência estética de uma obra literária como a machadiana? De que maneira essa obra pode contribuir para a especulação filosófica contemporânea? Essas são as questões que abordarei neste trabalho.

A resposta a essas questões depende de um esclarecimento provisório do que se está aqui entendendo por “interpretação filosófica” e por “obra de arte literária”.

4 Cf. WEBER, M. “Ciência como vocação”. In: Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 2004, p. 24: “Em nosso tempo, obra verdadeiramente definitiva e importante é sempre obra de especialista.”

Depende, em última instância, da discussão dos conceitos de filosofia e de literatura, os quais só conquistaram a relativa autonomia de que hoje dispõem ao cabo de uma história longa e conflituosa que se confunde com a própria história da filosofia, cujos reflexos, como seria de se esperar, estão presentes na compreensão cotidiana desses termos.

Em uma abordagem preliminar, pode-se reconstruir a compreensão cotidiana desses termos da seguinte forma: literatura é diversão, deleite, prazer imediato, sensorial, um prazer que remete, talvez, ao prazer que já o homem mais antigo sentia ao ouvir o líder espiritual da tribo contar uma boa estória. Filosofia, por outro lado, é trabalho, dificuldade, dureza, um exercício áspero que, algumas vezes, é verdade, pode até redundar em prazer, mas cuja fruição, ao contrário do que acontece com a literatura, nunca é imediata, requerendo antes uma série de pré-conhecimentos. Num mundo que cultua os prazeres imediatos, que identifica esses prazeres à própria felicidade, poderse-ia rudemente afirmar: a literatura diverte; a filosofia aborrece.

Nessa pré-compreensão vulgar, repousa já uma primeira diferenciação, ainda que implícita, entre a própria natureza do gênero filosofia e a própria natureza do gênero literatura. Mais do que isso: filosofia e literatura são pensadas como gêneros à parte. Sob essa perspectiva, o gênero literatura incluiria tudo o que é da ordem da poesia, da imagem, da metáfora, do sentimento, do contraditório, da fabulação, da criação, em suma, do ficcional; já o gênero filosofia, por sua vez, incluiria tudo o que é da ordem do prosaico, do conceito, da representação clara e distinta, do fria e imparcialmente racional, do coerente, do real, em suma, do verdadeiro. De um lado, sensação; de outro, razão. De um lado, mentira; de outro, verdade. De um lado, o mito; de outro, o lógos.

Ao se estabelecer essa diferença genérica entre filosofia e literatura, porém, está sendo negligenciada a própria etimologia da palavra gênero. Falar em gêneros é falar em gênese, origem, princípio. Mister, portanto, não é levantar antes as características mais salientes de filosofia e de literatura, para, em um segundo momento, definir dois gêneros que se opõem. Trata-se, ao contrário, de perguntar pela gênese de ambas, e mais especificamente pela origem dessa concepção vulgar que opõe filosofia e literatura tão radicalmente, reservando à filosofia uma relação com a verdade de que a obra de arte literária, dado o caráter de entretenimento a que hoje está relegada pela indústria cultural, estaria privada.

As origens dessa concepção podem ser reportadas, não sem alguma arbitrariedade e uma pitada de reducionismo, à filosofia platônica, e mais especificamente à sua compreensão de mímesis. No livro X da República, justificando

por que, “quanto à poesia, somente se devem receber na cidade hinos aos deuses e

encômios aos varões honestos e nada mais”5, escreve o filósofo:

(...) o imitador não tem conhecimentos que valham nada sobre aquilo que imita, (...) a imitação é uma brincadeira sem seriedade; e os que se abalançam à poesia trágica, em versos iâmbicos ou épicos, são todos eles imitadores, quanto se pode ser. (...) o poeta imitador instaura na alma de cada indivíduo um mau governo, lisonjeando a parte irracional, que não distingue entre o que é maior e o que é menor, mas julga, acerca das mesmas coisas, ora que são grandes, ora que são pequenas, que está sempre a forjar fantasias, a uma enorme distância da verdade. (...) Contudo não é essa a maior acusação que fazemos à poesia: mas o dano que ela pode causar até às pessoas honestas, com exceção de um escassíssimo número, isso é que é o grande perigo. (...) Os melhores de entre nós, quando escutam Homero ou qualquer poeta trágico a imitar um herói que está aflito e se espraia numa extensa tirada cheia de gemidos, ou os que cantam e batem no peito, sabes que gostamos disso, e que nos entregamos a eles, e com toda seriedade elogiamos o poeta, como sendo bom, por nos ter provocado, até ao máximo, essas disposições. (...) Mas quando sobrevém a qualquer de nós um luto pessoal, reparaste que nos gabamos do contrário, se formos capazes de nos mantermos tranqüilos e de sermos fortes, entendendo que esta atitude é característica de um homem, ao passo que aquela, que há pouco louvamos, o é de uma mulher?6

A justificativa platônica para a célebre expulsão dos poetas da cidade ideal

apóia-se em dois argumentos: por um lado, Platão afirma que os conhecimentos

transmitidos pela poesia não seriam válidos, que os poetas não possuiriam

conhecimentos efetivos sobre as realidades que representam7, que as suas obras, meras

fantasias, estariam a uma enorme distância da verdade; por outro lado, ele afirma que,

lisonjeando a parte irracional da alma, ou seja, os sentidos, os poetas desviariam o

homem do caminho da verdade e da justa conduta, mantendo-o preso a ilusões que não

deixariam de ser o que são apenas por serem prazerosas. Se o primeiro argumento

destitui Homero da função de pedagogo da Grécia, transmitindo-a para os filósofos, que

estariam muito mais próximos da verdade, o segundo define a arte como uma

“brincadeira sem seriedade”, como um entretenimento potencialmente perigoso, na

medida em que não apenas afasta os homens da busca pela verdade, mas igualmente de

uma existência orientada pelos padrões éticos mais justos. Em ambos, permanece

inquestionada a idéia de que a arte nada mais seria do que a cópia imperfeita de uma

realidade extra-estética, unicamente acessível por intermédio da razão e apenas

5 PLATÃO. A república. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1990, p. 475 (607a). 6 Ibidem, pp. 466-473 (602b-605e). 7 Idem. “Íon”. In: Plato (Britannica Great Books, vol. 7). Chicago, London, Toronto: Benton, 1952, p. 147 (540c).

obscurecida pela contribuição dos artistas, excessivamente presos ao mundo sensível, mundo do engano e da ilusão.

O duplo caráter presente na condenação platônica da poesia, apesar das emendas que recebeu já de Aristóteles, permaneceu como a tônica dominante nas considerações filosóficas subseqüentes acerca da relação entre filosofia e literatura. Os dois maiores sistemas filosóficos da Modernidade, o de Kant e o de Hegel, apropriaram-se cada qual de um dos supramencionados aspectos da condenação platônica, e uma breve apresentação de suas respectivas concepções da relação entre arte e filosofia nos facultará uma compreensão proveitosa da situação contemporânea do problema, ponto de partida deste trabalho.

O caráter teleológico do sistema hegeliano, em que a história universal é pensada à moda de um romance de formação (Bildungsroman), cujo enredo progride à medida que a alienação peculiar a cada figura da consciência é superada dialeticamente pela figura da consciência que lhe sucede, confere à arte um lugar bastante determinado. Na introdução a seus cursos de estética, escreve o filósofo:

Ao atribuirmos à arte uma alta posição, devemos lembrar que ela não é, seja quanto ao conteúdo seja quanto à forma, o modo mais alto e absoluto de tornar conscientes os verdadeiros interesses do espírito. Pois justamente a sua forma já a restringe a determinado conteúdo. Somente certo círculo e estádio da verdade pode ser manifestado no elemento da obra de arte. Para ser autêntico conteúdo da arte, a verdade ainda deve possuir a determinação de poder transitar para o sensível e de poder nele ser adequada a si, como é o caso, por exemplo, dos deuses gregos. Em contrapartida, há uma versão mais profunda da verdade, na qual ela não é mais tão aparentada e simpática ao sensível para poder ser expressa e recebida por meio desse material. A concepção cristã de verdade é desse tipo. Mas sobretudo o espírito do mundo atual, ou melhor, o espírito de nossa religião e de nossa formação racional se mostra como tendo ultrapassado o estádio no qual a arte constitui o modo mais alto de o absoluto se tornar consciente. O caráter peculiar da produção artística e de suas obras já não satisfaz nossa mais alta necessidade. Ultrapassamos o estádio no qual se podia venerar e adorar obras de arte como divinas. A impressão que elas provocam é de natureza reflexiva e o que suscitam em nós necessita ainda de uma pedra de toque superior e de uma forma de comprovação diferente. O pensamento e a reflexão sobrepujaram a bela arte.8

Na marcha do espírito universal rumo à autoconsciência absoluta de si mesmo, a arte, de acordo com Hegel, aparece como um estádio menos desenvolvido da verdade, a qual careceria da pedra de toque da filosofia para alcançar sua versão mais profunda. A justificação dessa concepção baseia-se na pressuposição de que a filiação inexorável da arte ao sensível representa uma diminuição de sua verdade, na medida em que a

8 HEGEL, G. Cursos de Estética I. São Paulo: Edusp, 1999, p. 34.

verdade, e aqui Hegel não poderia ser mais platônico, “não é mais tão aparentada e simpática ao sensível para poder ser expressa e recebida por meio desse material”. A arte, sob essa ótica, aparece como uma espécie de filosofia primitiva, e, como tal, compra seu poder pedagógico de esclarecer determinadas idéias filosóficas por intermédio de exemplos concretos, como uma escultura ou um romance, ao preço de uma redução de sua complexidade. A concepção hegeliana da arte, portanto, se não apóia a expulsão dos poetas da cidade ideal, já que todos os momentos da verdade seriam momentos necessários, confina-os ao jardim de infância.

Kant, ao contrário de Hegel, não se comprometerá com a idéia platônica de que a verdade da arte e a verdade da filosofia devem ser avaliadas segundo um mesmo critério, que, tendo sido forjado por filósofos metafísicos, é francamente desfavorável à arte. Em seu sistema transcendental, reservará um lugar específico para a arte, topologicamente distinto dos lugares ocupados pela razão pura e pela razão prática.

Na Crítica da faculdade de julgar, Kant se esforçará por mostrar que os juízos referentes ao belo, seja na natureza ou na arte, ao contrário dos juízos sintéticos a priori analisados na Crítica da razão pura, não são juízos determinantes, não permitem determinar o que, dada a estrutura da subjetividade transcendental, as coisas (enquanto fenômenos) são. Tais juízos tampouco devem ser mesclados “com o que pode ser fundamento de determinação da faculdade da apetição, porque esta tem seus princípios a priori em conceitos da razão”.9 Mas se os juízos referentes ao belo não serviriam nem para o conhecimento teórico da realidade nem para o aprimoramento do comportamento humano no mundo, perguntar-se-ia então, quais seriam a sua natureza e função no âmbito do sistema transcendental? Qual seria o princípio a priori da faculdade de julgar, sem o qual ela não poderia ser tomada como uma faculdade distinta das demais?

A resposta que Kant oferece para essas perguntas coloca-o em um plano diferente dos filósofos que o antecedem, como Platão, e também de seu sucessor imediato, Hegel. Ele afirma que o sentimento de prazer e desprazer é “o enigmático no princípio da faculdade do juízo”10 e que tal enigma, em vez de ser solucionado com o rebaixamento a priori do prazer e do desprazer como aquilo que impede um conhecimento objetivo, frio e imparcial da realidade (Platão) ou um conhecimento da

9 KANT, I. Crítica da faculdade de julgar. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 13. 10 Ibidem, p. 14.

“versão mais profunda da verdade” (Hegel), deve ser desvendado genealogicamente, através de uma investigação de sua origem.

A argumentação kantiana desenvolvida na introdução à Crítica da faculdade de julgar mostrará que existe uma relação necessária entre os sentimentos de prazer e desprazer e o caráter especificamente reflexionante dos juízos referentes ao belo. Para fundamentar essa relação, Kant mostrará em primeiro lugar que o prazer derivado da experiência estética não deve ser confundido nem com o prazer individual, que depende da constituição fisiológica particular de cada sujeito, nem com o prazer derivado do fato de uma determinada obra de arte atender aos interesses práticos, à ideologia de seu autor ou possíveis espectadores. Não. Em sentido kantiano, o prazer associado à experiência estética é necessariamente um prazer desinteressado, um prazer que, não podendo ser explicado com base em quaisquer condicionamentos ou interesses particulares, deve poder reivindicar para si alguma universalidade, sem a qual, aliás, não faria sentido falar em obras de arte belas, mas apenas em obras de arte “belas para mim”, ou, no vocabulário da terceira crítica, agradáveis ou úteis.

O postulado de que o prazer associado à experiência estética é necessariamente desinteressado permite a Kant situar suas análises no plano transcendental, o único em que ele se sente realmente confortável.11 O filósofo mostrará então que o prazer de que se trata em sua estética tem sua origem em um jogo livre (freies Spiel) entre as faculdades transcendentais da imaginação e do entendimento, que só seria posto em movimento à medida que, diante de uma determinada obra de arte, o espectador percebesse que o múltiplo sintetizado por sua imaginação, embora fosse conforme às exigências de unidade do entendimento e como tal prometesse um conceito que permitiria determinar o seu significado, ainda assim, dada a sua riqueza, impossibilitaria a sua apreensão em um conceito determinado, de modo que, feita a tentativa de apreender a obra de arte nas correntes de um conceito determinado, o espectador fracassaria, e o movimento teria de ser reiniciado. Ao contrário do que aconteceria no caso dos juízos determinantes, entretanto, a experiência desse fracasso seria a mais excelsa fonte de prazer, já que revelaria que, a despeito de sua variegada multiplicidade, a natureza, de que na experiência estética a obra de arte aparece como porta-voz, é constituída de acordo com as nossas limitadas possibilidades de apreendê-la, como se (als ob) tivesse sido engendrada de acordo com uma finalidade, a de

11 Cf. ADORNO, T. Ästhetische Theorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2003, p. 475: “Ele [Hegel] e Kant foram os últimos que, grosso modo, puderam escrever grandes estéticas sem entender nada de arte.”

respeitar as exigências de unidade do entendimento humano. Por isso, conclui Kant, o princípio a priori da faculdade de julgar, que legitima a sua autonomia com relação às razões pura e prática, é o princípio da finalidade sem fim.

O problema é que, a despeito do esforço kantiano por redimir os sentimentos de prazer e desprazer evocados por uma obra de arte, chamando a atenção para o fato de que eles são potencialmente universalizáveis na medida em que toda a comunidade de falantes dispõe das mesmas faculdades transcendentais cujo jogo livre constitui a experiência estética, a posição da arte em seu sistema permanece ambígua. Se, contra a vertente hegeliana de interpretação do texto de Platão, Kant demonstra a impropriedade de se julgar a arte segundo o mesmo critério utilizado para os juízos teóricos e práticos, critério que transforma a obra de arte em uma proto-filosofia e os artistas em professores do jardim de infância, a autonomia de que ele dotará a experiência estética, baseada em sua “finalidade sem fim”, permite perguntar, afinal, qual é a sua relação com a existência concreta dos homens. Se não serve de forma imediata nem ao conhecimento da realidade nem de modelo para a conduta dos homens, qual é então o papel da arte? Se tudo o que ela propicia aos homens é um prazer desinteressado, qual seria então o seu interesse vital? No final das contas, não seria possível afirmar que Kant, tendo escapado a um dos aspectos da condenação platônica da poesia, acabou finalmente por legitimar uma concepção da obra de arte segundo a qual ela seria “uma brincadeira sem seriedade”, ou bem entretenimento de “eruditos ociosos no jardim do saber”12, que poderiam se dar ao luxo de uma reflexão infinita, ou bem válvula de escape para as classes trabalhadoras, que necessitariam de uma compensação ilusória para a aspereza de suas existências?

Foge ao escopo deste trabalho fundamentar uma interpretação pormenorizada dos textos de Kant, de Hegel ou de Platão. Isso, entretanto, não significa que as questões formuladas a partir deles devam ser desconsideradas. O que se pretendeu mostrar com essa breve reconstrução da história da relação entre a arte e a filosofia é que, sob uma certa ótica, a história da filosofia pode ser lida como a história das sucessivas tentativas filosóficas de desautorizar a arte, seja definindo-a como uma espécie de filosofia para principiantes, seja definindo-a como mero entretenimento.13

12 Cf. NIETZSCHE, F. Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück: Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben. München, Berlin, New York: Deutscher Taschenbuch, De Gruyter, 1988, p. 245. 13 Cf. DANTO, A. The philosophical disenfranchisement of art. New York: Columbia, 1986.

Os ecos dessa história podem ser ouvidos não apenas na concepção vulgar da diferença entre a arte e a filosofia, exposta há pouco, mas sobretudo na extensa bibliografia secundária sobre a obra de Machado de Assis, que, embora apresente raras contribuições de filósofos oficiais, curiosamente repete a estratégia metafísica de, ao pressupor uma cisão estrita entre mundo sensível e mundo inteligível, sensação e razão, mito e lógos, explicar a obra machadiana como o reflexo de uma realidade a ela exterior, normalmente hipostasiada como mais verdadeira do que a obra mesma, que seria então uma “mera” sombra, como na famosa alegoria platônica da caverna.

A bibliografia secundária da obra machadiana pode ser dividida, grosso modo, em três grandes correntes. A mais antiga delas, que remonta à década de 1930 e tem como seus principais expoentes Afrânio Coutinho e Lúcia Miguel Pereira, sua melhor biógrafa, é francamente inspirada pelas teses biologistas e psicologistas que estavam em voga no Brasil desde a segunda metade do século XIX, e que foram tão ironicamente desconstruídas por Machado de Assis ao longo de toda a sua obra. Esses autores baseiam sua interpretação da obra machadiana em uma “psicologia do mulato” que não deve nada ao humanitismo de Quincas Borba. Escreve Afrânio Coutinho:

O autor de Helena foi um caso típico de ressentimento mulato. Estudando portanto as fontes de seu pessimismo, não é possível esquecer, como uma das influências determinantes, as suas humildes condições de origem, e sobretudo os complexos resultantes da psicologia do mestiço em ascensão social, ou melhor, do mestiço desajustado. E é preciso acrescentar a consideração de que, aos traços psicológicos do mulato, em Machado, se reúnem, agravando-os, os complexos do doente incurável em permanente estado de defesa. As condições de inferioridade física e social, as falhas orgânicas, as taras hereditárias, os conflitos com a vida, a inadaptação e os recalques, explicam (em grande parte) o pessimismo de Machado, o seu desencanto e desalento, a aguda consciência da inanidade das ilusões e de tudo na vida.14

A segunda corrente de interpretação, que dificilmente se deixa localizar cronologicamente, é a daqueles que se poderiam intitular críticos-filósofos, que não vêem na obra machadiana o reflexo da psicologia do mulato em ascensão social, mas sim o dos filósofos de cabeceira do autor. Assim, a filosofia de Machado de Assis seria uma espécie de tradução literária das filosofias de Montaigne e Pascal, do Eclesiastes e de Schopenhauer, sem esquecer de Freud e de Pirro, conforme a preferência de cada crítico em questão. Dentre os principais nomes que se poderiam inscrever nesta corrente estão os de Jean-Michel Massa, de Miguel Reale, de Barreto Filho, do admirável Augusto Meyer e novamente o de Afrânio Coutinho, cuja obra A filosofia de Machado

14 COUTINHO, A. A filosofia de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Vecchi, 1940, p. 87.

de Assis não por acaso ocupa a intersecção entre as interpretações bio(gráfico)psicologizantes e as “interpretações filosóficas”, na medida em que coloca no plano das influências em geral aquelas devidas à constituição fisiológica e à formação cultural do autor.

Já a terceira corrente de interpretação da obra machadiana, sem dúvida a mais consistente, começou a se consolidar na década de 1960 a partir de uma provocação de Antônio Candido15, e tem como seus principais expoentes Raimundo Faoro e Roberto Schwarz. Tendo em vista que Faoro é assumidamente weberiano e Schwarz um marxista brechtiano, não causa estranhamento o fato de que as suas abordagens da obra machadiana partem de uma perspectiva eminentemente histórico-sociológica. Para ambos, a condição fundamental para a compreensão do sentido da obra machadiana é um conhecimento profundo das estruturas sociais do Brasil do Segundo Reinado, que essa obra refletiria, seja no sentido de lhe conferir uma inteligibilidade ausente mesmo dos melhores livros de história (Faoro), seja no sentido de expor a “desfaçatez de classe” de uma elite estigmatizada pela contradição insolúvel de defender os ideais liberais europeus e simultaneamente depender do trabalho escravo para a perpetuação de seus privilégios sociais (Schwarz). Escreve o autor de Ao vencedor as batatas:

“(...) definimos um campo vasto e heterogêneo, mas estruturado, que é resultado histórico, e pode ser origem artística. (...) a matéria do artista mostra assim não ser informe: é historicamente formada, e registra de algum modo o processo social a que deve sua existência.”16

Apesar da diferença qualitativa que distingue os estudos que compõem cada uma das supramencionadas correntes de interpretação, todos eles tendem, em alguma medida, a explicar a obra de Machado de Assis como um reflexo de alguma instância objetivamente verificável que lhe seria extrínseca: ou bem da vida pessoal de Machado de Assis; ou bem das influências filosóficas e literárias que recebeu; ou bem da sociedade em que viveu. É inegável que, em alguma medida, essas informações podem

15 CANDIDO, A. “Esquema de Machado de Assis”. In: Vários escritos. São Paulo; Rio de Janeiro: Duas Cidades; Ouro Azul, 2004, p. 31: “Neste nível é que encontramos o Machado de Assis mais terrível e mais lúcido, estendendo para a organização das relações a sua mirada desmistificadora. Se tivesse ficado no plano dos aforismos desencantados que fascinavam as primeiras gerações de críticos; ou mesmo no das situações psicológicas ambíguas, que depois se tornaram o seu atrativo principal, talvez não tivesse sido mais do que um dos ‘heróis da decadência’, de que fala Viana Moog. Mas além disso há na sua obra um interesse mais largo, proveniente do fato de haver incluído discretamente um estranho fio social na tela do seu relativismo. (...) O senso machadiano dos sigilos da alma se articula em muitos casos com uma compreensão igualmente profunda das estruturas sociais (...).” 16 SCHWARZ, R. “As idéias fora do lugar”. Em: Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 30s.

ser úteis para a compreensão de suas obras, mas será mesmo que se deve derivar diretamente o sentido de uma obra de arte literária de uma série de informações que se poderia igualmente vir a obter sem recorrer a ela?

De certa forma, o procedimento de todos os críticos acima citados parte de uma preocupação compreensível. Relutam em admitir que Machado de Assis, um dos maiores clássicos de nossa literatura, possa ter produzido uma obra cuja finalidade última seria o mero entretenimento de seus leitores. Tendo achado em sua obra “umas aparências de puro romance”17 , pretenderam corrigir essa frivolidade, supostamente incompatível com a grandeza do autor, mostrando que, por trás dos ditos espirituosos e dos filosofemas de ocasião, como “a lei da equivalência das janelas”18 ou “a filosofia da ponta do nariz”19, haveria uma verdade, grave como toda verdade que se preza, que cumpriria ao crítico demonstrar. Gravidade e objetividade, no entender desses críticos, seriam sinônimos, de modo que sua tarefa consistiria em estabelecer, através de minuciosas pesquisas em suas respectivas áreas, a verdade escondida no fundo da ficção machadiana.

Movidos por essa espécie de voluptuosidade do profundo, plenamente justificável em leitores de Platão e Hegel, defensores intransigentes de que a arte seria uma versão menos profunda da verdade, esses críticos, com a notável exceção de Roberto Schwarz, acabaram por negligenciar aquela que, ao menos desde Sócrates, é a tarefa do filósofo, mas não apenas dele: a investigação do óbvio, das próprias certezas, dos próprios pressupostos interpretativos.

Salta aos olhos, por exemplo, que em nenhum momento os críticos-biógrafos formulem explicitamente as seguintes questões: é possível afirmar que as obras de arte são um mero espelho da existência empírica de seus criadores? Até que ponto um autor é o dono de sua obra, até que ponto detém um domínio absoluto sobre as suas linguagem e significação? As intenções de um autor, sejam elas determinadas pela sua biologia, pela sua psicologia ou pela sua biografia, são mesmo a chave para a compreensão do que é expresso por sua obra? A verdade de uma obra de arte deve ser

17 MACHADO DE ASSIS, J.M. “Memórias póstumas de Brás Cubas”. In: Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 11 (Ao leitor): “Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo fica aí privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.” Daqui em diante, todas as referências às Memórias póstumas de Brás Cubas aparecerão com a abreviatura MP, seguida do número do capítulo em algarismos romanos, e da página correspondente na edição supracitada. 18 MP, LI, p. 81. 19 MP, XLIX, p. 79.

buscada em uma instância exterior a ela mesma? A biografia do autor seria a única ou pelo menos a melhor instância para explicá-la?

Igualmente digna de nota é a lacuna, nas obras dos críticos-filósofos, de uma tematização explícita do problema da autonomia da obra de arte como levantado por Kant. Será mesmo que os critérios para avaliar a verdade de uma obra de arte e a verdade de uma obra filosófica são idênticos? Se a arte é mesmo uma espécie de “filosofia para principiantes” ou, ainda mais hegelianamente, de “filosofia primitiva”, por que então dedicar-se à interpretação de obras de arte e não, como seria de se esperar daqueles que comungam dessa compreensão, à consideração dos textos filosóficos propriamente ditos, onde a verdade encontraria sua “versão mais profunda”? Se a arte e a filosofia podem de fato ser avaliadas segundo o mesmo critério, um critério aliás francamente desfavorável à arte, a crítica de arte em geral e a crítica literária em particular não ficam condenadas a uma insignificância que torna problemático até mesmo o seu direito à existência? O paradoxo que está na base das interpretações filosóficas tradicionais da obra de Machado de Assis é evidente: elas afirmam a sua própria insignificância ao atribuírem à filosofia uma profundidade que faltaria à literatura, ao quererem fazer justiça ao gênio literário de Machado de Assis convertendo-o exatamente naquilo que ele não foi e nem pretendeu ser, um filósofo.

A partir de uma confrontação com as obras dos críticos-biógrafos e dos críticos-filósofos, presas de uma “forma de percepção cuja capacidade de captar o ‘semelhante’ no mundo é tão aguda que, graças à reprodução, ela consegue captá-lo até no fenômeno único”20, torna-se finalmente possível conferir contornos mais nítidos à proposta deste trabalho. Trata-se aqui de empreender uma interpretação filosófica da obra de Machado de Assis, cujo fulcro será uma análise de suas Memórias póstumas de Brás Cubas.

A interpretação filosófica aqui visada, entretanto, difere das “interpretações filosóficas” tradicionais na medida em que, contra a “gente grave” supramencionada, que pensa imediatamente a verdade de uma obra de arte como uma instância objetivamente verificável que ela apenas refletiria, de modo sempre deficiente, parte da convicção de que “(..) os resíduos sistemáticos nos ensaios, como por exemplo a infiltração, nos estudos literários, de filosofemas já acabados e de uso disseminado, que

20 BENJAMIN, W. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica: Primeira versão”. In: Obras escolhidas (vol. I). São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 170.

deveriam conferir respeitabilidade aos textos, valem tão pouco quanto as trivialidades psicológicas.”21

Uma vez que se admite como ponto de partida a insuficiência do conceito mesmo de interpretação pressuposto na maior parte das interpretações tradicionais da obra machadiana, a presente interpretação só merecerá o qualificativo de “filosófica” a que almeja se puder dar conta de uma dupla tarefa: não lhe bastará simplesmente ser mais uma interpretação possível das Memórias póstumas de Brás Cubas, ela deverá simultaneamente, a partir de um confronto com o texto machadiano propriamente dito e, quando pertinente, com a história de sua recepção, discutir no que consistiria propriamente uma hermenêutica filosófica de obras de arte literárias.

O postulado fundamental dessa hermenêutica, contra a corrente hegeliana de interpretação da condenação platônica dos poetas, é o de que “a obra de arte não é apenas o suporte para um sentido que poderia ser igualmente expressado por outros suportes”22, como uma biografia ou um livro de filosofia. Nesse sentido, o nosso maior inimigo, que, como o anão do Zaratustra, dificilmente deixará de acompanhar todos os passos de nosso caminho, é aquele espírito de gravidade23 que, a despeito de todos os esforços, sempre nos convidará a atentar contra a autonomia da obra de arte. Esse inimigo, temo, dada a própria natureza de nossa empreitada, é invencível, mas se Terry Eagleton tem razão quando se pergunta “(...) como pode a filosofia aprender com a arte se o que mais importa para esta é intraduzível num pensamento discursivo?” e em seguida responde que

(...) a arte mostra o que a filosofia não consegue dizer; mas, ou a filosofia nunca será capaz de articular isso, e nesse caso a arte lhe será de relevância duvidosa, ou ela aprenderá a expressar o inexprimível, e nesse caso não será mais teoria, e sim uma forma de arte. A arte seria desse modo, ao mesmo tempo, a consumação e a ruína da filosofia – o ponto ao qual todo pensamento autêntico deve aspirar e no qual ele deixaria de ser pensamento em qualquer sentido tradicional. 24

por que não a teria também Camus, quando afirma que “a própria luta em direção aos cimos já é suficiente para preencher um coração humano”25?

21 ADORNO, T. Notas de Literatura I. São Paulo: Duas Cidades, Ed. 34, 2003, p. 37. 22 GADAMER, H. Die Aktualität des Schönen. Stuttgart: Reclam, 1977, p. 44. 23 Cf. NIETZSCHE, F. “Da visão e do enigma”. In: Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989, p. 164s. 24 EAGLETON, T. A ideologia da estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 262. 25 CAMUS, A. Le mythe de Sisyphe. Paris: Gallimard, 1996, p. 168.

Imagens à parte, se é mesmo verdade que a assunção do postulado da autonomia da obra de arte nos distancia da desautorização filosófica da arte empreendida por Hegel, ela nos aproxima da de Kant, cuja obra, embora constitua uma das contribuições mais ricas para o problema, na medida em que redime o prazer estético do qual a “gente grave” sintomaticamente vive sempre a fugir, pode servir a uma interpretação equivocada do papel da arte, que, se não é filosofia, tampouco pode ser reduzida a mero entretenimento da “gente frívola”, a simples mercadoria da indústria cultural. Se, como vimos, é indispensável para uma interpretação filosófica que faça jus a esse qualificativo que ela evite as estratégias filosóficas tradicionais de desautorizar a arte, seja aquela que a reduz a uma filosofia para principiantes, seja aquela que a reduz a mero entretenimento, como seria possível, uma vez que se assume o postulado da autonomia da obra de arte, ainda assim justificar o seu interesse, a sua relevância vital?

Essa é a questão que ocupa o cerne da melhor interpretação da obra machadiana que me chegou às mãos, Machado de Assis: Um mestre na periferia do capitalismo, de Roberto Schwarz. Embora possa ser inscrito na corrente histórico-sociológica de interpretação, o livro de Roberto Schwarz é o que mais se aproxima do conceito de interpretação filosófica defendido neste trabalho e por isso será o seu principal interlocutor. Schwarz, leitor de Adorno, também parte do pressuposto de que “a autonomia da obra de arte é irrevogável”26 . Para justificar essa hipótese, e contra a “teoria do reflexo” (Widerspiegelungstheorie) em que se baseiam, de modo mais ou menos consciente, as demais interpretações sociológicas tradicionais da obra machadiana, ele recorre ao conceito lukácsiano de forma. Para Schwarz, assim como para o crítico húngaro,

(...) sem forma não há fenômeno literário; talvez haja ciência, mas não literatura. (...) a vida não pode ascender ao sentido sem o suporte da forma. (...) só na forma conciliam-se cotidiano e essência, mera existência e existência plena de valor, a vida e a vida. (...) Não há como negar o imbricamento entre forma e realidade, mas deve-se atentar em que a realidade, ao ingressar na forma, perde sua feição de realidade para converter-se em elemento exclusivamente formal.27

A forma do romance, de acordo com essa concepção, não pode ser pensada como o meio lingüístico transparente que propiciaria uma representação imediata das

26 ADORNO, T. Ästhetische Theorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2003, p. 9. 27 MACEDO, J. “Posfácio”. In: LUKÁCS, G. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 174-190.

realidades extra-estéticas, sejam elas de ordem social, biográfica, psicológica ou filosófica, que o romance apenas refletiria. Como mediação necessária entre “a vida e a vida”, a forma do romance não transfigura uma realidade supostamente dada, “a vida”, mas sim configura uma realidade, “a vida”, cuja totalidade não está dada em parte alguma. Tendo em vista que “o romance busca descobrir e construir, pela forma, a totalidade oculta da vida”28, ele não simboliza nada, e qualquer tentativa de interpretá-lo a partir do que ele pretensamente simbolizaria está fadada à inconsistência, quando não ao fracasso. A lição de Lukács é a de que a forma do romance deve ser o horizonte absoluto para a sua interpretação, de que “o imbricamento entre forma e realidade”, ao contrário do que supunham os críticos tradicionais da obra machadiana, de modo algum é imediato, mas precisa ser construído através de uma série complexa de mediações.

O modo como Roberto Schwarz constrói essa série de mediações é o que distingue a sua abordagem como uma abordagem histórico-sociológica de inspiração brechtiana. Após a constatação preliminar de que “a volubilidade é o princípio formal do livro”29 , ele esclarece de que modo, a partir dessa análise imanente, é possível alcançar uma compreensão do “imbricamento entre forma e realidade”.

O escândalo das Memórias está em sujeitar a civilização moderna à volubilidade. Os assuntos podem ser os mais diversos, mas o efeito da prosa é este. (...) A volubilidade funciona a todo vapor, pois é sobretudo princípio formal; ao passo que nas partes seguintes será sobretudo motivação de personagens, ou conteúdo. (...) A volubilidade inicialmente nos apareceu como a feição mais saliente do narrador; seria um traço subjetivo, uma disposição passageira, corrigida logo adiante? Vimos que não: ela é o pendor permanente de todos; designaria, neste caso, uma insuficiência metafísica do ser humano. Por outro lado, não lhe faltam também as conotações de cor local, mais genéricas do que uma propensão de fulano ou beltrano, mas nem por isso universais; nesta acepção, ela seria o indício distintivo de uma sociedade entre outras. Acompanhada em seu desenvolvimento, a prosa cauciona as três perspectivas: a volubilidade é condição humana, é feição pessoal e é característica brasileira. Conforme domine esta ou aquela, o tom é absoluto, como convém às verdades últimas; engraçado, caso retrate um defeito individual; e satírico, se designa um modo de ser nacional. Vai nisso um problema lógico, pois o mesmo atributo tanto individualiza quanto universaliza: a volubilidade é Brás Cubas? É todo mundo? É o Brasil? Artisticamente, a indefinição pouco atrapalha, sendo antes um elemento de humorismo e diversidade de timbres, que contrastam, mas por alguma razão não se desdizem. Talvez porque a oposição verdadeira seja outra e se efetive através de qualquer um deles, ou dos três alternadamente, que neste sentido têm função de ideologia. (...) O antagonismo de classe, em sua forma particular ao Brasil, é a chave do estilo que vimos estudando.30

28 LUKÁCS, G. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 60. 29 SCHWARZ, R.Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 31. 30 Ibidem, pp. 56-62.

O desenvolvimento do argumento é irretocável. Depois de ressaltar em que sentido a volubilidade, como princípio formal, deve ser lida também como determinante do conteúdo da obra, superando assim a perigosa dicotomia metafísica forma-conteúdo a que uma interpretação equivocada do conceito lukácsiano de forma poderia conduzir,

o crítico mostra os três sentidos que a volubilidade, voluvelmente, assume ao longo do romance: ora designa a condição humana, ora a feição pessoal do narrador, ora uma característica da sociedade brasileira. Em seguida, apesar de a princípio haver negado o privilégio de qualquer uma dessas perspectivas, ele conclui que todas as três perspectivas teriam uma mesma função, a função ideológica, e que “o antagonismo de classe, em sua forma particular ao Brasil”, seria a chave para a compreensão do romance.

Como já foi indicado quando falávamos da corrente de interpretação histórico-sociológica da obra machadiana, para Schwarz a grandeza do romance machadiano consiste em haver convertido as contradições inerentes à sociedade brasileira do Segundo Reinado em contradições formais, conferindo-lhes assim uma totalidade, em sentido lukácsiano, virtualmente inexistente no plano da realidade social efetiva.

Com risco de repetição, insistiremos ainda um pouco na ambivalência ideológica das elites brasileiras, um verdadeiro destino. Estas se queriam parte do Ocidente progressista e culto, naquela altura já francamente burguês (a norma), sem prejuízo de serem, na prática, e com igual autenticidade, membro beneficiário do grande sistema escravocrata do mesmo Ocidente (a infração). Ora, haveria problema em figurar simultaneamente como escravista e indivíduo esclarecido? Para quem cuidasse de coerência moral, a contradição seria embaraçosa. Contudo, uma vez que a realidade não obrigava a optar, por que abrir mão de vantagens evidentes? Coerência moral não seria outro nome para a incompreensão do movimento efetivo da vida? Valorização da norma e desprezo pela mesma eram da natureza do caso... (...) Assim, a vida brasileira impunha à consciência burguesa uma série de acrobacias que escandalizam e irritam o senso crítico. (...) a infração é norma, e a norma, além de norma, é infração, exatamente como na prosa machadiana. (...) A ambivalência tinha fundamento real, e Machado de Assis, conforme se verá, soube imaginar-lhe as virtualidades próximas e remotas.31

As Memórias póstumas de Brás Cubas, no âmbito dessa interpretação, teriam sido escritas “contra o seu pseudo-autor”32 e a elite brasileira que ele personifica caricaturalmente, a qual, por sua vez, dada a sua posição periférica e “menos civilizada”, tornaria visível, em um movimento semelhante ao efetuado por Conrad em Coração das trevas, que o sistema capitalista, mesmo em suas configurações mais

31 Ibidem, p. 42ff. 32 Ibidem, p. 82.

humanistas e civilizadas, só pode perpetuar-se perpetuando a barbárie sobre a qual, de formas mais ou menos veladas, assenta. Brás Cubas, na ótica de Schwarz, seria o Coronel Kurz brasileiro, e o seu leitor ideal perceberia, por trás de todas as cabriolas de sua linguagem, “o horror”33 de uma formação social iníqua, tanto no plano local quanto, mediatamente, no plano mundial.

A partir dessa breve reconstrução do livro de Schwarz, torna-se claro que, para ele, “(...) o protesto, mesmo que mudo e reificado, sempre foi e ainda hoje é a função do que não tem função: a própria arte.”34 O caráter paradoxal dessa breve sentença de Adorno acerca da “função do que não tem função” ecoa em todo o seu livro, que, se por um lado preserva a obra machadiana de uma interpretação imediatamente heterônoma, como seria inevitável em um marxista menos sofisticado, através do privilégio que confere a uma análise imanente da forma do romance, por outro, dada a sua inspiração materialista, não tem nenhuma dificuldade em mostrar a imbricação entre forma do romance e realidade social, garantindo à arte um interesse vital que a preserva do mero estatuto de mercadoria da indústria cultural. Nesse sentido, a sua interpretação escapa às duas estratégias filosóficas tradicionais de desautorização da arte, e serve de ponto de partida para a interpretação filosófica aqui pretendida.

Ponto de partida, decerto, não ponto de chegada. Apesar de reconhecer a qualidade de seu trabalho, parece-me que o conceito de autonomia da obra de arte por ele pressuposto não é inteiramente satisfatório. Schwarz considera que autonomia e especificidade são sinônimos. Todo o seu esforço, coerentemente com essa premissa, reside em tornar visível a especificidade de Machado de Assis como um mestre na periferia do capitalismo, chamando a atenção para o fato de que a sua mestria, ou universalismo, de forma alguma deve ser derivada daquelas observações sobre a condição humana em geral que encantaram tantas gerações de críticos.

Ocorre que a ‘condição humana’ funciona diferenciadamente segundo as relações sociais em que se inscreva. As variações têm relevância extraordinária, a que se prende, conforme veremos, a riqueza realista do romance. Tomada como chave universal, a explicação pela volubilidade pertence à esfera do individualismo abstrato e encerra um a priori sociológico atomizador. Daí o caráter invariável de suas conclusões, que tornam irrelevante a particularidade da formação social e, mais especificamente, o antagonismo entre as classes. Visto em seu contexto, porém, aquela explicação atua em sentido inverso, e serve de revelador de assimetrias. Diante da desigualdade social, o argumento universalista é ele mesmo posto à

33 CONRAD, J. Coração das trevas. São Paulo: Nova Alexandria, 2001, p. 123. 34 ADORNO, T. Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003, p. 22.

prova, fazendo papel de escandalosa desconversa, tanto mais interessante quanto o seu ânimo é esclarecido.35

A mestria de Machado de Assis, sob essa ótica, só poderia ser apreendida satisfatoriamente como uma denúncia da ideologia dominante das elites brasileiras, que se teriam apropriado do universalismo abstrato inerente ao humanismo liberal e às filosofias que lhe são correlatas para perpetuar privilégios sociais incompatíveis com esse humanismo. Essa denúncia das elites brasileiras, dependentes do capitalismo selvagem praticado nos trópicos, por sua vez, ganharia contornos universais na medida em que se atentasse para o fato de que, ao contrário do que muitos brasileiros ainda hoje pensam, o capitalismo periférico ou selvagem não é uma distorção do capitalismo praticado nos grandes centros, mas sim uma caricatura que, como toda boa caricatura, torna visíveis seus traços essenciais, normalmente velados por força da mesma ideologia que Machado, exibindo em forma de espetáculo, desmonta.

A principal objeção que se poderia fazer a essa interpretação não é a de que seu autor reduz tudo a um “antagonismo de classe”, redução das mais fecundas e coerentes que se podem fazer, mas sim a de que, ao sujeitar todas as nuances do romance machadiano a um mesmo princípio interpretativo, Schwarz confere um acabamento à obra machadiana que, na terminologia de Kant, inviabilizaria o jogo livre entre imaginação e entendimento que constitui o âmago da experiência estética. Nesse sentido, o problema da leitura de Schwarz não estaria em sua “invenção” brechtiana de um Machado brasileiro, sumamente útil para a relativização das leituras que vêem em Machado um filósofo ou um psicólogo sutil, mas sim na compreensão problemática da autonomia da obra de arte que ela pressupõe. A obsessão do crítico por determinar de uma vez por todas a especificidade da obra machadiana a partir de sua situação periférica no âmbito do sistema capitalista mundial leva-o a menosprezar, dentre outras coisas, o papel da filosofia nas Memórias póstumas, que a ele só interessa enxergar como denúncia da posição insustentável do narrador, como “metafísica insossa”36 e “ideologia barata”37 , e nunca como um elemento potencialmente subversivo de seu

35 SCHWARZ, R.Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 68ff. 36 Ibidem, p. 173: “Nos esforçamos por mostrar que as piruetas deste último só brilham, ou melhor, só escapam de ser metafísica insossa graças à figura entre especiosa e lamentável que fazem uma vez levado em conta o outro Brás, o de classe, cuja presença, insidiosa ao extremo, entretanto é discreta.” 37 Ibidem, p. 175: “(...) uma das virtualidades conformistas do livro se poderia resumir pelo amor ao privilégio, quando se trata dos vivos; e pela melancolia metafísica, quando se trata do inelutável. A poesia desta contigüidade, módulo sempre repetido, é ideologia barata, como facilmente se percebe – desde que haja esforço de unificação, ou resistência ao prestígio da inconseqüência formal.”

esforço de totalização do sentido do romance, como um fator desagregador de sua “resistência ao prestígio da inconseqüência formal” de Brás Cubas.

A hipótese da qual parte este trabalho é a de que a “inconseqüência formal” de Brás Cubas não se deixa reduzir unicamente a uma sofisticada “conseqüência ideológica” de Machado de Assis. Essa redução, repitamo-lo, se por um lado preserva a especificidade do romance machadiano, interpretando-o como um fenômeno único, por outro lhe confere um fechamento que emperra aquele movimento reflexivo que, desde Kant, é o que garante a autonomia da experiência estética. Para que a noção kantiana de autonomia seja preservada, portanto, cumpre libertar as Memórias da estrita redução ideológica operada por Schwarz, o que, a princípio, implica levar a sério a “metafísica insossa” de Brás Cubas.

Será mesmo, como prega Schwarz, que a “ironia trágica”38 do defunto autor se deixa desconstruir inteiramente quando se revela o suposto interesse classista que a motivaria? Será mesmo que as questões filosóficas que se podem formular a partir da “tinta da melancolia” com que Brás Cubas redigiu as suas memórias póstumas convertem-se imediatamente em pseudo-questões uma vez que, argumentando ad hominem, o crítico afirma que o livro teria sido escrito contra o seu pseudo-autor e a classe que ele representa? Não seria possível, embora preservando a especificidade das Memórias póstumas, mostrar que a ruptura que elas representam com relação à produção anterior do próprio Machado de Assis e de seus contemporâneos brasileiros guarda semelhanças com a ruptura operada por alguns de seus contemporâneos europeus, como Nietzsche e Dostoievski, com relação aos postulados fundamentais da metafísica tradicional? Essa suposta “metafísica insossa” de Brás Cubas não pode ser lida, em suma, como uma subversão a partir de dentro do caráter insosso da noção metafísica de verdade, que, baseada em uma oposição estrita entre sensível e inteligível, ficção e realidade, reduz o inacabamento constitutivo da experiência estética a uma imperfeição exclusiva da arte, que poderia ser superada pela “versão mais profunda da verdade” oferecida pela filosofia?

As questões acima formuladas permitem-nos finalmente determinar a posição singular reivindicada por este trabalho no âmbito da bibliografia secundária sobre a obra machadiana. Trata-se, como já se disse anteriormente, de empreender uma interpretação filosófica das Memórias póstumas de Brás Cubas. Essa interpretação, para fazer jus ao

38 Cf. MENKE, C. Die Gegenwart der Tragödie: Versuch über Urteil und Spiel. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2005.

qualificativo que a distingue, terá de ser simultaneamente uma interpretação dos possíveis sentidos do romance de Machado de Assis e uma reflexão sobre os fundamentos para uma hermenêutica filosófica da obra de arte literária. Além disso, à diferença das “interpretações filosóficas” tradicionais, cuja inconsistência é semelhante à das interpretações de cunho bio(gráfico)-psicologizante, deverá esforçar-se no sentido de preservar a autonomia das Memórias póstumas de Brás Cubas. A realização desta tarefa, por sua vez, tem como condição necessária uma discussão explícita do conceito de autonomia da obra de arte, que, à diferença de Roberto Schwarz, não entendo histórico-sociologicamente como fruto da especificidade do antagonismo de classes que está à base de sua produção, mas sim, à moda kantiana, como aquilo que possibilita um jogo livre entre imaginação e entendimento, que, não podendo ser interrompido por nenhum conceito determinante que permita fixar de uma vez por todas o sentido da obra, é a fonte não apenas do inacabamento constitutivo das Memórias póstumas, como também, mediatamente, do prazer estético gerado por esse inacabamento.

Não é estranho que todas as interpretações tradicionais da obra machadiana, que vêem no autor um pessimista ou um cético, um psicólogo sutil ou um crítico da ideologia, tenham dado tão pouca atenção àquilo que, da forma mais imediata, a distingue, a saber, o intenso prazer que ela causou em tantas gerações de leitores? Como seria possível compatibilizar uma interpretação que, inspirada pela fenomenologia de Heidegger, descobre afinidades entre Brás Cubas e o homem do subsolo dostoievskiano, explicitando o modo como suas memórias póstumas constituem uma negação sistemática da existência, e o prazer estético que esse autêntico monumento ao niilismo e ao ressentimento é capaz de provocar?

Eis “o mistério de Brás Cubas” que cabe a este trabalho desvendar.

CAPÍTULO I

Fundamentos para uma hermenêutica das Memórias Póstumas de Brás Cubas

“Que isto de método, sendo como é, uma coisa indispensável, todavia é melhor tê-lo sem gravata nem suspensórios, mas um pouco à fresca e à solta, como quem não se lhe dá da vizinha fronteira, nem do inspetor do quarteirão.”

Machado de Assis39

1.1. O problema da interpretação

No exercício da filosofia, há questões incontornáveis, das quais não se pode fugir sem pagar o mais alto dos preços: o preço de fugir ao próprio exercício da filosofia. Uma dessas questões, que de forma alguma pode ser identificada a uma corrente filosófica em particular, é a questão da interpretação. Essa questão está tão intrinsecamente relacionada ao exercício da filosofia que se poderia mesmo caracterizar a filosofia como uma arte de interpretar.

Essa caracterização, entretanto, coloca-nos diante da necessidade de definir o que é a interpretação, já que, como nos ensina a longa história das tentativas filosóficas de dar conta dessa tarefa, também o conceito de interpretação requer interpretação.

O que é a interpretação?

Formulada nesses termos, a questão permanece universal demais, e roça uma indeterminação que inviabiliza qualquer encaminhamento satisfatório do problema. Questões desse porte exigem necessariamente um recorte, que, se por um lado frustra a pretensão universalista característica da filosofia, por outro é condição indispensável

39 MP, IX, p. 28.

não apenas para uma visualização efetiva do problema, mas sobretudo para uma fundamentação suficiente de suas possíveis respostas.

Consciente dessa exigência, o presente trabalho brota de uma renúncia, que não é menos dolorosa pelo simples fato de se fazer necessária. Não se trata aqui, ao menos de início, de abordar a questão da interpretação em geral, mas tão somente a questão da interpretação de obras de arte (literárias). Como, no entanto, o próprio da obra de arte (literária) é a sua irremissível singularidade, ou, para voltarmos aos termos da introdução, aquela autonomia que contradiz a pretensão de reduzi-la a conceitos, a representações universais, mesmo esse primeiro recorte permanece ainda insuficiente, exigindo ainda uma segunda renúncia.

Assim como a elaboração do problema da interpretação em geral é um empreendimento desmedido, motivado por aquela mesma forma de percepção que, embora inerente à filosofia, precisa ser combatida se se pretende preservar a autonomia da obra de arte40 , também o é a idéia de uma resposta totalizante ao problema da interpretação de obras de arte (literárias). Será possível falar em um único método de interpretação que sirva igualmente bem a toda e qualquer obra de arte (literária)? Será possível forjar um conceito universal, a obra de arte (literária), que subsuma toda e qualquer obra de arte (literária) singular?

Não há dúvida de que respostas afirmativas a essas questões são possíveis, haja vista que, no âmbito da história da filosofia, foram sempre as mais comuns. Não é à toa, porém, que, como mostramos na introdução, a história da filosofia pode ser entendida como a história das sucessivas tentativas filosóficas de desautorizar a arte.

Essa constatação, entretanto, e a vontade a ela correlata de não destruir a aura da obra de arte que pretendemos interpretar de forma alguma podem servir de ponto de partida para uma resposta negativa às questões acima. Como também ficou indicado na introdução, a tendência filosófica de ferir a autonomia da obra de arte talvez não seja acidental, sendo antes constitutiva da própria natureza da filosofia, ou, em um sentido mais amplo, da própria essência da linguagem, que, sob essa ótica, estaria sempre fadada a fracassar em sua tentativa de apreender o singular a partir dos meios de que dispõe.

40 Cf. BENJAMIN, W. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica: Primeira versão”. Em: Obras escolhidas (vol. I). São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 170: “Retirar o objeto de seu invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar o ‘semelhante no mundo’ é tão aguda que, graças à reprodução, ela consegue captá-lo até no fenômeno único.”

Afrontado por essa ingente dificuldade, a proposta do presente trabalho é confrontá-la de maneira singela. Tratar-se-á de empreender uma interpretação de uma obra de arte singular, as Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Nessa interpretação, tanto a questão da interpretação em geral (1), quanto a questão da interpretação de obras de arte em geral (2), quanto a questão da interpretação de obras de arte literárias em geral (3) serão de algum modo abordadas, mas apenas indiretamente, ou seja, apenas à medida que essas questões acompanham toda e qualquer interpretação de uma obra de arte literária singular (4), por menos que o intérprete possa ou queira assumir isso.

Neste primeiro capítulo, portanto, encontrar-se-á apenas uma análise detalhada dos problemas hermenêuticos específicos que o prólogo “ao leitor” das Memórias póstumas de Brás Cubas, pequeno guia para a interpretação dessa obra, levanta. Se as respostas que serão oferecidas para esses problemas poderão, em um segundo momento, reivindicar para si uma universalidade que transcenda o ambiente desse romance singular, é uma dúvida que não caberá a este capítulo – e talvez nem mesmo a este trabalho como um todo – dirimir.

1.2. O problema da autoria das Memórias Póstumas

A leitura da nota “ao leitor” com que Brás Cubas – e não, como seria de se esperar em livros menos singulares, Machado de Assis – abre as Memórias póstumas concentra todos os principais temas que serão abordados ao longo do livro, assim como, de chofre, cativa o leitor com aquele estilo, de tom inconfundível, que faria a imortalidade de seu (defunto) autor:

Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte e, quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.

Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o melhor remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria interessante, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.

BRÁS CUBAS41

Já a leitura dessas primeiras linhas não deixa passar despercebido um problema que, embora comumente negligenciado pelos principais críticos da obra machadiana, é não obstante decisivo para o modo como a obra exige ser interpretada: o problema da autoria das Memórias. Se é o próprio Brás Cubas quem assume a autoria do livro e a tarefa de explicar ao leitor quais seriam as suas principais influências, motivações e intenções, por que tantos leitores julgaram que poderiam simplesmente substituir o nome de Brás Cubas pelo de Machado de Assis, como se essa substituição fosse apenas natural?

A identificação imediata entre autor e personagem, empreendida pela maioria dos críticos machadianos, notadamente aqueles de tendência bio-psicologizante, brota de um pressuposto hermenêutico que compromete definitivamente as suas leituras: o pressuposto de que, dada uma pretensa ordem natural das coisas, imediatamente acessível ao bom senso, de cuja partilha aliás nunca nenhum homem reclamou42 , Machado de Assis seria o criador e Brás Cubas a criatura, Machado de Assis seria a causa e Brás Cubas o efeito, Machado de Assis seria o manipulador e Brás Cubas a marionete, Machado de Assis seria o autor e Brás Cubas o personagem. Fiéis a esse ponto de partida, que, segundo Nietzsche, seria fruto de um dos quatro grandes erros da história da metafísica, “o erro oriundo da confusão entre causa e conseqüência”43, tais críticos ocuparam-se sempre muito mais em descrever as insossas experiências pessoais de um certo Machado de Assis e o contexto histórico em que ele viveu do que em ouvir aquilo que, no texto que lhes cumpria interpretar, é o mais eloqüente: a voz do próprio Brás Cubas. Houvessem lido o Dom Quixote, saberiam que, antes de se converter em cavaleiro andante, aquele obscuro fidalgo de La Mancha não era senão a “sombra de uma sombra”44. Escreve o narrador:

41 MP, “Ao leitor”, p. 11. 42 Cf. DESCARTES, R. “Discurso do método”. In: Descartes (Col. Os pensadores). São Paulo: Abril, 1979, p. 29: “O bom senso é a coisa mais bem partilhada do mundo, pois cada qual pensa estar tão bem provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar tê-lo mais do que o têm.” 43 NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos (ou como filosofar com o martelo). Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000,

p. 41. 44 Cf. MACHADO DE ASSIS, J.M. “O espelho”. Em: Papéis avulsos. Rio de Janeiro; São Paulo; Porto Alegre: Jackson, 1952, p. 269.

Há quem diga que tinha por sobrenome ‘Quijada’, ou ‘Quesada’, não chegando a concordar os autores que sobre a matéria escreveram, ainda que de conjecturas verossímeis se possa tirar que se chamava ‘Quijana’. Mas isso pouco importa ao nosso conto: basta que a narração dele não se desvie um só ponto da verdade.45

Em que pese o caráter... quixotesco da analogia, o que se propõe aqui, aliás em obediência estrita ao narrador das Memórias, é uma problematização daquela inversão que constitui o grande erro de que nos fala Nietzsche. Problematizando a tendência positivista de querer explicar qualquer fenômeno, inclusive as obras de arte, por meio do estudo detalhado de suas pretensas condições objetivas, “reais”, e portanto necessariamente opostas e externas a produtos sabidamente “ficcionais”, não seria possível conjeturar que, se não fosse por Brás Cubas, Machado de Assis sequer teria chegado a existir? Qual seria o interesse de Machado de Assis se ele não tivesse chegado a escrever as Memórias póstumas de Brás Cubas? Será que alguém ter-se-ia dedicado a escrever a sua biografia, a contar uma história que, em si, como bem notou Hélder Macedo, mais se assemelha a um romance naturalista de gosto duvidoso? Escreve o crítico português:

Imaginemos um romance da escola realista baseado nos seguintes elementos: a acção decorre no Brasil oitocentista e começa nos anos anteriores à abolição, mais tardia do que em outros países, da escravatura; a personagem principal é um mulato, neto de escravos e nascido num ambiente de grande pobreza; a mãe morre-lhe ainda na infância, o pai volta a casar, morre pouco depois, a criação do órfão fica entregue à madrasta, uma lavadeira também mulata. O rapaz revela-se tímido, respeitador, mas desde cedo mostra um temperamento ambicioso, tem pretensões literárias, escreve versos, trabalha como tipógrafo, graças a proteções cuidadosamente cultivadas começa a mover-se na periferia dos meios intelectuais. Conhece uma senhora branca, mais velha, solteira, recém-chegada da Europa. Querem casar-se, a família dela opõe-se, ele persiste, ela já tinha passado a idade casadoira, o casamento acaba por ser aceite como o mal menor. Mais dois ou três pequenos factos significativos que ajudem a detectar a faculté maîtresse da nossa personagem: procura disfarçar as feições negróides com a barba e o bigode, o cabelo cortado quase rente; sofre de melancolia, é gago, tem ataques epilépticos; o casamento não produziu filhos. (...) Munido, por um lado, dum esquema biográfico e de características psicológicas básicas e, por outro, devidamente fortalecido pelas rigorosas conclusões científicas do evolucionismo, o autor realista do hipotético romance precisaria apenas de aplicar os preceitos de Hyppolyte Taine para conseguir a necessária convergência estilística entre a acção mais adequada à sociedade brasileira oitocentista e o carácter exemplarmente incurável do nosso personagem mulato: um ambicioso, ocasionalmente fulgurante, mas de moralidade rudimentar; um intruso, procurando com a tenacidade ansiosíssima dos tímidos um cruzamento que apagasse na sua prole

o estigma da fronte escurecida; um gago, um epiléptico, condenado finalmente à esterilidade pelo próprio jogo das leis naturais; e assim por diante. Com toda probabilidade o romance resultaria numa tragédia exemplar. Mas se, pelo

45 CERVANTES, M. O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha. São Paulo: Ed. 34, 2002, p. 55.

contrário, o autor nele contasse a história de um casamento feliz, de uma vida confortável de alto funcionário, de uma brilhante carreira literária, de uma espectacular consagração pública, de boas e leais amizades até o fim da vida –

o mais provável é que o romance fosse condenado por frivolidade, irrelevância, escapismo, alta traição à realidade social objectiva.46

Em suma: no caso de Machado de Assis e Brás Cubas, assim como no caso de Cervantes e Quixote, quem é o autor e quem o personagem?

Seguindo essa linha de argumentação e atentando para o caráter aparentemente retórico da pergunta acima, seria de se esperar que propuséssemos um privilégio de Brás Cubas em detrimento de Machado de Assis no que diz respeito à autoria das Memórias póstumas, invertendo a tendência positivista que viemos de criticar. Afinal, e não deixa de haver aí alguma ironia, se nem mesmo o “romance de formação” de Machado de Assis é fiel a pressupostos hermenêuticos positivistas, por que o seria a sua obra ficcional propriamente dita?

O problema contido nessa inversão é que, ao aceitar a naturalidade da dicotomia autor-personagem, ela incorre no mesmo erro da abordagem cuja insuficiência pretende demonstrar. O verdadeiro problema da autoria das Memórias póstumas tem menos a ver com o esclarecimento das intenções ou da biografia de seu autor – seja ele Machado de Assis ou Brás Cubas – do que com a pergunta pelo modo como a obra, ao constituir-se como um espaço entre autor e personagem, pode ser pensada como a origem de ambos. Assim como é inegável que sem Machado de Assis não haveria Brás Cubas, tampouco haveria Machado de Assis, pelo menos o Machado de Assis que todos reconhecem como o maior escritor brasileiro (do século XIX), sem o “defunto autor”. A mediação indispensável entre Machado de Assis e Brás Cubas é no entanto a obra Memórias póstumas de Brás Cubas, sem a qual nenhum dos dois existiria.

A questão é que, se tanto Brás Cubas como Machado de Assis só vêm a ser através da obra, ao mesmo tempo atravessando-a e sendo atravessados por ela, o modo como um e outro originam-se depende fundamentalmente da tensão entre autor e personagem que a obra põe em obra. Essa tensão, que se pode visualizar como uma luta ou um jogo de forças, ao contrário do que prega a representação vulgar, preexiste (ontologicamente) aos lutadores ou, conforme o caso, jogadores.47 Esses, antes do

46 MACEDO, H. “Machado de Assis: entre o lusco e o fusco”. Em: Revista Colóquio/Letras, n. 121-122. Lisboa: 1991. 47 Cf. HERÁCLITO. Fragmentos contextualizados. Rio de Janeiro: Difel, 2002, p. 109, Fr. 53: “De todos a guerra é pai, de todos é rei; uns indica deuses, outros homens; de uns faz escravos, de outros, homens livres”. A noção heraclítica de guerra é sumamente útil para a compreensão da idéia de luta (ou jogo) que se está aqui tentando pensar.

instante em que se dá a luta e depois de acabada a luta, são apenas abstrações daquilo que concretamente são apenas durante a luta – como Quijada (ou Quesada ou Quijana) antes ou depois de ser Dom Quixote ou, melhor ainda, como o Flamengo de Nunes antes ou depois da histórica final do campeonato brasileiro de futebol de 1980 contra o Atlético Mineiro.

Como toda a luta e todo o jogo pressupõem ao menos dois contendores, o fato de que a luta desencadeada pela obra deve ser pensada como o elemento no qual se originam autor e personagem aponta para o cerne da questão da autoria das Memórias póstumas de Brás Cubas: a idéia de que há uma relação de dependência mútua entre Machado de Assis e Brás Cubas que anula a prioridade ontológica de um sobre o outro. A prioridade ontológica, repita-se, só pode ser da obra. Machado de Assis virá tanto mais a ser ele mesmo como autor quanto mais Brás Cubas resistir a ser um personagem-marionete, quanto mais ele reivindicar para si autonomia; Brás Cubas, por sua vez, será tanto mais autônomo – ou autor de si mesmo e de seu criador – quanto maior for a força empregada por Machado de Assis para subjugá-lo e submetê-lo a seus propósitos autorais. A resistência mútua de cada um dos contendores à força de seu oponente é a forja que cunhará a sua diferença, através (diá) da qual cada um é conduzido (phéro)à constituição de sua própria identidade. Nesse sentido, assim como a constituição da identidade (de autor e de personagem) pressupõe a luta que os diferencia, a constituição da diferença (entre autor e personagem) pressupõe a luta pela afirmação da própria identidade. Como o espaço em que se dá uma tal luta é a obra, esta deve pensada como a origem de autor e personagem e, conseqüentemente, como o horizonte absoluto para a interpretação.

Autor e personagem, aqui, podem ser comparados a duas constelações que permitem visualizar uma relação entre séries de elementos que de outro modo permaneceriam estranhos uns aos outros. À constelação de nome autor, pertencem todas aquelas noções ligadas à idéia de mensagem, dentre as quais destacam-se as noções de sujeito, livre-arbítrio, intenção, significado, identidade, técnica e forma. Articulando-se essas noções, apresenta-se uma imagem do autor como o responsável por sua criação, que, estando por trás dela (sub-jectum) como seu princípio incondicionado, possuirá tanto maior controle do significado, isto é, da identidade de sua obra quanto maior for o seu domínio da técnica (literária) necessária para lhe emprestar a forma desejada. À constelação de nome personagem, por sua vez, pertencem todas aquelas noções ligadas à idéia de veículo ou instrumento (da mensagem do autor), dentre as quais destacam-se as noções de objeto, condicionamento, representação, significante, diferença, naturalidade e matéria. Articulando-se essas noções, tem-se uma imagem do personagem como a objetivação da intenção do autor, que, servindo primariamente como um veículo para a expressão de sua mensagem, é condicionado por aquilo que representa, sendo a qualidade dessa representação dependente da mestria do autor em dissimular a sua técnica por trás do modo como articula os significantes que conformam a materialidade de sua obra, tanto melhor quanto mais parecer natural.

O problema de uma distinção estanque entre ambas essas constelações é o mesmo que foi anteriormente apresentado como o problema da autoria das Memórias póstumas de Brás Cubas. A sua superação depende da consideração de que, se autor e personagem só se originam a partir de sua co-dependência mútua, a visualização dessa co-dependência pressupõe uma constelação ainda mais originária que as supracitadas, única capaz de trazer à luz os seus nexos a princípio inaparentes. Essa constelação, que faz as vezes de origem, não é outra senão a própria obra, em que as dicotomias pressupostas pela hermenêutica positivista são dialeticamente suprimidas ou superadas.

No âmbito dessa superação dialética (Aufhebung), que acima chamamos de luta, torna-se claro o caráter derivado dos conceitos tradicionalmente utilizados para interpretar as obras de arte. Sujeito e objeto, liberdade e necessidade, identidade e diferença, intenção e realização, significado e significante, forma e matéria, autor e personagem não existem em si, mas apenas no âmbito de um jogo de forças que lhes é anterior, e que, uma vez posto em movimento, é a condição de possibilidade para uma experiência estética que a nossa tendência cotidiana à utilização desses conceitos – fundada, diga-se de passagem, na própria estrutura da linguagem como comunicação – complica a ponto de impossibilitar.

Nas Memórias póstumas de Brás Cubas, há ainda um complicador adicional para a compreensão da tensão dialética entre identidade e diferença instaurada por toda obra de arte que faça jus a esse nome. Nelas, o problema da autoria é reduplicado, na medida em que, analogamente à relação entre Machado de Assis e Brás Cubas, há uma relação entre o Brás Cubas-narrador – que se auto-intitula um “defunto autor”48 – e o Brás Cubas-personagem da própria narração.

Assim, uma interpretação dessa obra, além de evitar a hipóstase positivista de um sujeito por trás dela, deve começar da maneira mais singela, evitando tanto quanto

48 MP, I, p. 13.

possível sobrecarregá-la com preconceitos filosóficos estranhos à sua dinâmica interna. Deve buscar uma disposição que, para Fernando Pessoa, é a primeira condição de toda e qualquer interpretação. Escreve o poeta:

O entendimento dos símbolos e dos rituais (simbólicos) exige do intérprete que possua cinco qualidades ou condições, sem as quais os símbolos serão para ele mortos, e ele um morto para eles. A primeira é a simpatia; não direi a primeira em tempo, mas a primeira em simplicidade. Tem o intérprete que sentir simpatia pelo símbolo que se propõe interpretar. A atitude cauta, a irônica, a deslocada – todas elas privam o intérprete da primeira condição para poder interpretar.49

A simpatia, de acordo com essa definição, é uma disposição de ânimo que se afasta das atitudes cauta, irônica e deslocada, na medida em que, ao contrário destas, não pressupõe, ao menos de início, uma distância essencial entre o dito e uma suposta intenção escondida por trás e na base de todo dizer. Se a atitude cauta é aquela que tem como princípio não se deixar enganar, não se deixar levar pela obra de arte, e que portanto busca sempre no universo extra-artístico dados objetivamente verificáveis que possam servir de fundamento às “ficções dos artistas”; se a atitude irônica é aquela que se recusa a aceitar “ingenuamente” que “o que nós vemos das cousas são as cousas”50; e se a atitude deslocada é aquela que desloca o ato de leitura da obra em si mesma para outra instância qualquer, sendo a um só tempo cauta e irônica, a atitude simpática, não por acaso “a primeira em simplicidade”, é aquela que, simplesmente, faz com que o intérprete se demore junto à obra mesma que se propõe a interpretar, tentando colocar-se em um páthos, em um compasso semelhante ao dela, e evitando, tanto quanto possível, a antipática saída de buscar alhures o seu sentido.

No caso específico das Memórias póstumas de Brás Cubas, uma atitude mais simpática e menos apressada dos críticos tradicionais teria feito com que percebessem o fato de que, como toda obra de arte que faça jus a esse nome, ela traz em si mesma a chave para a sua interpretação, sendo a um só tempo “poesia e poesia da poesia”51. Brás Cubas, o personagem-autor, o autor-personagem, cuja própria construção subverte o problema da autoria como concebido tradicionalmente, deve, antes de mais nada, ser ouvido. Ouvido, ao menos de início, com a simpatia que espera “angariar da opinião”. E

o que ele nos diz, ao cabo de seu prólogo ao leitor, verdadeiro tratado de hermenêutica

49 PESSOA, F. “Nota preliminar a Mensagem”. In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 69. 50 PESSOA, F. “Ficções do interlúdio”. Em: Op. cit., p. 217. 51 SCHLEGEL, F. apud SONDEREGGER, R. Für eine Ästhetik des Spiels: Hermeneutik, Dekonstruktion und der Eigensinn der Kunst. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2000, p. 143.

da obra de arte literária – pelo menos da sua – contradiz frontalmente o antipático positivismo de muitos de seus críticos. Ouçamos ainda uma vez as suas palavras: “A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.”52

1.3. O problema da exemplaridade das Memórias póstumas

Se é verdade que autor e personagem só vêm a ser o que são nessa luta ou jogo, nessa tensão instalada pela obra, a pergunta pela origem do autor Machado de Assis ganha uma outra dimensão. Ainda que de forma alguma se devam desprezar as circunstâncias históricas em que ele viveu e produziu, e menos ainda as outras obras que redigiu antes e depois das Memórias póstumas de Brás Cubas, o fato de o presente trabalho ter como objeto esse romance em particular, e não outra obra do “mesmo” Machado de Assis, tem como fundamento, além da arbitrariedade que sempre se liga a uma decisão pessoal, a hipótese de que esse livro, publicado em fascículos ao longo do ano de 1880, pode ser lido como a origem de Machado de Assis, como o momento privilegiado em que, a partir de seu confronto com (a narração de) Brás Cubas, forjou-se a sua identidade autoral e ele veio a ser o seu conceito.

As Memórias póstumas de Brás Cubas, como origem, tornam possível uma construção da pré-história e da pós-história do autor, permitindo ao intérprete distinguir entre o que, na sua pré-história, foi fundamental à constituição de sua identidade autoral, ou estilo, e o que, em sua pós-história, aponta para um aprofundamento ou uma transformação daquela identidade. Essa consideração explica o privilégio que, neste trabalho sobre a obra de Machado de Assis, será conferido às Memórias póstumas, assim como o silêncio quase absoluto em relação ao resto de sua produção.

O conceito de origem aqui empregado, como já terá ficado patente, pressupõe que a obra de arte instala uma experiência do tempo distinta da cotidiana, e, por isso, aparece como uma cesura no tempo cronológico e homogêneo que está à base daquela idéia de uma causalidade linear que orienta a crítica positivista das obras de arte.

O que essa concepção menos abstrata do tempo contida na idéia de cesura dá a entender é que a origem de uma obra de arte não pode ser reduzida a uma série linear de condicionamentos que estariam à base de sua elaboração. Ao contrário, é apenas da interpretação da obra de arte como original, como contendo algo de irredutível a seus

52 MP, “Ao leitor”, p. 11.

condicionamentos, que se poderá, após a leitura – ou postumamente, nas palavras de Machado de Assis –, discernir as condições que importam à sua gênese daquelas que lhe são indiferentes, mera contingência da vida empírica de seus autores ou da época em que foram geradas.

A impossibilidade de uma fundamentação a priori da exemplaridade das Memórias póstumas de Brás Cubas remete-nos novamente para a obra e reitera, ainda uma vez, o aforismo que Brás Cubas grava no pórtico de suas memórias: “A obra em si mesma é tudo.”53

1.4. O problema da autonomia das Memórias póstumas

“A obra em si mesma é tudo”. Com relação ao problema da interpretação, não poderia haver tomada de posição mais explícita do que essa. Nesse aforismo, o autor apresenta-nos a sua própria compreensão do modo como a sua obra deve ser interpretada, ou, se se preferir, a sua própria teoria da interpretação. Essa tem como pilar fundamental a afirmação da autonomia da obra de arte, e a exigência de que o leitor lhe seja fiel.

Uma vez que, como já foi indicado na introdução deste trabalho, nos dispomos a respeitar a autonomia que Brás Cubas reivindica para sua obra e a princípio nos recusamos a investigar as condições objetivas que estariam à base de sua produção – “seria interessante, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra”54 –, cumpre-nos agora indagar o seguinte: o que, nas Memórias póstumas de Brás Cubas, é necessário ao entendimento da obra? Ou, para retomar as palavras de Brás Cubas: o que, nas Memórias, constitui “a obra em si mesma”?

Há algumas páginas atrás, a partir da menção à nota preliminar de Fernando Pessoa a seu livro Mensagem, que reforça a nota ao leitor de Brás Cubas, em que ele confessa a esperança de “angariar a simpatia da opinião”, falamos na simpatia como “a primeira condição para poder interpretar”. Esse privilégio concedido à simpatia pressupõe uma compreensão específica da natureza da interpretação, justamente a compreensão apresentada nas Memórias póstumas de Brás Cubas.

A afirmação do privilégio da simpatia decorre, fundamentalmente, da defesa da autonomia da obra de arte. Uma obra de arte autônoma, como já se discutiu anteriormente, é aquela que não se deixa pensar como um mero “suporte para um

53 MP, “Ao leitor”, p. 11. 54 MP, “Ao leitor”, p. 11.

sentido que poderia ser igualmente expressado por outros suportes”55; é aquela em que matéria e forma, significante e significado, intenção e realização não se deixam separar; é aquela, em suma, que reivindica do leitor a suspensão provisória de seus preconceitos e a disposição de abandonar-se à dinâmica da própria obra.

Supondo-se que a obra de arte não é a materialização ou o reflexo transparente da intenção de seu autor, sua interpretação não pode consistir na tentativa de o intérprete colocar-se no lugar do sujeito criador, como era uso na hermenêutica tradicional (de um Schleiermacher, por exemplo). Brás Cubas, como vimos, abre a sua narrativa falando que o conhecimento do lugar do sujeito criador, ou, em suas palavras, “do processo extraordinário que empreguei na composição destas memórias, trabalhadas cá no outro mundo”, “é desnecessário ao entendimento da obra”. O que ele não teria como explicar em detalhe, porque, como veremos adiante, jamais chegou a ter consciência disso, é que

o conhecimento objetivo da posição do sujeito criador e de suas intenções não é apenas desnecessário, é impossível. Como conhecer as intenções do autor se, rigorosamente, nem sequer ele as conhece? E mais: ainda que o autor pudesse conhecer e controlar suas próprias intenções, quem é que nos garantiria que as intenções do autor podem ser identificadas às intenções da obra, ou seja, àquilo que a obra quer dizer?

A (última) pergunta acima aponta para a tendência ingênua de superar os problemas hermenêuticos inerentes ao intencionalismo através de sua simples inversão. O intérprete desiludido com a possibilidade de determinar a intenção do autor de uma obra de arte, ou de colocar-se em seu lugar, tende a buscar como saída a afirmação de um “intenção da obra”, isto é, de um sentido objetivo da obra, que não se confundiria com a “intenção do autor”. A partir dessa crença em um sentido objetivo da obra de arte, que nela repousaria independentemente das intenções de seu criador e das disposições de seus possíveis leitores, tende a surgir uma teoria da interpretação que confere ao leitor uma posição eminentemente passiva na gênese da obra de arte, cujo sentido seria uma propriedade imanente ao próprio objeto artístico e, como tal, independente da história de sua recepção.

Como já terá ficado claro, o conflito entre as hermenêuticas intencionalista e objetivista pode ser remontado a duas diferentes concepções da simpatia como fundamento da interpretação. No intencionalismo, o intérprete tem como tarefa colocar-se em uma disposição de ânimo semelhante à do autor, para assim conquistar o ponto de

55 GADAMER, H. Die Aktualität des Schönen. Stuttgart: Reclam, 1977, p. 44.

vista privilegiado para a compreensão de suas obras. Já no objetivismo, a tarefa do intérprete é submeter-se à letra do texto, ponto de partida para compartilhar de seu espírito. Tanto para os intencionalistas quanto para seus opositores, o ato de leitura é um simples meio para um fim, uma escada que, uma vez utilizada, deve ser jogada fora, na medida em que permaneceria externa tanto às intenções soberanas do autor quanto ao sentido objetivo da obra.

O problema de ambas essas compreensões do ato de leitura, mormente no caso das Memórias póstumas de Brás Cubas, é que elas negligenciam o fato de essa obra não apenas começar com um prólogo endereçado diretamente ao leitor, mas ser inteiramente permeada por intrusões do narrador no curso da narrativa, que visam quase sempre a suspender as pretensas naturalidade e transparência do ato de leitura, revelando ao leitor (desatento) o quanto a sua postura interpretativa define os contornos do que aparece.

Nesse sentido, esboça-se uma clara analogia entre a dialética autor-personagem e a dialética leitor-obra. Assim como o autor e o personagem não preexistem ao seu encontro na obra, um encontro necessariamente conflituoso em que cada um dos pólos (a princípio abstratos) só vai adquirindo concretude na luta contra a resistência do outro,

o leitor e a obra condicionam-se mutuamente. Se sem uma obra é evidente que não há leitura, menos evidente, mas não menos verdadeiro, é que sem leitura não há obra. A obra só vem a ser a partir da leitura que só vem a ser a partir da obra que só vem a ser a partir da leitura...

A estrutura circular que caracteriza tanto a obra de arte quanto a sua interpretação, indissociáveis porém diferentes, exige uma compreensão da simpatia distinta das tradicionais. Contra os subjetivistas – que identificam a simpatia pelo autor a uma auto-anulação do próprio leitor – e contra os objetivistas – que identificam a simpatia pela obra a uma auto-anulação do próprio leitor –, o que o co-pertencimento ontológico entre obra e leitura indica é que uma auto-anulação do leitor implicaria uma anulação da obra. Desse modo, quando Fernando Pessoa e Brás Cubas atribuem à simpatia um privilégio hermenêutico, isso significa que a simpatia, pensada como o ato do leitor de colocar-se na mesma (sin) disposição afetiva (páthos) da obra – esse outro com o qual o leitor deve se confrontar e cuja alteridade é fundamental para o movimento de constituição de sua própria identidade –, é o conceito que permite pensar

o limite entre leitor e obra, entre eu e outro.

A textura desse entre não pode ser determinada positivamente, pois isso implicaria a pressuposição da realidade substancial da obra antes de seu contato com o leitor ou (a pressuposição da realidade substancial) do leitor antes de seu contato com a obra, o que acarretaria a destruição do círculo hermenêutico que caracteriza a vida da obra. Embora uma tal destruição permaneça sempre apenas aparente, como atestam o fracasso das interpretações univocamente subjetivistas ou objetivistas, que só se sustentam enquanto permanecem cegas a seus pressupostos ontológicos, essa aparência de destruição do círculo hermenêutico já é suficiente para inviabilizar uma experiência da obra de arte, que, respeitando a sua autonomia e permanecendo simpática a seu modo de ser específico, recusa-se a positivar a sua origem e o seu sentido.

O problema da autonomia da obra de arte, no que diz respeito ao escopo deste trabalho, pode ser resumido nas seguintes perguntas: como é possível ao intérprete recusar o modo cotidiano de articulação da linguagem que, baseado no princípio do terceiro excluído, não reconhece, não aceita e até mesmo condena como um erro lógico

– uma petição de princípio! – a circularidade que caracteriza a estrutura da experiência estética? Como o leitor pode escapar de sua própria sombra, ou seja, da estrutura predicativa e positivadora da linguagem que julga empregar, mas que, em última instância, é quem o emprega? Supondo que a simpatia, como a entendem Machado de Assis e Fernando Pessoa, é mesmo “a primeira condição para poder interpretar”, como é possível construir uma “leitura simpática” das Memórias póstumas de Brás Cubas?

1.5. O problema do círculo hermenêutico nas Memórias póstumas

A construção de uma “leitura simpática” das Memórias póstumas de Brás Cubas pressupõe uma compreensão preliminar do que se está aqui entendendo por páthos, termo grego que se pode traduzir por afeto, humor, clima, disposição afetiva, afinação, tonalidade afetiva, ou mesmo espírito.56 Pressupõe igualmente a pergunta pela possibilidade de um intérprete colocar-se no mesmo páthos da obra que se propõe a interpretar, uma pergunta cuja resposta é tanto menos evidente quanto mais se atenta para a complexidade dos termos da própria pergunta. Afinal, se a obra não pode ser pensada independentemente de sua interpretação, como é possível formular a exigência de o intérprete colocar-se no mesmo páthos da obra sem substancializá-lo, incorrendo no mesmo erro dos críticos que acima chamávamos objetivistas? Por ora, essa questão terá de ficar em aberto.

56 A tradução de páthos por espírito é uma interpretação livre do lugar que, a posteriori, se poderia conferir a esse conceito na discussão hermenêutica tradicional sobre a diferença entre o espírito e a letra de um texto.

De qualquer modo, a conclusão da seção anterior se sustenta: ao falar que “a obra em si mesma é tudo”, Brás não pode estar se referindo à obra pensada como um objeto cujo sentido estaria dado independentemente da interpretação. A afirmação de que “a obra em si mesma é tudo” justamente no contexto de uma nota “ao leitor” só pode significar que a experiência estética, em que leitor e obra confrontam-se, é tudo.

Essa afirmação, no contexto em que é feita, soa imediatamente como um libelo contra a tendência positivista da “gente grave” que recusa o “puro romance”, buscando sempre a verdade objetiva; e contra a tendência à alienação da “gente frívola”, que busca apenas “o romance usual”, descartando inteiramente o potencial subversivo da obra de arte. A simpatia reivindicada pelo livro de Brás Cubas situa-se entre a concepção da obra de arte como instrumento didático e a concepção da obra de arte como mercadoria da indústria cultural, produto que serve unicamente à diversão.

Tendo em vista que, na nota “ao leitor”, Brás não deixa claro como compreende positivamente a textura desse entre, cabe ao leitor avaliá-la. O ato de avaliar ou dar preço (pretium) ao entre (inter) que constitui a obra de arte como o espaço em que se dá

o confronto de autor e personagem, e, em um nível mais fundamental, de leitor e obra, pode ser caracterizado, com o apoio na própria etimologia da palavra, como o ato de interpretar. Indo além do contexto imediato da nota “ao leitor”, podem-se interpretar as palavras de Brás Cubas sob um viés kantiano. Ao afirmar que sua obra não é nem instrumento didático nem serva da diversão, Brás estaria afirmando que a especificidade da experiência estética que constitui a obra de arte é a sua recusa do pensamento instrumental. Uma obra de arte, em princípio, não serve nem para o conhecimento de objetos da natureza (experiência teórica) ou de preceitos morais (experiência prática), nem para agradar os sentidos. Uma obra de arte, em princípio, não serve para nada, não serve a nada. O prazer que ela gera deve ser necessariamente um prazer desinteressado, na medida em que, se fosse serva dos interesses teóricos, práticos ou fisiológicos do homem, a obra de arte não seria autônoma. A afirmação de sua autonomia, de que é a arte que concede a si própria (auto) a sua própria lei (nomos), entretanto, não implica a negação da possibilidade de a arte, mediatamente, ser posta a serviço de interesses estranhos a si própria, como os interesses ligados ao conhecimento, à moral e à diversão. Também sob esse aspecto, confirma-se o espaço da arte como o entre – no caso, o desinteresse e o interesse – que cabe à interpretação apreciar. E configura-se, se nos é permitido um jogo etimológico “subversivo”, a natureza da interpretação como entretenimento, como a ação (do intérprete) de permanecer postado, de conservar-se (do latim, tenere) no espaço próprio da obra de arte, o entre, recusando a tentação de eleger definitivamente um dos pólos entre os quais ela o obriga a oscilar e assim resistindo à tendência de sufocar o seu movimento, a sua dinâmica, o seu caráter refratário a qualquer determinação – ou, em vocabulário kantiano, a qualquer juízo determinante.57

A defesa da autonomia da obra de arte por oposição ao tipo de pensamento instrumental que marca as nossas ocupações (cotidianas) teóricas e práticas leva um filósofo como Kant a determinar que o aparecimento de um prazer desinteressado é o índice (fenomênico) que permite distinguir uma experiência estética de outros tipos de experiência. A partir dessa articulação entre o desinteresse e a experiência estética, impõe-se uma exigência extraordinária ao intérprete de uma obra de arte: abordá-la sem permitir que os seus interesses interfiram no que está lendo.

Essa exigência, como já se discutiu páginas atrás, é o que motiva as compreensões de simpatia dos críticos de arte subjetivistas e objetivistas, que vêem na simpatia um instrumento para a auto-anulação do leitor e para a compreensão da obra de arte em todo o esplendor de sua autonomia. Como mostramos, no entanto, uma vez que se admite a indissociabilidade de leitor e obra, a auto-anulação do leitor implicaria a anulação da obra.

Na realidade, a própria crença dos críticos supramencionados na possibilidade de uma auto-anulação do leitor já repousa sobre um ponto de partida inconsistente: a idéia de reflexão. Esses críticos de algum modo crêem que, por intermédio de um ato consciente, o intérprete poderia não apenas discernir quais são os interesses potencialmente perigosos para a sua interpretação desinteressada da obra de arte, como também impedir a ação projetiva desses interesses. Sem discutir explicitamente, esses críticos pressupõem uma visão cartesiana do homem, segundo a qual o homem pode ser

57 O problema gerado por essa caracterização da obra de arte como entretenimento é que, se retomarmos a nota ao leitor de Brás Cubas a partir dessa breve menção à diferença estabelecida por Kant entre o caráter específico da experiência estética, que ele associa ao juízo reflexionante, e o caráter específico das experiências ligadas ao conhecimento e à moral, que ele associa ao juízo determinante, ficaremos embaraçados com a afirmativa do narrador das Memórias póstumas de que “a obra em si mesma é tudo”. Essa afirmação sugere que o círculo hermenêutico tem uma vigência absoluta, e perpassa tudo, isto é, todos os níveis da experiência humana, inclusive os níveis teórico e prático, onde Kant recusa veementemente a sua presença. Nesse sentido, com essa afirmação Brás Cubas estaria propondo a elevação do caráter específico da experiência estética a paradigma de toda e qualquer experiência possível, e o que começou como uma defesa da autonomia da obra de arte acabaria como uma defesa de sua soberania. Em suma: Brás Cubas afirma tão veementemente a autonomia da obra de arte que acaba por negá-la – ao menos sob a ótica de um kantiano. Ainda não é hora, no âmbito deste trabalho, de nos posicionarmos com relação a esse conflito de interpretações, que contrapõe os defensores de uma autonomia da obra de arte de molde mais kantiano e os defensores de uma autonomia da obra de arte que, ampliando a abrangência da experiência estética e assim dinamitando a topologia kantiana da experiência, acabam por afirmar a sua soberania. Voltaremos mais tarde a essa questão.

definido como uma auto-consciência absolutamente racional e livre, que, como tal, seria capaz de reconhecer e suprimir todos os condicionamentos e princípios tradicionais que impedem uma visão clara e distinta, isto é, imparcial, da realidade, trate-se aí de um ente da natureza ou de uma obra de arte.

Essa visão do homem como um sujeito sempre idêntico a si mesmo, apartado do mundo e dos outros homens, cuja identidade não é essencialmente conformada pelo contato com a alteridade e por isso pode ser separada dos predicados (pretensamente) acidentais que lhe advêm dela, é justamente a visão do homem que Machado de Assis desconstrói ao longo de sua obra. Nas Memórias póstumas, como veremos no próximo capítulo, o meio em que Brás Cubas vive de forma alguma pode ser reputado acidental para a conformação de sua identidade, e o narrador chega mesmo a postular filosoficamente a identidade entre “tornar a si” e “tornar aos outros”58, mais uma vez indicando a co-pertença fundamental entre eu e outro que já apareceu, no âmbito deste trabalho, como a co-pertença entre leitor e obra.

No âmbito da obra machadiana, porém, a crítica à compreensão cartesiana do homem encontra a sua versão mais célebre e mais sintética em um conto publicado quase à mesma época da publicação em livro das Memórias póstumas de Brás Cubas. Em O espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana, Machado de Assis mais uma vez utiliza um personagem-narrador, o Jacobina, que, em um encontro com quatro amigos no morro de Santa Teresa, no qual se discutiam questões metafísicas, permanecia calado, até que a conversa recaiu sobre a natureza da alma e os outros instaram pela sua opinião. Ele prometeu dar-lha, desde que não fosse interrompido, pois tinha horror à controvérsia. A sua tese era a seguinte: “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro...”59, uma alma interior, outra exterior. Para ilustrar a sua tese, Jacobina conta aos outros uma estória de seus vinte e cinco anos, quando ganhou um posto de alferes e passou a viver do reconhecimento alheio à sua posição social, e tanto e tão intensamente, que “o alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade.”60 Prova disso é que um dia, tendo ficado sozinho no sítio de uma tia, que saíra em viagem e cujos escravos fugiram logo em seguida, o Jacobina

58 MPBC, XCIX, p. 129. 59 MACHADO DE ASSIS, J.M. “O espelho”. In: Papéis avulsos. Rio de Janeiro; São Paulo; Porto Alegre: Jackson, 1952, p. 259. 60 Ibidem, p. 263.

começou a desesperar-se, não encontrando mais em si qualquer consistência. Ao olhar-se no espelho do título, “o próprio vidro parecia conjurado com o resto do Universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra.”61 Atarantado, Jacobina preparava-se para fugir daquele ermo, quando teve uma idéia:

Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. (..) Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo, olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regímen pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir...62

Se o conto terminasse aqui, poder-se-ia acusar Machado de Assis de ter proposto uma solução excessivamente simplista para o problema da identidade, como se, invertendo o privilégio concedido por um Descartes à “alma interior”, ele simplesmente estivesse propondo conceder o mesmo privilégio à alma exterior, ao “olhar agudo e judicial da opinião”63 . Ocorre que, imediatamente depois da extensa passagem supracitada, ele fecha o conto com uma breve frase que subverte inteiramente o seu sentido mais superficial: “Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas.”64

Essa (in)conclusão aponta para a consciência que Machado de Assis tem da complexidade do problema da identidade e, de modo correlato, do problema da reflexão, que sua narrativa corporifica de modo exemplar ao apresentar as agruras do Jacobina diante do espelho, o médium de reflexão por excelência. Ao contrário do que uma primeira leitura do conto sugere, seu narrador não está propondo uma simples inversão do postulado cartesiano segundo o qual a única certeza incontestável é a do próprio pensamento como pensamento de si, ou da própria consciência como autoconsciência. Apesar de Jacobina a certa altura afirmar que “o alferes eliminou o homem”, e que, sem a farda, sem a “alma exterior”, ele não possuía uma identidade “nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra”, isso não implica a simples solução do problema da identidade pela supressão de um de seus termos, no

61 Ibidem, p. 269. 62 Ibidem, p. 270s. 63 MP, XXIV, p. 54. 64 MACHADO DE ASSIS, J.M. “O espelho”. In: Op. cit., p. 271.

caso a “alma interior”. Implica tão somente a denúncia de que a solução tradicional do problema, a supressão da “alma exterior”, tampouco é aceitável.65

No que diz respeito à tentativa de fornecer uma definição do que se está aqui entendendo por uma “leitura simpática”, “primeira condição para poder interpretar” as Memórias póstumas de Brás Cubas cuidando para não ferir sua autonomia, o conto O espelho aponta para a impossibilidade de uma dissociação entre a alma interior – o eu sem mundo – e a alma exterior – o mundo em sua pura alteridade. Indissociabilidade, cumpre repetir, não implica igualdade. Implica, ao contrário, diferença. Só não se podem dissociar pólos que, embora engalfinhados em uma luta pela própria afirmação, não se diluem e indiferenciam um no outro. Nesse sentido, o espaço tenso da diferença é

o espaço através do qual o eu se afirma lutando contra a tendência do mundo a assimilá-lo, convertendo-o em mera “sombra de sombra”, em coisa (ou instrumento); e o mundo, por sua vez, afirma-se resistindo à sua exclusão por um eu que se pretende essencialmente sem mundo, impondo a esse mesmo eu, como no exemplo de Jacobina, a descoberta da interioridade da exterioridade.

Se é apenas nesse combate que se forjam eu e mundo, pólos que só existem de modo abstrato antes dessa luta por afirmação, fica revogada a anterioridade ontológica tradicionalmente concedida ao eu. A anterioridade ontológica, repita-se, é do combate. Assim, não é dada ao eu a possibilidade de recuar um passo para antes de seu contato com o mundo, para um tempo de (i-munda) pureza. O ideal da reflexão como a tentativa de encontrar-se a si mesmo livre dos condicionamentos do mundo está fadada ao fracasso. O homem chega sempre atrasado ao encontro marcado consigo mesmo.

A alternativa a essa concepção essencialista e portanto dicotômica da relação entre o eu e o mundo, o sujeito e o objeto, brota da percepção de que ser homem já sempre implica necessariamente ser-no-mundo. Ser, para o homem, já sempre implica ser-aí em uma compreensão do ser, atravessado e orientado pelos princípios tradicionais

– cujo conjunto Heidegger chama de “mundo”66 – que articulam a sua circunstância, os quais possibilitam que as coisas entre as quais vive façam sentido, que o seu mundo lhe seja familiar. Ser, para o homem, já sempre significa ser (esse) em meio a (inter) essas coisas familiares, de modo que é possível definir o modo de ser que caracteriza o homem como constitutivamente interessado.

65 Para uma discussão aprofundada do problema, ver PUCHEU, A. “Literatura, para que serve?” In: CASTRO, M. A. (Org.) A Construção Poética do Real. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004, pp. 224-242. 66 Cf. HEIDEGGER, M. Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer, 1993, p. 64.

O problema é que essa familiaridade do mundo não é possível sem antecipação, projeção e identificação. Sem a constante redução do novo ao já sabido, do outro ao mesmo, não seria possível a experiência do mundo como um mundo familiar, que não obstante é justamente a experiência do mundo à qual estamos habituados. A constatação do caráter constitutivamente interessado da compreensão parece conduzir a uma aporia

o intérprete que se propõe a interpretar as Memórias póstumas de Brás Cubas sem ferir a autonomia que a própria obra reivindica. Afinal, se a autonomia da obra de arte depende daquele desinteresse que, desde Kant, é a marca da experiência estética, e esse desinteresse, por sua vez, parece contradizer a própria estrutura da compreensão, como é possível acolher a obra de arte em sua alteridade, sem reduzi-la à expectativa de sentido (Sinnerwartung) que previamente tendemos a projetar sobre ela?

Essa questão aponta mais uma vez para o círculo hermenêutico. Se a reflexão, como concebida tradicionalmente, não possibilita ao homem ver-se vendo, isto é, não possibilita ao homem conhecer imparcialmente os preconceitos que condicionam a sua compreensão, para assim livrar-se deles ou ao menos controlar a sua influência, o problema da interpretação precisa ser deslocado. Não se trata mais de perguntar como é possível escapar ao círculo hermenêutico. Desse círculo, é preciso reconhecer, não há saída. Trata-se, sim, de investigar como é possível escapar à conversão do círculo hermenêutico em um círculo vicioso.67 Seria possível escapar à tendência à mera utilização de uma obra de arte para a confirmação de pontos de vista que o próprio intérprete já havia antecipadamente projetado nela?

Essa é uma pergunta que, em princípio, deve ser colocada por qualquer leitor de qualquer obra de arte, literária ou não.68 Ao apontar para o caráter produtivo ou projetivo da leitura, ela aproxima o leitor do autor, e, consequëntemente, chama a

67 Essa formulação da tarefa do intérprete foi tirada da comunicação do Prof. Bernardo Barros Coelho de Oliveira, intitulada “Crítica e interpretação: aproximando Benjamin e Gadamer”, apresentada na ANPOF de 2006, realizada em Salvador. 68 Aqui, faz-se necessário chamar a atenção do leitor para o fato de que este trabalho não tomou para si a tarefa de aprofundar a discussão acerca da diferença entre a interpretação de uma obra de arte literária e a interpretação de obras de arte pertencentes a outros registros (como a pintura, a música e o cinema). Essa lacuna se justifica, em primeiro lugar, pela necessidade, intrínseca a qualquer estudo acadêmico, de um recorte (cf. seção 1.1). Em segundo lugar, pode ser remontada a uma passagem de Gadamer, em que ele pensa a leitura como a operação fundamental da compreensão, operação que portanto também estaria à base da interpretação de obras de arte pertencentes a registros que não o (explicitamente) literário. Escreve o filósofo: “Ler não é apenas soletrar e reconhecer uma palavra depois da outra, mas sim, antes de mais nada, o ato de perfazer o movimento hermenêutico contínuo, que é estimulado pela expectativa de sentido do todo (Sinnerwartung des Ganzen) e que, a partir [da integração] de cada singular (vom Einzelnen her), finalmente apreende o sentido do todo. (...) ‘Lê’-se um quadro, como se costuma dizer, do mesmo modo que se lê um escrito. Começa-se a ‘decifrar’ um quadro como um texto.” (GADAMER, H. Die Aktualität des Schönen. Stuttgart: Reclam, 1998, p. 36ff.

atenção para a imbricação entre os três pares dialéticos cuja análise privilegiamos ao longo desse capítulo: os pares autor-personagem; leitor-obra; eu-outro. O que esses pares têm em comum é o fato de cada um dos pólos que os nomeiam só virem a ser o que são a partir do combate instaurado pela sua diferença, que, como tal, é a dimensão69 que lhes dá origem e consistência.

No caso das Memórias póstumas de Brás Cubas, a pergunta pela possibilidade de uma leitura que, apesar de reconhecer a estrutura circular da compreensão, preserve a sua autonomia, ocupa um lugar privilegiado, na medida em que perde o caráter puramente formal de uma pergunta que, em princípio, qualquer leitor de qualquer obra de arte deve colocar, e ganha a concretude de uma questão que põe em jogo a construção desse romance em particular.

O problema da reflexão não é o tema central de qualquer romance, mas sem dúvida o é de um livro de memórias, em que o narrador tem como propósito explícito “confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser”.70 Essa confissão pressupõe a necessidade do Brás Cubas-narrador ver-se a si mesmo como se sua identidade pudesse aparecer refletida em um espelho. Essa visão reflexiva, por sua vez, pressupõe interpretação. E essa interpretação, de acordo com a nossa descrição do círculo hermenêutico como um círculo potencialmente vicioso, baseia-se em uma expectativa de sentido que, postumamente, Brás Cubas lança sobre o todo de sua vida, na tentativa de unificar em uma identidade a multiplicidade de suas vivências.

O problema da reflexão nas Memórias póstumas de Brás Cubas consiste portanto em saber se a narrativa de Brás Cubas deve ser lida como uma simples projeção do sentido que, a partir do “outro mundo”, ele já lhe atribuía, ou se, no abandono à lembrança dos episódios que constituem a sua biografia, aparece algo que subverte a sua expectativa de sentido original. Trata-se de saber, em suma, até que ponto a leitura que Brás Cubas faz de sua própria vida deve ser considerada uma leitura paranóica ou não.

69 A utilização do conceito de diferença ao longo de todo esse capítulo foi inspirada no texto A linguagem, de Heidegger, em que ele, ao pensar a co-pertença entre mundo e coisa, assim se expressa: “A di-ferença não intermedeia posteriormente como se mundo e coisa se conectassem a um meio posteriormente acrescentado. Como meio, a di-ferença é mediadora para entregar mundo e coisa para os seus modos de ser, ou seja, para o seu ser em relação ao outro, cuja unidade ela suporta. (...) A di-ferença não é distinção nem relação. A di-ferença é no máximo dimensão para mundo e coisa.” (HEIDEGGER, M. “A linguagem”. Em: A caminho da linguagem. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 19s. 70 MP, XXIV, p. 54.

1.6. O problema da arbitrariedade do ponto de partida hermenêutico

A idéia de uma leitura paranóica é, em princípio, o avesso da idéia de uma leitura simpática. Se o método simpático de leitura está associado à exigência de que o leitor se abandone ao páthos da obra, colocando-se em sintonia com a sua dinâmica e respeitando a sua autonomia, o método paranóico de leitura é aquele em que o leitor, a partir de uma idéia fixa – ou tese – que antecipa o sentido da obra, constrói a sua interpretação de modo a adequar sistematicamente os mínimos detalhes da obra ao que já sabia desde o ponto de partida.

Não fosse pelo círculo hermenêutico, a escolha entre esses métodos seria fácil. O problema gerado pelo reconhecimento da estrutura circular da compreensão, porém, nos obriga a reconhecer a impossibilidade de escaparmos inteiramente ao procedimento paranóico. Sobretudo em uma tese de doutorado, a própria escolha do tema já costuma ser orientada por uma idéia fixa que, acompanhando a análise da obra escolhida, alimenta-se da (paranóica) esperança de comprovação.

A esperança de comprovação da tese inicial, evidentemente, não a garante. É possível que, ao longo do movimento de interpretação, o ímpeto (paranóico) de comprovar a tese inicial ceda lugar ao ímpeto (simpático) de o leitor pura e simplesmente demorar-se junto à obra, tirando dela o prazer desinteressado de que fala Kant e recusando a sua tendência primitiva a instrumentalizá-la. Quando ocorre uma tal quebra do ímpeto comprobatório, que é sempre impulsionado pelo pensamento instrumental, instaura-se o terreno em que uma leitura simpática da obra se torna possível.

Por outro lado, por mais que a idéia fixa que motiva a escolha de uma obra de arte como objeto de análise pareça arbitrária, ela nunca o é inteiramente. O simples fato de um intérprete ser acossado pela necessidade de comprovar uma determinada idéia fixa, e não outra qualquer, acerca de uma obra de arte pressupõe algum nexo anterior entre a referida idéia e a obra em questão. Esse nexo não pode ser inteiramente infundado, já que de outro modo a idéia não teria força suficiente para fixar-se. Assim, é preciso supor que a arbitrariedade do ponto de partida não pode ser pensada independentemente de algum nível de simpatia entre a idéia fixa e a obra que ela pretende explicar.

Nesse sentido, também as idéias de uma leitura (puramente) paranóica e de uma leitura (puramente) simpática de uma obra de arte são abstrações daquilo que concretamente só se dá como tensão e combate entre forças interpretativas que vivem de sua co-dependência, deixando de ser o que são tão logo as isolamos e contrapomos estaticamente uma à outra. Isso não significa, naturalmente, que não se possa falar em leituras mais ou menos paranóicas, ou em leituras mais ou menos simpáticas, já que é justamente a preocupação de construir uma leitura que, dentro do possível, preserve a autonomia da obra de arte, que está na origem deste trabalho.

1.7. O problema fundamental da fenomenologia referido às Memórias póstumas

Uma vez esclarecida essa tensão dialética entre arbitrariedade e necessidade do ponto de partida hermenêutico, é preciso esclarecer que a idéia fixa que está na base deste trabalho nasceu da leitura de uma frase oracular, justamente aquela que Brás Cubas gravou no pórtico de suas memórias: “A obra em si mesma é tudo.”71

Ao ouvir esse oráculo, como aliás costuma acontecer desde os gregos, fui inconscientemente reportado, pelos caminhos de uma associação menos livre do que poderia à primeira vista parecer, até uma outra sentença, não menos aforismática: “rumo às coisas mesmas! (Zu den Sachen selbst!)”.

A partir dessa associação, já não me foi mais possível separar a tarefa de pensar a autonomia da obra de arte reivindicada por Brás Cubas e o imperativo fenomenológico de o filósofo buscar as coisas mesmas. A co-pertinência entre a palavra do poeta (Machado de Assis) e a palavra do filósofo (Husserl) acabou convertendo-se em uma idéia fixa que, “uma vez pendurada [no trapézio que eu tinha no cérebro], entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te”.72

A idéia era na verdade uma tese. A tese de que a leitura fenomenológica é a leitura mais adequada a uma interpretação filosófica das Memórias póstumas de Brás Cubas.

Para analisar até que ponto essa tese se sustenta, é necessário, em primeiro lugar, determinar o que é uma leitura fenomenológica. Em um segundo momento, tratar-se-á de considerar em que medida as Memórias póstumas de Brás Cubas exigem uma tal leitura.

No parágrafo 7 de Ser e Tempo, Heidegger apresenta-nos uma caracterização preliminar de seu conceito de fenomenologia, que, ao menos do ponto de vista formal,

71 MP, “Ao leitor”, p. 11. 72 MP, II, p. 16s.

pode ser lido como uma reformulação da famosa máxima husserliana “Às coisas mesmas!”. Escreve o filósofo: a fenomenologia é um “deixar ver por si mesmo (lógos) aquilo que se mostra, tal como se mostra, a partir de si mesmo (fenômeno)”.73

Já nesta caracterização preliminar, torna-se claro que a fenomenologia não é determinada pelo campo de objetos que se propõe a investigar, como por exemplo a teologia ou a biologia, mas sim pelo modo de abordar o que quer que lhe possa aparecer como fenômeno. De acordo com a sua própria definição, portanto, a fenomenologia é um método de interpretação que não é restrito apenas ao campo da filosofia propriamente dita, mas que se presta igualmente bem a quaisquer outros campos do saber humano, dentre os quais se poderia destacar a literatura.

A especificidade do lógos da fenomenologia, entretanto, só se deixa corretamente apreender a partir de um esclarecimento do que, na fenomenologia, se entende por fenômeno. A que propriamente estamos nos referindo quando falamos em “algo que se mostra, tal como se mostra, a partir de si mesmo”?

A nossa tendência imediata seria a de identificar o fenômeno da fenomenologia aos entes em geral com os quais lidamos no cotidiano, e que aparentemente se mostram a partir de si mesmos. Esta tendência imediata, porém, contradiz o conceito formal de fenomenologia, afinal, caso o fenômeno da fenomenologia se mostrasse cotidianamente a partir de si mesmo, não haveria a necessidade de se estabelecer um método de abordagem desse fenômeno. Assim sendo, se é que faz sentido refletir sobre a fenomenologia como um método de interpretação, é necessário assumir que o fenômeno privilegiado da fenomenologia é “justo o que não se mostra diretamente e na maioria das vezes e sim se mantém velado frente ao que se mostra diretamente e na maioria das vezes”.74

De acordo com Heidegger, isso que só aparece de modo velado em todo o aparecimento da realidade, seja o dos entes com os quais lidamos no cotidiano, seja o da obra literária que pretendemos interpretar, constitui o “sentido e o fundamento”75 do que imediatamente aparece. Ora, isto que, em todo o aparecimento, só se revela re-velandose, é, no âmbito do pensamento heideggeriano, o ser dos entes. O ser dos entes, é, portanto, o fenômeno privilegiado da fenomenologia.

73 HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 1993. p. 65. 74 Ibidem, p. 66. 75 Ibidem.

Ao caracterizar o ser dos entes como fenômeno, Heidegger está se apropriando do tema das ontologias tradicionais, para, no âmbito de sua própria filosofia, deixar ver

o que, ao longo da tradição metafísica, permanecera esquecido: a diferença ontológica. Uma vez que se admite que o ser dos entes já sempre se mostra, embora de modo velado, em tudo o que aparece, a cisão metafísica tradicional entre o ser e o aparecer, entre a realidade e a aparência, entre o mundo inteligível e o mundo sensível, entre o essencial e o acidental, entre o eterno e o histórico, é posta em questão. No âmbito da fenomenologia, o ser perde a sua textura de objeto simplesmente dado, de substância última do real, de ente privilegiado postado para além da marcha do devir, e adquire o caráter dinâmico, constitutivamente histórico, que outrora era a marca característica da aparência.

O ser, fenomenologicamente falando, aparece. Aparece sempre situado, aí. Seu traço distintivo é já sempre ser-aí, Dasein, ser-aí em uma compreensão do ser. Uma vez que se admite que o ser não pode ser apreendido como uma realidade última postada para além de toda e qualquer compreensão, não se trata mais de buscar o tópos utópico, ideal, a perspectiva das perspectivas a partir da qual se poderia contemplá-lo imparcialmente. Ao contrário, de acordo com o conceito formal de fenomenologia, deve-se descrevê-lo “tal como (ele) se mostra, a partir de si mesmo”. Ora, a partir de si mesmo, ele já sempre se mostra em uma compreensão do ser. Assim sendo, a tarefa da fenomenologia de “deixar ver a partir de si mesmo aquilo que se mostra, tal como se mostra, a partir de si mesmo” não é outra senão a tarefa de explicitar a estrutura dessa compreensão do ser.

A explicitação dessa estrutura, do ponto de vista ontológico, que é o ponto de vista de Heidegger em Ser e Tempo, se dá em três momentos, os três momentos que constituem o método fenomenológico como apresentado no parágrafo 7 da obra.

O ponto de partida (Ausgang) do método proposto por Heidegger é inspirado na redução fenomenológica de Husserl. Trata-se, neste primeiro momento, de colocar entre parênteses a nossa relação cotidiana com os entes, no âmbito da qual eles nos aparecem ora como instrumentos, ora como objetos, e de voltar a nossa atenção para a evidência de que as coisas só nos aparecem como aparecem por haverem sido previamente interpretadas de acordo com a compreensão do ser na qual já sempre estamos lançados. “Na natureza”, ensinava o centauro Quíron de Pasolini ao menino Jasão, “não há nada de natural.”76 O fato de, a princípio, a natureza nos parecer natural, deve-se ao próprio modo de aparecimento do ser: a compreensão do ser que serve de “sentido e fundamento” a tudo o que se mostra aparece, ela própria, encoberta em todo o aparecimento. Antes de mais nada, portanto, é imprescindível que o fenomenólogo denuncie a pretensa naturalidade da realidade, chamando a atenção para o interesse a partir do qual ela brota. Tal interesse ou perspectiva, como o princípio articulador de uma determinada realidade, deve ser concebido como o horizonte absoluto para a sua interpretação, já que não se deve conceber nada como estando fora, para além de todo e qualquer interesse.

Se o ponto de partida (Ausgang) do método fenomenológico é a “redução fenomenológica” no sentido acima explicitado, o acesso (Zugang) ao fenômeno da fenomenologia depende de uma descrição da estrutura da compreensão do ser. Trata-se, portanto, de descrever os existenciais do ser-aí, do Dasein, este ente que nós mesmos somos e que se determina por ser a sua compreensão do ser, isto é, que se determina pelo modo como assume a compreensão do ser como sua pressuposição constitutiva. Por já sempre se encontrar lançado em uma determinada compreensão do ser, o Dasein já sempre se encontra projetado para determinadas possibilidades de vir-a-ser, que não escolheu por um ato de vontade, mas com as quais necessariamente já sempre se relaciona, dê-se conta disso ou não.

Um dos aportes fundamentais trazidos por Heidegger em sua descrição do modo de ser específico ao homem foi a idéia de que, por ser-no-mundo, o homem já sempre se encontra (befindet sich) lançado em uma conjuntura cujo sentido lhe é familiar e projetado para determinadas possibilidades de vir-a-ser, que, por ser-para-a-morte, são finitas, ou seja, jamais perderão o estatuto de possibilidades. Como o projeto existencial em que cada qual se encontra lançado é ontologicamente anterior à tomada de consciência do que está em jogo em um tal projeto, seus “sentido e fundamento” não são jamais acessíveis por intermédio de uma reflexão.

Se a consciência (reflexiva) é sempre tardia em relação à ação, os determinantes da existência humana como “projeto lançado” (geworfener Entwurf) não devem ser buscados no livre arbítrio ou no saber conceitual que os homens julgam ter de si mesmos. É preciso conceber um tipo de relação consigo mesmo mais originária do que a reflexão, anterior a qualquer predicação. Para descrever o modo como cada qual é

76 Cf. PASOLINI, P. P. Medéia (Medea). Itália, 1969, 118 minutos.

originariamente tocado pela experiência de ser-no-mundo sendo-para-a-morte, Heidegger se valerá do conceito de tonalidade afetiva (Stimmung), atribuindo às tonalidades afetivas um papel privilegiado na determinação do modo como cada qual assume a compreensão do ser como sua pressuposição constitutiva.

Sob essa ótica, o acesso privilegiado ao fenômeno da fenomenologia depende de uma descrição da tonalidade afetiva fundamental (Grundstimmung) que evidencia o modo como o ser se abre em uma determinada compreensão do ser.

Na literatura, a imbricação necessária entre ser e compreensão do ser, entre realidade e perspectiva, é comumente apresentada na forma de personagem. Um personagem, sobretudo um personagem-narrador como Brás Cubas, nada mais é do que a corporificação de uma determinada perspectiva, que, ao constituir-se, configura um mundo. O mundo configurado através de Brás Cubas é a sua obra. E a sua obra em si mesma, como ele próprio nos diz no prólogo ao leitor, é tudo.

Com essa breve sentença, Brás Cubas realiza a sua própria redução fenomenológica, e antecipa Husserl e Heidegger. “A obra em si mesma é tudo”, sugere Brás Cubas, porque tudo em si mesmo é obra, porque tudo o que se apresenta já sempre se apresenta no âmbito de uma perspectiva necessariamente poética, isto é, produtiva.

O acesso a essa perspectiva que, em um livro de memórias narrado em primeira pessoa, dimensiona tudo o que é lembrado e tudo o que é esquecido, por sua vez, depende de dois outros movimentos. O primeiro é a destruição ou atravessamento (Durchgang) daquela tendência positivista a ler uma obra de arte procurando aquilo que ela pretensamente representaria na realidade. Não, diz Brás Cubas, essa preocupação é “desnecessária ao entendimento da obra”, porque na realidade ela não representa nada. O segundo, e aqui fica explicado o nosso conceito de “leitura simpática”, consiste em explicitar esse páthos fundamental que articula a perspectiva e portanto a narrativa de Brás Cubas, do qual ele próprio não pode ter uma consciência reflexiva, e que, por modular na surdina a sua narrativa, tende a transformá-la em uma armação paranóica.

1.8. Brás Cubas e a fenomenologia como patologia

Uma vez explicitados o conceito de fenomenologia e os momentos constitutivos do método fenomenológico, urge investigar em que medida é possível afirmar que as Memórias póstumas de Brás Cubas, tal como se mostram, a partir de si mesmas, exigem uma leitura fenomenológica; e em que medida os passos necessários a uma interpretação fenomenológica, Ausgang, Zugang e Durchgang, são os passos propostos por Brás Cubas em sua nota “ao leitor”.

A primeira coisa que chama a atenção no pequeno prólogo “ao leitor” das Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), como já frisamos anteriormente, é o fato de ele ser assinado pelo próprio Brás Cubas, e não pelo autor empírico Machado de Assis. Este fato, que hoje nos poderia passar despercebido, é não obstante de fundamental relevância para a compreensão da novidade que as Memórias póstumas representam na obra do autor, uma vez que os seus quatro primeiro romances, Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878), são todos narrados em terceira pessoa, por um narrador distante dos acontecimentos e com alguma pretensão de imparcialidade. Quando, em seu quinto romance, Machado de Assis renuncia a simplesmente relatar o desenvolvimento da trama a partir de uma perspectiva a ela extrínseca, fica anulada a ilusão de objetividade das narrativas anteriores, em que era possível contrapor a visão de um dado personagem ao estado de coisas pretensamente real apresentado pelo narrador em terceira pessoa, que se poderia facilmente confundir com o autor empírico. Nas Memórias póstumas de Brás Cubas, nós, leitores, somos deixados inteiramente nas mãos do narrador e protagonista, cujo discurso não pode mais ser interpretado senão desde dentro, “tal como se mostra, a partir de si mesmo”, e não a partir de uma realidade pretensamente dada para além do discurso.

Essa mudança na posição do narrador machadiano configura, por si só, a redução fenomenológica que deve ser o ponto de partida da interpretação (Ausgang). Não bastasse essa transformação estrutural no seio do desenvolvimento de Machado de Assis como romancista, tornada visível a partir da comparação com seus romances da primeira fase, nas Memórias póstumas a exigência de um tal ponto de partida é formulada explicitamente. Ao afirmar que “a obra em si mesma é tudo”, Brás Cubas exige que nós, intérpretes, nos atenhamos “à obra em si mesma” como “aquilo que se mostra, tal como se mostra, a partir de si mesmo”.

Ao indicar que a obra mesma deve servir de horizonte absoluto para a interpretação, Brás Cubas de certa forma compromete-se com a tese ontológica de que a realidade é constitutivamente obra, ou seja, já sempre se apresenta e só pode se apresentar no âmbito de uma determinada narrativa, de uma determinada compreensão poética do ser. O acesso às suas memórias póstumas, portanto, depende menos de uma descrição pormenorizada de sua vida como ele a narra, e mais de uma atenção àquilo que, embora perpasse toda a sua narrativa, articulando-a, decidindo o que será lembrado e o que será esquecido, permanece, não obstante, silenciado. Isso que permanece a princípio velado em tudo o que ele escreve é justamente o lugar a partir do qual ele escreve, a saber: o seu interesse, a sua perspectiva.

Como discutido anteriormente, ele afirma ser um finado que escreve a partir do “outro mundo”. Vimos, porém, que devemos renunciar à curiosidade de pensar este “outro mundo” objetivamente, pois transformar as Memórias póstumas de Brás Cubas em uma obra de ficção científica ou de edificação religiosa de nada serviria à sua compreensão. Além disso, reina em toda a obra um silêncio verdadeiramente sepulcral sobre as condições objetivas do narrador no outro mundo, sobre se está cercado de almas penadas ou anjos alados, sobre se está à direita de Deus ou à esquerda do Diabo. Ainda que renunciemos a nossas questões objetivas relativas ao outro mundo, entretanto, é mister indagar: supondo que toda e qualquer realidade só se dá no âmbito de uma compreensão do ser, ou, no caso das Memórias póstumas, mediada pela narrativa de Brás Cubas, qual deve ser o nosso acesso à perspectiva – o “outro mundo”

– que estrutura essa narrativa?

Deixemos que o próprio Brás nos responda: “Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia.”77 À leitura das Memórias póstumas, a primeira coisa que chama a atenção são as constantes ironias com que o narrador salpica os eventos que narra. Logo no primeiro parágrafo, ele compara a sua obra à de Moisés, as Memórias póstumas ao Pentateuco, para em seguida ironicamente sugerir que a “diferença radical”78 entre ambos os livros é o fato de as suas memórias superarem em originalidade a narrativa bíblica, que vulgarmente começa pelo nascimento, e não pela morte do protagonista. No segundo parágrafo, ele relata o discurso proferido por um dos onze amigos presentes ao seu enterro, sobre a “perda irreparável” que teria sido a sua morte, para logo emendar: “Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei.”79 Nos parágrafos seguintes, os exemplos se sucedem, e tão profusamente, que mais de um crítico já sugeriu que o princípio formal do romance é o humor, o humor tomado de empréstimo por Machado à escola dos humoristas ingleses, encabeçada por Lawrence Sterne, aliás citado por um “con-sternado”80 Brás Cubas em sua nota ao leitor.

77 MP, “Ao leitor”, p. 11. 78 MP, I, p. 15. 79 MP, I, 15. 80 MP, “Ao leitor”, p. 11: “Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará (...).”

Uma vez que se assume que o humor é o princípio formal que serve à construção do romance, a pena que dá contornos à caligrafia de Brás Cubas, talvez não seja absurdo conjeturar, com base na tradicional distinção entre forma e conteúdo, que a melancolia, embora menos visível – raramente atentamos para a tinta com que são impressos os livros que lemos, de modo que, embora presente, ela permanece de certa forma velada – é o nosso melhor acesso à situação do narrador, à perspectiva da qual brota o conteúdo da sua obra. Isto, pelo menos, é o que parece sugerir Brás Cubas ao falar que escreveu suas memórias com a “pena da galhofa e a tinta da melancolia”.

Perseguir essa sugestão é o objetivo do próximo capítulo. O fato de Brás Cubas se referir à melancolia como a tinta, o conteúdo, o cerne de suas memórias póstumas é mais uma indicação de que ele está a exigir de nós, leitores, uma descrição desta tintura afetiva como condição necessária para uma compreensão de sua obra. Ora, a descrição de tonalidades afetivas é, de acordo com o método fenomenológico apresentado há pouco, o acesso privilegiado (Zugang) ao interesse a partir do qual brota qualquer realidade, qualquer obra. Neste sentido, ao atribuir um papel preponderante à descrição da melancolia para a compreensão de suas memórias póstumas, mais uma vez é a própria obra Memórias póstumas de Brás Cubas que está a exigir de nós, a partir de si mesma, uma interpretação fenomenológica.

Será possível compreender por que Brás Cubas se apresenta como um finado sem entender a relação melancólica que estabelece com o tempo e a finitude? Será possível compreender a sua (in)ação ao longo do romance sem descrever detalhadamente a tonalidade afetiva que parece (i)mobilizá-lo, qual um defunto? E, para superar a dicotomia metafísica forma-conteúdo, para compreender de que maneira a sua melancolia deve aparecer sob a forma da galhofa, da cáustica ironia que a tudo corrói, não é necessário entender no que consiste precisamente essa melancolia?

Eis as questões que serão abordadas no próximo capítulo, em que, orientados pela hipótese de que as Memórias póstumas de Brás Cubas exigem uma leitura fenomenológica, e pela tese de que a fenomenologia é fundamentalmente uma patologia, empreender-se-á uma análise patológica desse cadáver, cujas carnes, saborosas embora, resistiram igualmente bem aos vermes e às interpretações daqueles críticos que, sintomaticamente, preferiram sempre roer as carnes de Machado de Assis, esquecendo-se das do finado Brás Cubas.

CAPÍTULO II

Anatomia de um defunto autor

“Tempora mutantur. Compreende que este

turbilhão é assim mesmo, leva as folhas do mato

e os farrapos do caminho, sem exceção nem

piedade. (...) Espetáculo cujo fim é divertir o

planeta Saturno, que anda muito aborrecido.”

Machado de Assis81

2.1. O realismo fenomenológico de Machado de Assis

O prólogo “ao leitor” das Memórias póstumas de Brás Cubas apresenta as indicações do próprio Brás acerca do modo como a sua obra deve ser lida. Tendo em vista que, já nas primeiras linhas desse prólogo, ele confessa tratar-se de uma “obra de finado”82 , assim esclarecendo o enigmático título do livro, não é possível ao leitor ultrapassar a soleira de suas memórias sem estar minimamente preparado para uma suspensão da descrença na narrativa que está prestes a ler. Se ler a obra de um autor já defunto é empreendimento dos mais corriqueiros, o mesmo não se pode dizer da leitura da obra de um defunto autor que, a partir do outro mundo, escreve as suas memórias.

Sem simpatia por esse personagem impossível, ao menos sob o ponto de vista de um realismo ingênuo, sequer vale a pena prosseguir a leitura. Se Brás Cubas quase sempre acompanha as suas palavras com um sorriso de canto de boca, o mesmo é exigido do leitor: “Mas ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo”.83

O significado desse sorriso de canto de boca, seja o do autor, seja o do leitor, não é unívoco ao longo da narrativa, mas a simpatia que ele pressupõe, que recusa a

81 MP, CXXXV, p. 156. 82 MP, “Ao leitor”, p. 11. 83 MP, “Ao leitor”, p. 11.

antipática saída de buscar algures o sentido das palavras de Brás Cubas, é condição necessária para a compreensão das Memórias póstumas. Simpatia não é o mesmo que frivolidade, não se confunde com a postura daquela “gente frívola”84 que não busca nos romances senão divertimento – divertissement em sentido pascaliano. Simpatia tampouco é gravidade, não se confunde com a postura daquela “gente grave”85 que recusa nos romances qualquer prazer, e só cuida da sua possível objetividade, entendida como adequação da narrativa a realidades extra-estéticas. A simpatia de que fala Brás Cubas remonta antes à própria etimologia da palavra, indicando a necessidade de o leitor se colocar no mesmo páthos que a obra, a qual, sem perder a “verdade estética”86 , cuja ausência o crítico Machado de Assis denunciava no “realismo de inventário”87 de seus contemporâneos, tampouco perde a capacidade de comover o leitor.

Entre a frivolidade e a gravidade, a simpatia que Brás Cubas espera angariar tem antes a ver com a curiosidade. É com o intuito de atiçar a curiosidade do leitor para o qual escreve, aquele que busca a verdade de sua ficção sem com isso renunciar ao prazer estético, que, no prólogo ao leitor, ele apresenta a sua teoria da interpretação de um “jeito obscuro e truncado”88, e portanto necessariamente provocativo. Cumpre ao leitor simpático a seu autor explicitar e desenvolver essa teoria da interpretação; desincumbir-se da tarefa que ele próprio negligencia.

Naturalmente, a realização dessa tarefa não pode basear-se unicamente na leitura dos dois pequenos e obscuros parágrafos endereçados diretamente “ao leitor”, mas depende, aliás em estrita obediência à própria dinâmica da obra, de uma interpretação a posteriori, ou, nos termos de Brás Cubas, póstuma. A presença de uma hermenêutica embrionária naqueles dois primeiros parágrafos só se torna evidente ao cabo do livro, mas o fato de o princípio do romance (arché) só se tornar visível a partir do fim não é um argumento suficiente para negar sua presença legislativa já nos primeiros parágrafos.

84 MP, “Ao leitor”, p. 11. 85 MP, “Ao leitor”, p. 11. 86 MACHADO DE ASSIS, J. M. “Crítica a Eça de Queirós: O primo Basílio”. Em: Obras completas (Vol. III). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 912s: “Não peço, decerto, os estafados retratos do Romantismo decadente; pelo contrário, alguma coisa há no Realismo que pode ser colhida em proveito da imaginação e da arte. Mas sair de um excesso para cair em outro não é regenerar nada; é trocar o agente de corrupção. (...) Voltemos os olhos para a realidade, mas excluamos o realismo, assim não sacrificaremos a verdade estética.” 87 Idem. “A nova geração”. Em: Obras completas (Vol. III). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 826. 88 MP, “Ao leitor”, p. 11.

Se o pilar da hermenêutica de Brás Cubas é a simpatia, entendida como uma espécie de curiosidade epistemológica, baseada em um interesse prévio do leitor não apenas pelo enredo narrado, o que caracterizaria a curiosidade ingênua, mas pela “verdade” da narração, soa mesmo curiosa a conseqüência que ele deriva de sua opção por um prólogo “obscuro e truncado”: “Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo (...).”89

Ao evitar contar o “processo extraordinário” que empregou na elaboração de sua narrativa, reputando-o “desnecessário ao entendimento da obra”, Brás Cubas aparentemente recusa à curiosidade epistemológica de seu leitor o principal meio para a sua satisfação: a compreensão da posição do narrador. Essa recusa, felizmente, é apenas aparente, na medida em que, negando-se a contar em detalhes quais seriam as condições objetivas de um defunto autor no “outro mundo”, ele ironicamente chama a atenção, aliás em estreita sintonia com as posições do crítico Machado de Assis, para o caráter insustentável de um tipo de narração que, em seu afã por revelar a “realidade em si mesma”, projeta sempre a verdade da obra de arte para uma dimensão objetivamente existente fora dela. Esse “outro mundo” que Brás Cubas se recusa a descrever já foi descrito na bibliografia secundária machadiana de diversas formas: ora é a biografia de Machado de Assis; ora sua psicologia de alpinista social; ora sua frágil compleição de epilético; ora sua mulatice; ora suas intenções morais; ora seu contexto histórico; ora suas influências filosóficas e literárias; etc.

No momento em que se reconhece a impropriedade de reduzir uma obra de arte às condições objetivas que estariam por trás de sua produção, fica evidente a impropriedade de se projetar a verdade de uma obra de ficção para fora dela, para uma pretensa “realidade em si mesma” que existiria independentemente da posição daquele que a lê ou, conforme o caso, que a narra. Ainda que seja a mais antiga, a “realidade em si mesma”, o “outro mundo”, o mundo inteiramente outro com relação ao mundo da ficção, é a mais irreal das construções, porque mantém-se fundamentalmente alienada, cega para sua própria condição de possibilidade, para o seu caráter de construção histórica, ou seja, de obra. Não a realidade em si mesma, mas “a obra em si mesma é

89 MP, “Ao leitor”, p. 11.

tudo; se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.”90

Essa declaração de princípio, que, afirma Brás Cubas, ou bem deve agradar os leitores, ou bem servir de ensejo para que ele lhes dê um piparote, gesto de quem pretende despertar homens que estão dormindo, marca o abandono do “realismo de inventário” que Machado de Assis denunciava em suas críticas, mas, de algum modo, ainda praticava em sua obra ficcional da década de 1870. Abandonado o outro mundo buscado pelos metafísicos de todos os tempos, impõe-se nas Memórias póstumas, desde as primeiras linhas, um novo tipo de realismo, um realismo propriamente machadiano. No âmbito deste novo realismo, que se poderia com justeza chamar de realismo fenomenológico, já não se concebe a idéia de uma “realidade em si mesma” que o escritor deveria fielmente reproduzir, como se fosse um taquígrafo judiciário91, mas pressupõe-se que toda e qualquer realidade possível só pode vir à luz, só pode mostrar-se (phaínestai) no âmbito de uma determinada perspectiva, de uma determinada compreensão poética do ser.

Essa guinada na compreensão machadiana da literatura e de sua tarefa tem inegáveis raízes ontológicas, mas, como seria de se esperar em se tratando de um escritor de ficção, ela não é tematizada conceitualmente. Em vez disso, aparece formalmente como uma guinada na posição do narrador machadiano, que, se em seus quatro primeiros romances, era um narrador em terceira pessoa, relativamente imparcial, onisciente e distante dos acontecimentos, o qual narrava à moda dos contadores de história tradicionais, agora ganha corpo e carne, voz e nome, idiossincrasias e uma perspectiva singularíssima que anula a ilusão de objetividade dos romances machadianos da primeira fase. Com a publicação das Memórias póstumas de Brás Cubas, na “Revista Brasileira”, a partir do dia 15 de março de 1880, a compreensão machadiana do realismo vira personagem. Nasce Brás Cubas.

2.2. O “defunto autor” e a posição do narrador nas Memórias póstumas

Com o nascimento de Brás Cubas, paradigma do narrador machadiano da segunda fase, antecessor de Dom Casmurro e do Conselheiro Aires, o leitor é obrigado

90 MP, “Ao leitor”, p. 11. 91 MACHADO DE ASSIS, J. M. “A nova geração”. Em: Op. Cit., p. 813: “Um crítico, Taine, escreverá que se a exata cópia das coisas fosse o fim da arte, o melhor romance ou o melhor drama seria a reprodução taquigráfica de um processo judicial.”

a assumir uma nova posição: não se trata mais de pensar as possíveis correspondências entre o mundo da ficção e o “outro mundo”, o da realidade em si mesma, mas de abandonar-se ao mundo da ficção de modo a, quem sabe, surpreender o caráter específico de sua verdade.

O conhecimento dessa verdade, que nada mais tem a ver com a tradicional doutrina aristotélica de uma “adequação do enunciado às coisas”92, depende agora de uma simpática atenção ao movimento de constituição da posição do narrador, ou, no caso específico das Memórias, da disposição do leitor de se colocar no mesmo páthos ou perspectiva a partir da qual se decide tudo o que Brás Cubas irá narrar e tudo o que irá omitir.

Se a descrição das condições objetivas do narrador no outro mundo é desnecessária ao entendimento da obra, o mesmo não se pode dizer da investigação daquilo que mais concretamente dá sentido e confere unidade às palavras de uma “obra difusa”93, aparentemente tão fragmentária: o páthos, a disposição afetiva a partir da qual a obra nasce, e que é o acesso privilegiado ao personagem, à perspectiva intitulada Brás Cubas, para além da qual, nas Memórias, não há nada. Conhecer Brás Cubas é portanto acompanhar o processo de gênese da perspectiva que o caracteriza, nascer junto com ele, participando da experiência que o constitui. Conhecimento, sob essa ótica, diz antes de tudo co-nascimento.

A descrição da gênese de Brás Cubas, sobretudo no início das Memórias póstumas, e a começar pelo título da obra, é das mais originais que já se viram em nossa literatura. No prólogo ao leitor, como já foi salientado, ele nos apresenta, ainda que de um “jeito obscuro e truncado”, uma hermenêutica pessoal cujos pressupostos ontológicos diferem enormemente daqueles de seus contemporâneos; na célebre dedicatória do livro, “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico como saudosa lembrança estas Memórias Póstumas”94, Brás supera Sócrates, prestando ao ser que vive da morte uma homenagem maior e mais espiritual do que a prestada pelo filósofo grego ao deus da medicina95; e, finalmente, no capítulo I, Brás Cubas diz quem é e a que veio com todas as letras:

92 Cf. ARISTÓTELES. Métaphysique. Paris: Vrin, 1991, p. 54 (Livro IX, 10). 93 MP, “Ao leitor”, p. 11. 94 MP, “Dedicatória”, p. 13. 95 Cf. PLATÃO. “Fédon”. In: Platão (Col. Os pensadores). São Paulo: Abril, 1979, p. 126: “Sócrates já se tinha tornado rijo e frio em quase toda a região inferior do ventre, quando descobriu sua face, que havia velado, e disse estas palavras, as derradeiras que pronunciou: ‘Críton, devemos um galo a Asclépio; não te esqueças de pagar essa dívida.’”

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.96

Nessas poucas linhas, fica explícito que a originalidade do título, do prólogo ao

leitor e da dedicatória não eram de forma alguma casuais, sendo antes conseqüência da

posição de um narrador que, a par com a “sede de nomeada”97, tem sempre fome de

originalidade. Brás Cubas não é espontaneamente original, ele o é por princípio. A

busca de originalidade a qualquer preço não recua diante de nada, nem mesmo da

pretensa necessidade de contar uma história, a história de sua vida. Este é decerto, no

plano formal, um dos motivos para a aversão do autor a uma narrativa linear, e, no

plano ideológico, para a sua tão alardeada volubilidade.98 Um dos motivos, não o único

e muito menos o principal.

Essa busca de originalidade a qualquer preço, como bem notou Roberto

Schwarz, é o que dá à prosa de Brás Cubas um tom de falsete:

A entonação das primeiras linhas é empertigada: Algum tempo hesitei, Suposto

o uso vulgar, adotar diferente método. Mesma coisa para as habilidades retóricas do morto, que por assim dizer estão em grifo, na sintaxe engomada e sobretudo nas construções antitéticas: princípio e fim, nascimento e morte, vulgar e diferente, campa e berço etc. A intenção de mostrar superioridade é patente, ainda que inseparável da situação narrativa risível. Assim, prestígio e desprestígio estão juntos na empostação da linguagem, convivência que é de todos os momentos, e atrás da qual triunfa o narrador, que brilha sempre duas vezes, uma quando assinala os próprios méritos retóricos, outra quando ri de seu caráter desfrutável.99

Esse tom de falsete, forjado com base em artifícios retóricos duvidosos, como o

recurso compulsivo a citações eruditas, é o que mais chama a atenção em uma primeira

leitura das Memórias. Há nelas, pelo menos de início, uma inacreditável vivacidade, que

beira sempre a frivolidade, mesmo e, sobretudo, quando o assunto tratado é ou deveria

ser grave. Se, no primeiro parágrafo, Brás não hesita em comparar as suas memórias às

de Moisés, sugerindo que o seu escrito, “mais galante e mais novo”, supera até mesmo o

96 MP, I, p. 15. 97 MP, II, p. 17. 98 Cf. SCHWARZ, R. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, Ed. 34, 2000, p. 31: “(...) a volubilidade (...) é o princípio formal do livro.” 99 Ibidem, p. 20.

Pentateuco, no segundo parágrafo a mesma irreverência marca a descrição de outro acontecimento que raramente se presta bem ao riso: a própria morte.

Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia — peneirava uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa idéia no discurso que proferiu à beira de minha cova: ‘Vós que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que têm honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.’

Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei.

Além de servir a uma sumária descrição das condições em que vivia no mês em que morreu – 64 anos, solteiro e abastado –, o segundo parágrafo das Memórias já deixa bem claro como Brás se compraz em subverter as expectativas (moralistas) do leitor: em vez de uma consideração circunspecta do próprio enterro, uma série de justificativas para a pequena audiência – não houve cartas nem anúncios e chovia; em vez da lembrança saudosa dos onze amigos presentes, a paródia do discurso de um deles, cujo ridículo Brás ironicamente exagera e, a título de conclusão, justifica cinicamente, afirmando que não se arrepende das vinte apólices que lhe deixou.

Nos quatro parágrafos restantes do primeiro capítulo, assim como nos capítulos seguintes, os exemplos se sucedem, de modo que o leitor é imediatamente convencido de que o livro realmente foi escrito com “a pena da galhofa”, o que aliás lhe roubaria grande parte da originalidade, na medida em que, de acordo com indicação do próprio Brás, seu estilo teria sido tomado de empréstimo à “forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre”.100

Brás Cubas, porém, de forma alguma sacrificaria facilmente sua fome de originalidade. Se seu estilo, como tantos críticos já frisaram, de fato se assemelha ao de Sterne, essa semelhança não pode ser mais do que superficial. Aquilo que mais propriamente caracteriza a especificidade da perspectiva (de) Brás Cubas deve ser buscado algures.

100 MP, “Ao leitor”, p. 11.

Uma primeira indicação da diferença entre Cubas e seus modelos nos é dada pelo crítico Machado de Assis, que no prólogo da quarta edição escreve que “há na alma deste livro, por mais risonho que pareça, um sentimento amargo e áspero, que está longe de vir dos seus modelos”.101

Essa indicação é corroborada pelo próprio Brás, que, na mesma passagem da nota ao leitor em que menciona suas principais influências literárias, emenda: “(...) se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado.”102

Finalmente, sintetizando as posições de Machado e Brás Cubas, escreve Augusto Meyer no mais belo ensaio sobre a obra machadiana de que se tem notícia:

Quase toda a obra de Machado de Assis é um pretexto para o improviso de borboleteios maliciosos, digressões e parênteses felizes... Fez do seu capricho uma regra de composição... E neste ponto se aproxima realmente da ‘forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre’. Mas a analogia é formal, não passa da superfície sensível para o fundo permanente. A vivacidade de Sterne é uma espontaneidade orgânica, necessária, a do homem volúvel que atravessa os minutos num frevolismo vivo de atitudes, gozando o prazer de sentir-se disponível. Sterne é um ‘molto vivace’ da dissolução psicológica.

Em Machado, a aparência de movimento, a pirueta e o malabarismo são disfarces que mal conseguem dissimular uma profunda gravidade – deveria dizer: uma terrível estabilidade. Toda a sua trepidação acaba marcando

103

passo.

A originalidade de Brás Cubas, em seu sentido mais profundo, não está propriamente na sua fome de originalidade, mas naquilo que essa fome ao mesmo tempo encobre e faz ver. A volubilidade, pensada como princípio formal de sua prosa, como aquilo que define a posição do narrador nas Memórias, é indissociável da terrível estabilidade a que faz menção Augusto Meyer.

Essa estabilidade tem a ver, seguindo a ordem das metáforas de Brás, com as suas “rabugens de pessimismo”, inevitáveis em uma “obra de finado”, ou seja, na obra de um “defunto autor”, cuja “campa foi outro berço”. Tal estabilidade é terrível porque reveladora de um “sentimento amargo e áspero”, que marca o passo, dita o ritmo, impõe

o tom das Memórias póstumas. Curiosamente, entretanto, o sentimento que tinge as letras do livro é menos visível do que essas mesmas letras, as quais, embora o pressuponham, muitas vezes acabam por encobri-lo.

101 MP, “Prólogo da quarta edição”, p. 9. 102 MP, “Ao leitor”, p. 11. 103 MEYER, A. Machado de Assis: 1935-1958. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1958, p. 13.

Esse sentimento, ou melhor, essa disposição afetiva é o que mais propriamente caracteriza o “defunto autor”, ou seja, o Brás Cubas narrador, que não se confunde com

o Brás Cubas personagem da própria narração. Na realidade, é no momento em que essa disposição afetiva alcança uma preeminência sobre todas as demais na vida do narrador, que ele propriamente nasce, que ele vem a ser o que é. Paradoxalmente, porém, a posição do narrador nas Memórias só se constitui após a morte de Brás Cubas. O Brás Cubas narrador só nasce quando morre (o Brás Cubas personagem). Eis a sua autêntica originalidade, a sua verdadeira origem: o fato de que para ele a “campa foi outro berço”.

Para que essa morte e a conservação da possibilidade de escrever que lhe segue não sejam apressadamente interpretadas como apenas mais uma impertinência de um narrador com fome de originalidade ou mesmo como o recurso de um autor latino-americano que se poderia inscrever no rol dos escritores de literatura fantástica; e para que as Memórias póstumas façam jus ao realismo fenomenológico que, na seção anterior, defendemos ser o tipo de realismo propriamente machadiano, cumpre indagar qual é a natureza da disposição afetiva que, uma vez instalada na vida de Brás Cubas, converteu-o em um morto (que narra).

Com relação à sua morte, que faz as vezes de origem, escreve o próprio Brás:

Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma idéia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo. (...)

Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-seme uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.

Essa idéia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. (...)

(...) tal foi a origem do mal que me trouxe à eternidade. Sabem já que morri numa sexta-feira, dia aziago, e creio haver provado que foi a minha invenção que me matou. Há demonstrações menos lúcidas e não menos triunfantes.104

Brás Cubas não conseguiu decifrar o enigma da esfinge (da melancolia), a fórmula do “emplasto anti-hipocondríaco destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade”, e foi devorado por ela. Brás Cubas morreu de melancolia. Se “tal foi a origem do mal” que o trouxe à eternidade, a melancolia foi também a origem de sua

104 MP, I-V, pp. 16-19.

vida de defunto autor, e pode ser considerada a disposição afetiva que serve de princípio à narrativa brascubiana, que cadencia o seu ritmo e dá o seu tom, determinando o que será lembrado e o que será esquecido. Essa conclusão, aliás, já havia sido indicada pelo próprio Brás Cubas no prólogo ao leitor em que explica sumariamente como deve ser lida a sua obra: “Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio.”105

Cumpre-nos, portanto, obedientes à provocação desse morto que narra, corporificação daquilo que, meio-século mais tarde, Walter Benjamin diagnosticaria como a morte do narrador, indagar no que propriamente consistiria essa sua melancolia; por que ele concebe a melancolia como uma peste que assola toda a “nossa melancólica humanidade”; e de que maneira é possível conceber o conúbio entre a pena da galhofa e a tinta da melancolia.

2.3. Antes da melancolia: o nascimento de Brás Cubas

As interpretações acerca da origem de Brás Cubas são tão multiformes quanto as tentativas de determinar a origem de Machado de Assis, que não se deve confundir com

o começo de sua produção literária. Assim como, em certo sentido, Machado só veio a ser ele mesmo, só veio a ser o seu conceito nas Memórias póstumas de Brás Cubas, romance que inaugura a assim chamada segunda fase de sua produção, também a origem de Brás Cubas não deve ser confundida com o seu começo biológico. Como já se discutiu anteriormente, a origem de Brás Cubas é indissociável da gênese de sua melancolia, que ora cumpre acompanhar.

O começo biológico do protagonista é ricamente narrado nos capítulos IX e X das Memórias, em que o narrador aparentemente deixa de lado as suas pretensões de originalidade do capítulo I e passa a narrar a sua história de acordo com o “uso vulgar”, ou seja, a partir de seu nascimento.

Conta-nos, então, o que aconteceu “naquele dia”, título do capítulo X, o “dia 20 de outubro de 1805, dia em que nasci”. Retomando a narrativa mais direta, cujo primeiro fragmento aparece já no capítulo III, quando, à moda do narrador do Tristam Shandy, Brás prepara o seu nascimento reportando-nos ironicamente algumas notícias sobre a genealogia de sua família, que seu pai, “homem de imaginação”, precisou

105 MP, “Ao leitor”, p. 11.

inventar “depois de experimentar a falsificação”, o defunto autor, em um dos capítulos mais descritivos da obra, o capítulo XI, faz um breve esboço de seus primeiros anos.

Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de ‘menino diabo’; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. (...) Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; e se às vezes me repreendia, à vista da gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos.106

À ausência de limites impostos pelo pai, à virtual inexistência de qualquer lei ou autoridade, cuja existência é vista como “simples formalidade”, somam-se as influências da mãe, uma “senhora fraca, de pouco cérebro e muito coração”, cujo “marido era na terra o seu deus”107; do tio João, “homem de língua solta, vida galante, conversa picaresca”, cujas anedotas, “reais ou não, [eram] eivadas todas de obscenidade ou imundície”108; e finalmente do tio cônego, que “vinha antes da sacristia que do altar. Uma lacuna no ritual excitava-o mais do que uma infração dos mandamentos.”109

Essa sucinta descrição do seu ambiente familiar culmina com uma conclusão que, se não implica uma equiparação entre a visão de Brás Cubas de sua própria biografia e aquela dos naturalistas de seu tempo, cujo determinismo o crítico Machado de Assis tanto criticava, tampouco a desautoriza. Nas últimas linhas do referido capítulo XI, cujo título, “O menino é pai do homem”, não é casual, escreve o narrador:

O que importa é a expressão geral do meio doméstico, e essa aí fica indicada – vulgaridade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruído, frouxidão da vontade, domínio do capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta flor.110

Brás Cubas, “menino diabo”, tinha em comum com o anjo caído que lhe valeu a alcunha o mesmo amor da ilimitação que lhe precipitou a queda. O freio da autoridade que, na primeira infância, não encontrou em casa, ele talvez pudesse ter encontrado na escola, mas seu professor, “Ludgero Barata – um nome funesto, que servia aos meninos de eterno mote a chufas”111 , tampouco poderia assumir a tarefa de dar limites ao

106 MP, XI, p. 30s. 107 MP, XI, p. 31. 108 MP, XI, p. 32. 109 MP, XI, p. 32. 110 MP, XI, p. 33. 111 MP, XIII, p. 37.

pequeno Brás. Como é que um amante das “aparências rutilantes, [e] do arruído” poderia respeitar um homem “calado, obscuro, pontual”, que, “durante 23 anos”, viveu baratamente “metido numa casinha da rua do Piolho, sem enfadar o mundo com a tua mediocridade”112, um homem que, em última instância, aquele menino diabo não podia ver senão como um piolho?

Se a importância da escola na vida de Brás é proporcional ao capítulo solitário em que narra como aprendeu as primeiras letras e nada mais, façamos como ele. “Unamos agora os pés e demos um salto por cima da escola, a enfadonha escola”.113 Vamos logo à parte mais picante da narração, à adolescência de Brás, ao seu primeiro beijo...

Como sói acontecer a um “garção bonito, airoso, abastado”, em 1822, quando Brás contava dezessete anos e lhe pungia “um buçozinho que forcejava por trazer a bigode”, começou a “nossa independência política” e o seu “cativeiro pessoal”.114

A que me cativou foi uma dama espanhola, Marcela, ‘a linda Marcela’, como lhe chamavam os rapazes do tempo. E tinham razão os rapazes. (...) Era boa moça, lépida, sem escrúpulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que lhe não permitia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas; luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes. Naquele ano, morria de amores por um certo Xavier, sujeito abastado e tísico – uma pérola.115

Brás era abastado e não era tísico, de modo que gastou – e o verbo diz muito – “trinta dias para ir do Rocio Grande”, onde furtivamente lhe havia tascado o primeiro beijo em uma “ceia de moças”, “ao coração de Marcela, não já cavalgando o corcel do cego desejo, mas o asno da paciência”.116 A paciência desse asno, claro está, nada tinha a ver com a persistência espiritual ou com qualquer outro dote invisível. Escreve Brás sobre o momento em que se tornou o amante único de Marcela, começando a sua fase cesariana e deixando para trás o período consular, em que regera junto com o Xavier:

Era meu o universo; mas ai triste! não o era de graça. Foi-me preciso coligir dinheiro, multiplicá-lo, inventá-lo. Primeiro explorei as larguezas de meu pai; ele dava-me tudo o que eu lhe pedia, sem repreensão, sem demora, sem frieza; dizia a todos que eu era rapaz e que ele o fora também. Mas a tal extremo chegou o abuso, que ele restringiu um pouco as franquezas, depois mais, depois mais. Então recorri à minha mãe, e induzi-a a desviar alguma coisa, que me dava às escondidas. Era pouco; lancei mão de um recurso último:

112 MP, XIII, p. 37. 113 MP, XIII, p. 36. 114 MP, XIV, p. 38. 115 MP, XIV, p. 38ff. 116 MP, XV, p. 39.

entrei a sacar sobre a herança de meu pai, a assinar obrigações, que devia resgatar um dia com usura.117

Nesse momento, o modo como Brás Cubas levanta fundos para sustentar o seu amor pela espanhola é sintomático de que aquela convicção que trazia desde a época de “menino diabo”, e que não se alterara nos tempos da escola da rua do Piolho, permanecia ainda a mesma: a certeza da própria ilimitação, no caso personificada pelo patrimônio familiar. Seu uso do dinheiro paterno era abusivo e ele não hesitava em comprar a felicidade presente ao preço da felicidade futura, da qual, nesse momento, não cuidava. Aos 18 anos, Brás não via qualquer problema em contrair obrigações que “um dia” teria de resgatar com usura pelo simples motivo de que esse “um dia”, o futuro, sequer existia para ele. Ele vivia então no compasso de um presente infinito, os braços de Marcela, e não se importava de comprá-lo ao preço de infinitos presentes.

Se Brás, como antes o Xavier, morria de amores por Marcela, esta “não morria, vivia. Viver não é a mesma coisa que morrer; assim o afirmam todos os joalheiros desse mundo”118 – e apenas eles, como bem mais tarde concluiria o defunto autor. Assim, quando seu pai finalmente chegou à conclusão de que “o caso excedia as raias de um capricho juvenil”119, ele não apenas fechou todas as comportas das quais poderia fluir o dinheiro para sustentar aquela paixão, mas também obrigou o jovem Brás a ir cursar uma universidade, “provavelmente Coimbra”120 . E assim, por fatores externos, a história de Brás e Marcela encontrou (ao menos provisoriamente) seu fim. O epitáfio desse amor é dos mais célebres de nossa literatura: “... Marcela amou-me durante quinze meses e 11 contos de réis; nada menos.”121

O fim do caso com Marcela, motivado pela limitação no patrimônio familiar, foi

o primeiro encontro de Brás com a finitude, mas ele não se deu conta disso, na medida em que o fim desse amor lhe pareceu apenas circunstancial, impressão que decerto encobriu o sumo da experiência que faria apenas mais tarde.

Depois de ter sido levado à força da casa de Marcela por seu pai e seu tio cônego, Brás foi “transportado”, como dramaticamente nos narra, “a uma galera que devia seguir para Lisboa. (...) Três dias depois segui barra fora, abatido e mudo. Não chorava sequer; tinha uma idéia fixa... (...) A dessa ocasião era dar um mergulho no

117 MP, XV, p. 40. 118 MP, XVI, p. 42. 119 MP, XVII, p. 42. 120 MP, XVII, p. 42. 121 MP, XVII, p. 42.

oceano, repetindo o nome de Marcela”122, era curar-se daquela limitação provisória com um mergulho no infinito do mar. Mas isso não foi preciso, já que, a esse tempo, Brás não era ainda o memorialista em que se tornaria. Ele ainda sabia esquecer.

A bordo, título do capítulo XIX, Brás foi recomendado por seu pai a todos os outros dez passageiros e sobretudo ao capitão do navio, que “levava a mulher tísica em último grau”123. Como este desconfiasse da idéia fixa de Brás, não lhe

tirava os olhos de cima (...). Quando não podia, levava-me para a mulher. (...) Não estava magra, estava transparente; era impossível que não morresse de uma hora para outra. O capitão fingia não crer na morte próxima, talvez por enganar a si mesmo. Eu não sabia nem pensava nada. Que me importava a mim o destino de uma mulher tísica, no meio do oceano? O mundo para mim era Marcela.124

Ainda fixado na perda de Marcela, Brás não cuidava de nada nem de ninguém. A morte (da esposa do capitão), que se concretizava à sua frente, permanecia-lhe indiferente, existencialmente invisível, transparente, diáfana, inexistente. E, no entanto, ele permanecia ainda preso à vaga idéia romântica do próprio suicídio, sempre sintomaticamente adiado por algum acaso, como no dia em que, tendo achado “ensejo propício para morrer”, encontrou o capitão junto à amurada com os “olhos fitos no horizonte”, velha metáfora da morte como limite do olhar. “Veja”, lhe disse o capitão, “está celestial!”125. Mas Brás não viu nada.

O que não pôde deixar de ver, dali a dias, foi o temporal que se abateu sobre o navio, e que “meteu medo a toda a gente, menos ao doido”, que viajava à Europa acompanhado da mulher, depois da perda da filha. “A mulher não podia já cuidar dele; entregue ao terror da morte, rezava por si mesma a todos os santos do céu.”126

Como só um doido pudesse não tremer diante da morte, Brás, ao contrário do que acontecera quando do encontro com a mulher tísica do capitão, tremeu. “Enfim, a tempestade amainou. Confesso que foi uma diversão excelente à tempestade do meu coração. Eu, que meditava ir ter com a morte, não ousei fitá-la quando ela veio ter comigo.”127

Brás virou a face para a própria morte, e naturalmente abandonou aquela idéia fixa de suicídio, nem tão fixa assim. Urgia viver. E viver, para ele, em estrita obediência

122 MP, XVIII, p. 45ff. 123 MP, XIX, p. 46. 124 MP, XIX, p. 46. 125 MP, XIX, p. 46. 126 MP, XIX, p. 47. 127 MP, XIX, p. 47.

a seu velho padrão, só podia significar fechar-se a qualquer contato com a morte, pura e simplesmente ignorar esse limite inexorável de tudo o que é finito, fingir a sua inexistência. O problema, a bordo, era a mulher do capitão, que dali a dias piorou.

Fui vê-la; achei-a, na verdade, quase moribunda, mas falando ainda de descansar em Lisboa alguns dias antes de ir comigo a Coimbra, porque era seu propósito levar-me à universidade. Deixei-a consternado; fui achar o marido a olhar para as vagas que vinham morrer no costado do navio, e tratei de o consolar; ele agradeceu-me, relatou-me a história dos seus amores, elogiou a fidelidade e a dedicação da mulher, relembrou os versos que lhe fez, e recitoumos. Neste ponto vieram buscá-lo da parte dela; corremos ambos; era uma crise. Esse e o dia seguinte foram cruéis; o terceiro foi o da morte; eu fugi ao espetáculo, tinha-lhe repugnância.128

Repugnância. Segundo o Houaiss, “qualidade do que repugna, sentimento de aversão, de repulsa; asco.”129 Etimologicamente, como nos indica a idéia de pugna, esse sentimento remonta a uma luta, um combate, uma polêmica, fruto de radical desacordo, desarmonia, oposição, entre o sujeito e o objeto de sua repugnância. Repugnância, eis a palavra que melhor sintetiza a relação que Brás Cubas, a essa altura de sua vida como ele a narra, estabelece com a finitude.

Tomado de asco diante da morte da mulher do capitão, e não mais de singela indiferença, como ainda alguns dias antes, Brás reage instintivamente, foge ao “espetáculo”. O espetáculo da morte, qualificativo que retornará no capítulo XXIII, seus olhos não o podem suportar. E, não sem alguma ironia, onde é que ele irá refugiar-se?

Ao contrário do capitão, que se refugia na vaidade de recitar para si e para os outros o epicédio que escreveu para a finada esposa, e que Brás consoladoramente lhe diz ser composto de “versos perfeitos”130, Brás Cubas irá refugiar-se no “grande futuro” que o capitão, em agradecimento, lhe prediz.

Um grande futuro! Enquanto esta palavra me batia no ouvido, devolvia eu os olhos, ao longe, no horizonte misterioso e vago. Uma idéia expelia a outra, a ambição desmontava Marcela. Grande futuro? Talvez naturalista, literato, arqueólogo, banqueiro, político, ou até bispo – bispo que fosse –, uma vez que fosse um cargo, uma preeminência, uma grande reputação, uma posição superior. A ambição, dado que fosse águia, quebrou nessa ocasião o ovo, e desvendou a pupila fulva e penetrante. Adeus, amores! adeus, Marcela! dias de delírio, jóias sem preço, vida sem regime, adeus! Cá me vou às fadigas e à glória; deixo-vos com as calcinhas da primeira idade.131

128 MP, XIX, p. 48. 129 HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 2434. 130 MP, XIX, p. 49. 131 MP, XX, p. 49.

Brás foge ao espetáculo da morte e esquece a perda de Marcela sonhando para si um grande futuro, o qual, naturalmente, exclui não apenas a iminência da morte – o futuro é por ele pensado como o que “ainda não é”, e portanto pressupõe a crença de que o que agora é esperará indefinidamente por esse “ainda não” indeterminado, tão “vago e misterioso” como o horizonte cujo caráter limitador ele não reconhece –, mas mesmo a sua possibilidade – a glória de uma “preeminência” qualquer, de “uma grande reputação”, memória da velha kléos dos gregos, garantiria o seu triunfo sobre a finitude, a sua imortalidade (poética).

O problema é que, para tanto, cumpria trabalhar, realmente aceitar as fadigas do pequeno labor cotidiano, cujo sentido, encarando-as como simples meio para um fim indeterminado, uma superioridade qualquer, ele não chega a reconhecer. Tendo em vista que ele só consegue conceber as fadigas abstratamente, como condição suficiente e indissociável da glória que prometeriam – “cá me vou às fadigas e à glória” –, sua passagem pela universidade é puramente formal, não altera em nada aquele padrão que, desde a infância de “menino diabo”, ele só faz repetir. “A universidade esperava-me com suas matérias árduas; estudei-as muito mediocremente, e nem por isso perdi o grau de bacharel (...).”132 As “aparência rutilantes”, mais uma vez, fazem as vezes de essência.

Findo o período em Coimbra, em que conquistara “uma grande nomeada de folião”, de “acadêmico estróina, superficial, tumultuário e petulante”,

no dia em que a universidade me atestou, em pergaminho, uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no cérebro, confesso que me achei de algum modo logrado, ainda que orgulhoso. Explico-me: o diploma era uma carta de alforria; se me dava a liberdade, dava-me a responsabilidade.133

A percepção da articulação entre liberdade e responsabilidade, que Brás não por acaso sente como uma espécie de logro, lhe deixa “desconsolado”. Face à auto-limitação que acarreta sempre o assumir responsabilidades, ele reage repetindo o mesmo mecanismo que utilizou para esquecer Marcela, projetando para si um grande futuro, sentindo “um desejo de acotovelar os outros, de influir, de gozar, de viver – de prolongar a universidade pela vida adiante...”.134

O prolongamento da universidade pela vida adiante confunde-se, em sua imaginação, com o usufruto das vantagens advindas do reconhecimento social – o

132 MP, XX, p. 49. 133 MP, XX, p. 49. 134 MP, XX, p. 50.

diploma, a ciência atestada em pergaminho – sem a necessidade de fazer as escolhas, ou, conforme o caso, as renúncias que um tal reconhecimento pressuporia – no caso, as renúncias que de fato arraigar a ciência no cérebro implicaria.

Brás não se contenta com nada menos do que tudo. O grande futuro indeterminado que povoa sempre os seus sonhos encontra correspondência em um presente igualmente indeterminado, em que a liberdade é pensada como uma espécie de ausência absoluta de compromissos que, como indica a própria etimologia da palavra, pudessem comprometer o seu livre-arbítrio incondicionado. Faz “romantismo prático e liberalismo teórico, vivendo na pura fé dos olhos pretos e das constituições escritas.”135 Entre a folia e a ciência, ele fica naturalmente com as duas, e, confrontado pela impossibilidade de conciliar os inconciliáveis – Nietzsche não escrevera ainda A gaia ciência! –, arremeda-os com a solda da opinião, “a obra superfina da flor dos homens, a saber, do maior número”.136

Por não conseguir conceber o parentesco entre liberdade e responsabilidade, por concebê-las mesmo como antagônicas – “se [por um lado] me dava a liberdade, [por outro] dava-me a responsabilidade” –, ele é incapaz de realmente assumir qualquer escolha, qualquer projeto existencial. Se estudou “mediocremente”, decerto também amou do mesmo modo. Querendo ser absolutamente tudo, não tinha como chegar a ser propriamente nada.

A essa altura de sua vida, porém, essa inconsistência ontológica pouco lhe importava. Afinal, se conseguira conquistar “grande nomeada de folião” e ao mesmo tempo “o grau de bacharel”, que não deixa de ser uma forma solene de nomeada, a opinião lhe garantia a aparência rutilante de grande homem que, desde a mais tenra infância, aprendera a amar. Brás aprendeu com seu pai e seu tio cônego, aquele que “vinha antes da sacristia do que do altar”, que “se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade (...)”.137 Por isso, ao sair de Coimbra coroado pela opinião, era inevitável o “desejo de acotovelar os outros, de influir, de gozar, de viver...”138

Vai então, empacou o jumento em que eu vinha montado; fustiguei-o, ele deu dois corcovos, depois mais três, enfim mais um, que me sacudiu fora da

135 MP, XX, p. 49. 136 MP, CXIII, p. 139. 137 Idem. “O segredo do bonzo”. In: Papéis avulsos. Op. cit., p. 196. 138 MP, XX, p. 50.

sela, com tal desastre que o pé esquerdo me ficou preso no estribo; tento agarrar-me ao ventre do animal mas já então, espantado, disparou pela estrada fora. Digo mal: tentou disparar, e efetivamente deu dois saltos mas um almocreve, que ali estava, acudiu a tempo de lhe pegar na rédea e detê-lo, não sem esforço nem perigo. Dominado o bruto, desvencilhei-me do estribo e pus-me de pé.

– Olhe do que vosmecê escapou.

E era verdade; se o jumento corre por ali fora, contundia-me deveras, e não sei se a morte não estaria no fim do desastre (...).139

A sinonímia que cedo se estabeleceu na vida de Brás entre “acotovelar os outros” e “gozar”, entre “influir” e “viver”, cuja correção a universidade só fez confirmar, mantinha-o ainda preso à sua inconsistência ontológica. Afinal, se o único modo de existência necessário era o da opinião, pouco importava ser isso ou aquilo, “naturalista, literato, arqueólogo, banqueiro, político, ou até bispo – bispo que fosse –, uma vez que fosse um cargo, uma preeminência, uma grande reputação, uma posição superior”.140 Era ainda com a fé intacta na opinião alheia, na opinião impessoal, que Brás vinha indeterminadamente sonhando com a sua pessoa, isto é, com a sua persona, a sua máscara pública, até que... “empacou o jumento”.

Seu texto, nesse ponto, não explica por que o jumento empacou. Mas, supondo que, em sua obra, como ele próprio diz logo após relatar o episódio do almocreve, “só entra a substância da vida”141, é possível conjeturar que o jumento empacou diante da insubstancialidade de sua crença na opinião, cujo corolário mais visível é a sua já aludida inconsistência ontológica. O freio a essa inconsistência, que se segue ao empacar do jumento e à sua tentativa desastrada de fazê-lo andar fustigando-o, é a experiência da própria mortalidade: “se o jumento corre por ali fora, contundia-me deveras, e não sei se a morte não estaria no fim do desastre.”

É difícil dizer o que Brás Cubas poderia ter tirado dessa confrontação com a própria morte, o que, em seu “amor à nomeada”, poderia ter se transformado, o que, em sua compulsão à ilimitação, poderia ter se alterado. Não é difícil, no entanto, relatar o que de fato aconteceu: nada. Passado o risco de morte, do qual foi salvo por um humilde almocreve, “quando ele torna a si – isto é, quando torna aos outros”142 –, relata-nos Brás:

O almocreve salvara-me talvez a vida; era positivo; eu sentia-o no sangue que me agitava o coração. Bom almocreve! enquanto eu tornava à consciência

139 MP, XXI, p. 50. 140 MP, XX, p. 49. 141 MP, XXII, p. 51. 142 MP, XCIX, p. 129.

de mim mesmo, ele cuidava de consertar os arreios do jumento, com muito zelo e arte. Resolvi dar-lhe três moedas de ouro das cinco que trazia comigo (...).

Fui aos alforjes, tirei um colete velho, em cujo bolso trazia as cinco moedas de ouro, e durante esse tempo cogitei se não era excessiva a gratificação, se não bastavam duas moedas. Talvez uma. (...) Examinei-lhe a roupa; era um pobre diabo, que nunca jamais vira uma moeda de ouro. Portanto, uma moeda. Tirei-a, vi-a reluzir à luz do sol; não a viu o almocreve, porque eu tinha-lhe voltado as costas; mas suspeitou-o talvez, porque entrou a falar ao jumento de um modo significativo; dava-lha conselhos, dizia-lhe que tomasse juízo (...).

Ri-me, hesitei, meti-lhe na mão um cruzado de prata, cavalguei o jumento, e segui a trote largo um pouco vexado, incerto do efeito da pratinha.143

A narração desse episódio, em que se reconstrói o progressivo retorno de Brás à consciência, é emblemática do que se veio até aqui mostrando.

Em um primeiro momento, o empacar do jumento diante da insubstancialidade de seu modo de vida altera-o significativamente. Enquanto o sangue lhe “agitava o coração”, enquanto não retornara de todo à consciência e ao cálculo instrumental de quem sempre visa uma superioridade qualquer, ele aventa dar àquele que salvara a sua vida mais da metade do dinheiro de que dispunha: “não porque tal fosse o preço da minha vida – essa era inestimável; mas porque era uma recompensa digna da dedicação com que ele me salvou.”144

Em um segundo momento, no entanto, um pouco mais refeito, atentando para a aparência do homem que o salvara, ele percebe tratar-se de “um pobre diabo, que nunca jamais vira uma moeda de ouro”.145 Relativiza então o impulso inicial: para quem jamais vira uma moeda de ouro, três moedas seriam uma recompensa excessiva. “Portanto, uma moeda.”146

Finalmente, ao ver como aquele homem, à espera da recompensa, dava conselhos ao jumento e “dizia-lhe que tomasse juízo”147, é o próprio Brás quem toma juízo, e, sem mais qualquer justificativa interior, ou seja, qualquer justificativa ao leitor, mete-lhe na mão um cruzado de prata.

Essa quebra de expectativa, por si só, tem um efeito cômico, ao revelar o tipo de racionalização que caracteriza Brás Cubas, e que em princípio o faz pior do que seu leitor – para gáudio de ambos. Para alguém que, como ele, aprendeu o segredo do

143 MP, XXI, p. 51. 144 MP, XXI, p. 50. 145 MP, XXI, p. 50. 146 MP, XXI, p. 51. 147 MP, XXI, p. 51.

bonzo, não há critérios absolutos que possam diferenciar um ato justo de um ato injusto. Assim, a realidade da justiça é indissociável da aparência de justiça. Como tudo que é da ordem da aparência, também a justiça será relativa àquele que a vê, ou, no caso do almocreve, a sofre. “A recompensa digna da dedicação” com que ele salvou Brás Cubas, portanto, será a recompensa que lhe parecer digna a ele, o almocreve. Se isso puder diminuir a despesa de Brás, tanto melhor.

O fato de que tudo depende da opinião, ou do ponto de vista, permite que Brás, a essa altura de sua vida, não se comprometa com nada. Se tudo depende da opinião, tudo pode ser justificado, desde que se disponha dos meios argumentativos – e financeiros – para tanto. Brás dispõe de tais meios, até em excesso. Assim, a absoluta relatividade dos pontos de vista é aqui apresentada como sumamente positiva. Se a justiça é uma “simples formalidade”, como Brás aprendera na infância com o seu pai, e se a sua existência efetiva é antes um estorvo do que uma condição indispensável para a felicidade humana, tanto melhor que ela só exista na opinião. Sobretudo para aqueles que trazem nas mãos o cabo do chicote.

É, aliás, com o aludido chicote na mão, montado no jumento, que, como nos relata Brás,

a algumas braças de distância, olhei para trás, o almocreve fazia-me grandes cortesias, com evidentes mostras de contentamento. Adverti que devia ser assim mesmo; eu pagara-lhe bem, pagara-lhe talvez demais. Meti os dedos no bolso do colete que trazia no corpo e senti umas moedas de cobre; eram os vinténs que eu devera ter dado ao almocreve, em lugar do cruzado de prata. (...) Fiquei desconsolado com esta reflexão, chamei-me pródigo, lancei o cruzado à conta das minhas dissipações antigas; tive (por que não direi tudo?), tive remorsos.148

Do nascimento em 1805 até o fim da universidade, por volta de 1827, que ele prolongou alguns anos mais “em Lisboa, na península e em outros lugares da Europa, da velha Europa, que nesse tempo parecia remoçar”149, Brás raramente teve motivos para remorsos. Das diabruras infantis e escolares, ele passou sem grandes sobressaltos às aventuras amorosas e acadêmicas, contando sempre com o beneplácito das autoridades, que, quando tentavam imprimir limites a suas ações, incutindo-lhe o sentido da responsabilidade e da justiça, faziam-no, ao menos no seu entender, por simples formalidade. Dessa forma, foi exatamente isso que ele colheu de todas as

148 MP, XXI, p. 51. 149 MP, XXII, p. 51.

coisas, “a fraseologia, a casca, a ornamentação...”150 , confiante de que, com os argumentos e a genealogia de que dispunha, era inevitável a chegada de um grande futuro.

A aurora de sua vida, até o fim de sua (de)formação (acadêmica), é portanto marcada, como todos os episódios analisados até aqui deixam monotonamente claro, pela notável capacidade de Brás Cubas de se esquivar a qualquer responsabilidade, a qualquer contato com o limite do que quer que seja, a qualquer experiência da proximidade da morte, seja a sua (como nos episódios do fim do romance com Marcela e do almocreve), seja a dos outros (como no episódio da morte da mulher do capitão). A virtual inexistência da morte em sua vida é o que possibilita, a um só tempo, a sua crença em um grande futuro e a sua fruição irresponsável do presente, cheio daquelas realizações típicas de um jovem de sua classe social.

Entre os capítulos X e XXII, portanto, capítulos que narram sua formação, não há sinal daquela melancolia que, de acordo com a hipótese levantada na seção anterior, seria indissociável da origem de Brás Cubas, ao menos do Brás Cubas narrador, defunto autor. Nada, até aqui, cheira a sepulcro, apresenta aquela contração cadavérica. Muito pelo contrário. O seu estilo tem uma vivacidade que se coaduna bastante bem com o sumo das experiências que narra, com a leveza e a superficialidade que apresenta. Como ele próprio nos diz:

Às vezes, esqueço-me a escrever, e a pena vai comendo papel, com grave prejuízo meu, que sou autor. Capítulos compridos quadram melhor a leitores pesadões; e nós não somos um público in-folio, mas in-12, pouco texto, larga margem, tipo elegante, corte dourado e vinhetas... principalmente vinhetas... Não, não alonguemos o capítulo.151





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