Machado de Assis - Teses e dissertações



A SEGUNDA VIDA DE BRÁS CUBAS - Continuação




2.4. A consciência boquiaberta: a origem de Brás Cubas


Vale notar que, a essa altura, depois do bacharelado em Coimbra e de mais “alguns anos de peregrinação”152, Brás já não via a família e a terra natal há “oito ou nove anos”153. E, no entanto, não se encontra em sua narrativa desse longo período nem uma única menção à saudade que porventura possa ter sentido. Ele estava simplesmente imerso na miríade de experiências que a “velha Europa, que nesse tempo parecia

150 MP, XXIV, p. 54. 151 MP, XXII, p. 52. 152 MP, XXII, p. 51. 153 MP, XXIII, p. 53.

remoçar”154, lhe proporcionava. Nenhuma preocupação com o futuro, o grande futuro que haveria de chegar quando fosse a hora; nenhuma lembrança do passado, que caíra nas brumas do esquecimento sem maior dor. Só o presente, o infinito presente...

“Vai então, empacou o jumento”.155 Dessa vez, diante de uma circunstância concreta, uma carta do pai, cujas súplicas ele finalmente resolveu atender – o que deixa indicado que outras cartas do pai já lhe haviam chegado às mãos, sem que lhe tivessem tocado: “‘Vem’, dizia ele na última carta; ‘se não vieres depressa, acharás tua mãe morta!’”156

Vim. Não nego que, ao avistar a cidade natal, tive uma sensação nova.

Não era efeito da minha pátria política; era-o do lugar da infância, a rua, a

torre, o chafariz da esquina, a mulher de mantilha, o preto do ganho, as coisas

e cenas da meninice, buriladas na memória. Nada menos que uma renascença.

O espírito, como um pássaro, não se lhe deu da corrente dos anos, arrepiou o

vôo na direção da fonte original, e foi beber da água fresca e pura, ainda não

mesclada do enxurro da vida.

Reparando bem, há aí um lugar-comum.157

A chegada ao Rio de Janeiro é narrada em um breve parágrafo, dos mais sentimentais e menos irônicos da obra, no qual Brás enumera todos aqueles elementos da “cidade natal” que, após os anos de exílio, lhe proporcionaram uma “sensação nova”: “o lugar da infância, a rua, a torre, o chafariz da esquina, a mulher de mantilha, o preto do ganho”, em suma, “as coisas e cenas da meninice”. Essa enumeração, note-se bem, não diz como tais coisas e cenas de fato teriam sido – o desprezo de Brás Cubas pelo “realismo de inventário” não é menor do que o de Machado –, mas sim como elas efetivamente aparecem a esse filho pródigo. E elas lhe aparecem como a constelação que configura o seu mundo familiar, as suas raízes, a sua casa. A “sensação nova” de que fala Brás é uma sensação de pertencimento. E ela só é possível porque, depois de tantos anos na Europa, ele não apenas deixa de ser um estrangeiro, mas, a partir do efeito de distanciamento provocado pelos anos no exterior, torna-se capaz de experimentar pela primeira vez o que significa estar na própria cidade natal. A “sensação nova” de pertencimento, em suma, só lhe toca porque “as coisas e cenas da meninice” lhe podem aparecer “buriladas na memória”.

A memória do Brás que acaba de voltar à casa ainda é capaz de trabalhar como

154 MP, XXII, p. 51. 155 MP, XXI, p. 50. 156 MP, XXII, p. 51. 157 MP, XXIII, p. 52.

um buril, “ferramenta de aço com ponta oblíqua cortante”158 que não apenas serve para gravar em metal ou madeira, mas também para lavrar jóias. O buril, ao gravar ou lavrar, apura, capricha, aperfeiçoa, burila. A memória de Brás, nesse momento, ainda é capaz de gravar o passado como algo de valioso. Valioso porque “fonte original”, ventre fecundo, promessa de novos nascimentos, ou, no caso da lembrança de sua cidade natal, de “nada menos que uma renascença”. O passado, nesse breve parágrafo, ainda é evocado como uma “água fresca e pura”, que revigora aquele que a bebe, uma água “ainda não mesclada ao enxurro da vida”.

Onde não há o enxurro da vida, tampouco há necessidade de ironia, e o memorialista póstumo quase é capaz de se deixar levar, como um pássaro, “na direção da fonte original.” Onde não há o enxurro da vida, sua memória ainda pode operar como um buril, e quase não o faz se sentir como aquele outro pássaro que bate as asas inutilmente, pois que atado pelos pés.159 Quase.

A simples evocação do “enxurro da vida” põe tudo a perder, o defunto autor volta abruptamente a si, e não pode tolerar o fato de, por um parágrafo sequer, ter-se deixado levar. É preciso corrigir a sua ingenuidade, recuperar o controle do próprio fluxo de consciência, desacreditar a idéia do passado como fonte de vida. Para tanto, em um primeiro momento, basta o recurso imediato ao poder corrosivo de sua ironia. Ele escreve: “Reparando bem, há aí um lugar-comum.” O desprestígio do lugar-comum, sobretudo em se tratando de um narrador com fome de originalidade, contrapõe-se e anula a “sensação nova” que tão perigosamente aproximou-se de subverter a lógica de sua narrativa.

Como, no entanto, o defunto autor sabe que esse reparo não seria ainda suficiente para sepultar de vez a ressonância daquela “sensação nova”, urge introduzir o relato de uma experiência definitiva, de “outro lugar-comum”, que afastasse de vez a possibilidade de se conceber o passado como uma “água fresca e pura”, a memória como fonte de vida e não de morte.

Reparando bem, há aí um lugar-comum. Outro lugar-comum, tristemente comum, foi a consternação da família. Meu pai abraçou-me com lágrimas. – Tua mãe não pode viver – disse-me. Com efeito, não era já o reumatismo que a matava, era um cancro no estômago. A infeliz padecia de um modo cru, porque o cancro é indiferente às virtudes do sujeito; quando rói, rói; roer é o

158 HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, 531. 159 Cf. MACHADO DE ASSIS, J. M. “A segunda vida”. In: Histórias sem data. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre: Jackson, p. 221: “Vivo como Eurico, atado ao próprio cadáver... Não, a comparação não é boa. (...) vivo assim como um pássaro, batendo as asas e amarrado pelos pés...”.

seu ofício. Minha irmã Sabina, já então casada com o Cotrim, andava a cair de fadiga. Pobre moça! dormia três horas por noite, nada mais. O próprio tio João estava abatido e triste. D. Eusébia e algumas outras senhoras lá estavam também, não menos tristes e não menos dedicadas.

– Meu filho!

A dor suspendeu por um pouco as tenazes; um sorriso alumiou o rosto da enferma, sobre o qual a morte batia a asa eterna. Era menos um rosto do que uma caveira: a beleza passara, como um dia brilhante; restavam os ossos, que não emagrecem nunca. Mal poderia conhecê-la; havia oito ou nove anos que nos não víamos. Ajoelhado, ao pé da cama, com as mãos dela entre as minhas, fiquei mudo e quieto, sem ousar falar, porque cada palavra seria um soluço, e nós temíamos avisá-la do fim. Vão temor! Ela sabia que estava prestes a acabar; disse-mo; verificamo-lo na seguinte manhã.

Longa foi a agonia, longa e cruel, de uma crueldade minuciosa, fria, repisada, que me encheu de dor e estupefação. Era a primeira vez que eu via morrer alguém. Conhecia a morte de oitiva; quando muito, tinha-a visto já petrificada no rosto de algum cadáver, que acompanhei ao cemitério, ou trazia-lhe a idéia embrulhada nas amplificações de retórica dos professores de coisas antigas — a morte aleivosa de César, a austera de Sócrates, a orgulhosa de Catão. Mas esse duelo do ser e do não ser, a morte em ação, dolorida, contraída, convulsa, sem aparelho político ou filosófico, a morte de uma pessoa amada, essa foi a primeira vez que a pude encarar. Não chorei; lembra-me que não chorei durante o espetáculo: tinha os olhos estúpidos, a garganta presa, a consciência boquiaberta. Quê? uma criatura tão dócil, tão meiga, tão santa, que nunca jamais fizera verter uma lágrima de desgosto, mãe carinhosa, esposa imaculada, era força que morresse assim trateada, mordida pelo dente tenaz de uma doença sem misericórdia? Confesso que tudo aquilo me pareceu obscuro, incongruente, insano...

Triste capítulo; passemos a outro mais alegre.160

A morte de sua mãe, que o defunto autor traz ainda arraigada na memória, é descrita minuciosamente, com cada sentença repisando a anterior, como a reproduzir no plano da escritura o ritmo progressivo e cru(el) daquela “doença sem misericórdia” que a trateou.

Depois de abraçar o pai e suas lágrimas, que lhe falam da inevitabilidade da morte da esposa, Brás nota que “não era já o reumatismo que a matava, era um cancro no estômago”. O contraste aqui chama a atenção para a diferença entre a presença figurada e distante da morte na vida de sua mãe – ao longo de sua infância, ele provavelmente ouviu-a inúmeras vezes dizer “ai, meu filho, este reumatismo está me matando!” – e a sua presença efetiva, real, crua: a sua presença “sem aparelho político ou filosófico”.

“A infeliz padecia de um modo cru, porque o cancro é indiferente às virtudes do sujeito; quando rói, rói; roer é o seu ofício.” A indiferença do cancro às virtudes daquela que rói, ao contrário do que sugere a argumentação de Brás, não recrudesce o padecimento da enferma, mas sim o daqueles que a cercam – a irmã Sabina, o tio João,

160 MP, XXIII, p. 52ff.

Dona Eusébia, algumas outras senhoras que lá estavam, o pai e ele. A crueza desse padecimento tem menos a ver com o grau físico da dor do que com a impossibilidade de racionalizar o sofrimento. Brás Cubas, campeão das racionalizações e do palavrório auto-complacente, que há dois capítulos apenas invocava a Providência para justificar o logro do almocreve, aqui não reconhece Providência alguma. “Ajoelhado ao pé da cama”, ele é compelido a ficar “mudo e quieto, sem ousar falar, porque cada palavra seria um soluço”.

Diante do “rosto da enferma, sobre o qual a morte batia a asa eterna”, seu “espírito, como um pássaro”, agora voando junto ao pássaro da asa eterna, “se lhe deu da corrente dos anos” – “a beleza passara, como um dia brilhante; restavam os ossos, que não emagrecem nunca” –, mas ainda assim “arrepiou o vôo na direção da fonte original”. Quando lá chegou, porém, ao contrário do que acontecera logo após o seu retorno à cidade natal, não mais encontrou aquela “água fresca e pura”, mas apenas uma água parada e mesclada com a pior das impurezas: o “enxurro da vida”.

“Longa foi a agonia, longa e cruel, de uma crueldade minuciosa, fria, repisada, que me encheu de dor e estupefação. Era a primeira vez que eu via morrer alguém.” E no entanto, mesmo que se deixe de lado o fato de que, a essa altura, Brás já tinha quase trinta anos, ele sabe que o leitor atento não se terá esquecido de seu relato da morte da esposa do capitão, que ele acompanhou em sua ida para a Europa. Por isso, cumpre-lhe esclarecer o que efetivamente tem em vista quando fala nessa “primeira vez”: “Conhecia a morte de oitiva; quando muito, tinha-a visto já petrificada no rosto de algum cadáver, que acompanhei ao cemitério, ou trazia-lhe a idéia embrulhada nas amplificações de retórica dos professores de coisas antigas (...).”

Nesse esclarecimento, Brás enumera três distintos modos de “conhecer” a morte, cujo traço comum é não implicarem o reconhecimento propriamente dito do “enxurro da vida”, ou, se se preferir, da vida como enxurro. O primeiro deles é o modo que caracteriza aqueles que só conhecem a morte de ouvir falar, que portanto só conhecem a morte de terceiros por terceiros, e para os quais a experiência que a constitui permanece a mais distante, indeterminada e impessoal; o segundo modo, que representa já uma pequena aproximação da experiência da morte com relação ao primeiro, é o que caracteriza aqueles que já viram a morte “petrificada”, que portanto já a viram “no rosto de algum cadáver”, mas conhecem-na apenas como produto, o fim biológico, e não como processo, contenda, “duelo do ser e do não ser”; o terceiro, por fim, é aquele que marca o conhecimento da morte dos grandes personagens da história – “a morte aleivosa de César, a austera de Sócrates, a orgulhosa de Catão” – e que, se não apresenta a morte petrificada, apresenta-a “embrulhada”, ou seja, justificada e embelezada por um processo histórico que lhe empresta necessidade e inteligibilidade.

Nenhum desses três modos, sugere Brás, representa um conhecimento autêntico da morte, na medida em que a experiência da morte propriamente dita tem como características principais ser sempre uma experiência da “morte em ação, dolorida, contraída, convulsa” – o que desqualifica o conhecimento da morte como produto; uma experiência da morte “sem aparelho político ou filosófico” – o que desqualifica as suas compreensão e justificação “pelas amplificações de retórica dos professores de coisas antigas”; e sobretudo uma experiência da “morte de uma pessoa amada”, que nos toca pessoalmente, ou seja, da qual efetivamente participamos e não apenas conhecemos “de oitiva”.

Uma experiência da morte que reunisse todas essas características, diz Brás, “essa foi a primeira vez que a pude encarar”. Ao contrário do que se passara quando da morte da esposa do capitão, da qual ele fugira, pois “tinha repugnância ao espetáculo”, dessa vez foi outra a sua reação: “Não chorei; lembra-me que não chorei durante o espetáculo: tinha os olhos estúpidos, a garganta presa, a consciência boquiaberta.” Em lugar da fuga, muda e seca contemplação. E, no entanto, novamente, a comparação da morte a um espetáculo. É como se Brás Cubas não a conseguisse encarar como um processo natural, portanto gratuito e efetivamente “indiferente às virtudes do sujeito”, mas apenas como uma encenação artificial, afetada, caricatural, grotesca, e, o que é ainda pior, intencional, “minuciosa e fria[mente]” planejada por algum artífice cruel, arbitrário e sobretudo incompreensível. Sob essa ótica, o caráter espetacular da morte a aproximaria, na concepção de Brás Cubas, do choque provocado pelas obras de arte (contemporâneas), choque que despedaça a familiaridade do mundo cotidiano e inviabiliza a domesticação disso que ora se apresenta como estranho através da atribuição de um sentido estável e previamente conhecido. Dissecando a verdade daquele velho lugar-comum, Brás diria que não é a arte que imita a vida, nem tampouco a vida que imita a arte. A arte imita a morte.

Seja como for, o fato é que a morte de sua mãe confrontou Brás Cubas com a experiência, que ele diz com acerto ter vivido pela primeira vez, do limite da compreensão, do cálculo racional, da manipulação, e mesmo do império da opinião. Como algo resistente à sua retórica, à sua galhofa, ao seu controle, a morte de sua mãe deixou-o com “os olhos estúpidos, a garganta presa, a consciência boquiaberta”, exatamente como o ser que habita o centro de “O grito”, aquele famoso quadro de Edvard Munch. O fim do capítulo, aliás, é o grito silencioso de sua consciência boquiaberta:

Quê? uma criatura tão dócil, tão meiga, tão santa, que nunca jamais fizera

verter uma lágrima de desgosto, mãe carinhosa, esposa imaculada, era força

que morresse assim trateada, mordida pelo dente tenaz de uma doença sem

misericórdia? Confesso que tudo aquilo me pareceu obscuro, incongruente,

insano...

Triste capítulo; passemos a outro mais alegre.

Na ausência de uma coerência entre as boas ações realizadas no passado – mãe carinhosa e esposa imaculada – e os seus resultados no presente – uma doença sem misericórdia com um dente tenaz – como sustentar a confiança no futuro? Como perseverar na crença de um “grande futuro” diante da incontornabilidade do sofrimento e da morte? Se nada possibilita às criaturas – e aqui o uso de uma linguagem teológica não é casual –, nem mesmo a “uma criatura tão dócil, tão meiga, tão santa”, escapar ao “enxurro da vida”, qual é o sentido de fazer o que quer que seja? O que separaria o bom do mau, o belo do feio, a santa da prostituta?

“Confesso que tudo aquilo me pareceu obscuro, incongruente, insano...” – e um leitor dos existencialistas franceses aduziria: absurdo. Esse “sentimento do absurdo”, da perda de familiaridade de um mundo que, subitamente percebido em sua alteridade radical, denuncia o caráter ilusório do sentido que o hábito lhe atribuía, não abandonará mais Brás Cubas. No lugar daquela “sensação nova” de pertencimento, a perda do colo materno lhe trará um “sentimento de estrangeiridade”, que, embora indissociável da solidão mais insuperável, pois que acircunstancial, instaura a possibilidade de um olhar privilegiado sobre o mundo e os outros homens, um olhar como o do estrangeiro, capaz de captar a estranheza e mesmo o ridículo daquilo que, para os nativos, é o mais familiar e natural.

As questões geradas por esse sentimento do absurdo ecoarão, de modo mais ou menos explícito, em todas as ações de Brás daí em diante, e o modo como ele irá responder existencialmente a essas questões é que acabará por configurar a perspectiva singular de defunto autor que o distanciará definitivamente daquele Brás Cubas que ele fora até a morte de sua mãe. Nesse sentido, é possível afirmar que ele jamais conseguiria abandonar esse “triste capítulo”, jamais conseguiria passar “a outro mais alegre”.

Esse capítulo “triste, mas curto”, como ele intitula o capítulo XXIII de suas memórias, marca uma cesura no curso de sua existência, e é apenas a partir dele que Brás Cubas, diferenciando-se da massa de jovens abastados e irresponsáveis à qual pertencera até então, virá a ser quem ele é, o memorialista póstumo. E isso tudo é ele próprio quem nos diz no capítulo seguinte, “curto, mas alegre”, que, como o próprio título indica, forma uma dupla com o capítulo que lhe antecede, iluminando por contraste a originalidade da experiência que ali fora vivenciada. Não por acaso, esse capítulo “curto, mas alegre” descreve em que consistia a sua alegria antes do capítulo “triste, mas curto”, antes da morte de sua mãe, antes de Brás Cubas ser oprimido pelo “problema da vida e da morte” e se debruçar “sobre o abismo do Inexplicável”.161 Escreve o defunto autor sobre a sua pré-história:

Para lhes dizer a verdade toda, eu refletia as opiniões de um cabeleireiro, que achei em Módena, e que se distinguia por não as ter absolutamente. Era a flor dos cabeleireiros; por mais demorada que fosse a operação do toucado, não enfadava nunca; ele intercalava as penteadelas com muitos motes e pulhas, cheios de um pico, de um sabor... Não tinha outra filosofia. Nem eu. Não digo que a universidade me não tivesse ensinado alguma; mas eu decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Tratei-a como tratei o latim; embolsei três versos de Virgílio, dois de Horácio, uma dúzia de locuções morais e políticas, para as despesas da conversação. Tratei-os como tratei a história e a jurisprudência. Colhi de todas as coisas a fraseologia, a casca, a ornamentação...162

Antes de se converter propriamente em um defunto autor, Brás Cubas vivia coerentemente com a sua formação. Obedecia instintivamente ao primeiro mandamento do credo paterno, que lhe dizia: “Teme a obscuridade, Brás; foge do que é ínfimo. Olha que os homens valem por diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros homens.”163 Orientado unicamente por essa “sede de nomeada”, Brás, desde os tempos de menino até a faculdade, nunca reconhecera qualquer limite, qualquer responsabilidade, qualquer compromisso com o outro. Nesse ínterim, no entanto, aprendeu a comportar-se como exigia a sua posição na estrutura social, como demandava “o olhar agudo e judicial da opinião”164 . Aprendeu a colher “de todas as coisas a fraseologia, a casca, a ornamentação...”165 , o que, se lhe dava uma boa aparência e munição suficiente para as suas relação sociais, “para as despesas da conversação”, não lhe obrigava a nada, não lhe comprometia com filosofia nenhuma.

161 MP, XXIV, p. 53s. 162 MP, XXIV, p. 54. 163 MP, XXVIII, p. 60. 164 MP, XXIV, p. 54. 165 MP, XXIV, p. 54.

Na realidade, ele desde cedo aprendeu a periculosidade de se ter uma opinião própria quando tudo o que se almeja é o reconhecimento da opinião pública. Por isso, investiu sua juventude no cultivo das opiniões daquele cabeleireiro de Módena, que, como muitos de seus colegas de profissão, “se distinguia por não as ter absolutamente”, mudando de partido político e filosofia de acordo com o gosto do freguês. Afinal, Brás sabia muito bem que, uma vez que se tem opiniões próprias, “pode-se, com violência, abafá-las, escondê-las até a morte; mas nem essa habilidade é comum, nem tão constante esforço conviria ao exercício da vida.”166

Nesse compasso, ia tudo muito bem, até que lhe morre a mãe. Até que, pela primeira vez, não lhe falta mais “o essencial, que é o estímulo, a vertigem”, para se debruçar sobre “o abismo do Inexplicável”.167 Ao viver a morte de sua mãe; ao perceber a ausência de uma coerência necessária entre uma ação e seu resultado; ao enxergar o caráter ilusório dos sentidos habituais que se emprestam à existência; ao experimentar abruptamente o limite do império da opinião e portanto a própria e irremissível solidão, Brás Cubas angustia-se. Oprime-lhe o peito o confronto sem encobrimentos com a finitude, com essa negatividade que habita o seio do mundo, ameaçando perenemente, com a morte biológica – e não apenas com ela, como mais tarde ele descobriria – tudo

o que vive, pulsa, realiza-se.

Essa experiência da angústia é propriamente a origem de Brás Cubas, o momento em que, à revelia de sua sede de nomeada, desabrochará nele uma opinião sobre a vida e as questões que lhe oprimem o peito que, contrária e alheia à opinião pública, acabará por constituir a sua figura de morto que narra. No momento da morte de sua mãe, no momento em que, angustiando-se, sua consciência queda boquiaberta, Brás experimenta, ainda de forma tateante e nada alegre, o que mais tarde chamaria em tom de bazófia de “desdém dos finados”168 .

Em uma típica intromissão do defunto autor no curso da narrativa, que, corrigindo postumamente aquele momento de fragilidade, restaura através da ironia a couraça de alguém que se recusa a admitir que a vida possa ser isso que, a partir da morte de sua mãe, Brás começa a perceber que ela é, escreve o defunto autor:

Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam

166 Idem. “Teoria do medalhão”. Em: Papéis avulsos. Op. cit., p. 104. 167 MP, XXIV, p. 54. 168 MP, XXIV, p. 54.

a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, a força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos; não há platéia. O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o território da morte; não digo que ele se não estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá o exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados.169

2.5. Na Tijuca: o desabotoar da flor amarela

Não é possível permanecer indefinidamente com “os olhos estúpidos, a garganta presa, a consciência boquiaberta”.170 A vertigem diante do abismo do Inexplicável, até para poder aparecer como vertigem, pressupõe momentos de familiaridade com o mundo, em que os olhos vêem com clareza, a voz sai com desenvoltura, e a consciência se julga no controle. Tais momentos, por mais ilusórios que possam parecer quando se é tomado de angústia, dão a tônica da existência. A crise que se instalou na vida de Brás com a morte de sua mãe, em princípio, não se poderia sustentar indefinidamente. Cumpria-lhe digerir o que acabara de vivenciar e recuperar o prumo. Quem sabe até voltar a ser quem fora antes daquela experiência absurda. Para tanto,

no sétimo dia, acabada a missa fúnebre, travei de uma espingarda, alguns livros, roupa, charutos, um moleque – o Prudêncio do capítulo XI –, e fui meter-me numa velha casa de nossa propriedade. (...)

Às vezes, caçava, outras dormia, outras lia – lia muito –, outras enfim não fazia nada; deixava-me atoar de idéia em idéia, de imaginação em imaginação, como uma borboleta vadia ou faminta.171

Na “casa velha” da Tijuca, acompanhado pelo moleque Prudêncio, que provavelmente fazia as vezes de valete, faxineiro e cozinheiro, Brás Cubas podia cuidar unicamente de si e do seu luto. Enlutado, ensimesmado, enfraquecido pela dor de uma ferida cujo sangue, naquele momento, ainda jorrava, assim privando-o inteiramente da energia necessária para retomar qualquer ação e do interesse por qualquer realidade senão a da própria dor, só restava a Brás Cubas passar os dias à-toa, seja no sentido lato

169 MP, XXIV, p. 54. 170 MP, XXIII, p. 53. 171 MP, XXV, p. 55.

– caçando, dormindo ou lendo –, seja no sentido estrito – deixando-se “atoar de idéia em idéia, de imaginação em imaginação”. Esses dias de recolhimento absoluto no ermo da Tijuca, assim ele o esperava, haveriam de restituir-lhe as forças, de modo que, uma vez cumprido o necessário período de luto, ele pudesse voltar a engajar-se em seu projeto de um “grande futuro”, ele pudesse sair daquele torpor, não mais deixando-se atoar de idéia em idéia indefinidamente. O fato de que uma semana de luto fechado, de paralisia existencial, já lhe parecia mais do que o suficiente é o que ele próprio nos indica a certa altura do capítulo, quando escreve:

Um dia, dous dias, três dias, uma semana inteira passada assim, sem dizer palavra, era bastante para sacudir-me da Tijuca fora e restituir-me ao bulício. Com efeito, ao cabo de sete dias estava farto da solidão; a dor aplacara; o espírito já se não contentava com o uso da espingarda e dos livros, nem com a vista do arvoredo e do céu. Reagia a mocidade, era preciso viver. Meti no baú

o problema da vida e da morte, os hipocondríacos do poeta, as camisas, as meditações, as gravatas, e ia fechá-lo, quando o moleque Prudêncio me disse que uma pessoa do meu conhecimento se mudara na véspera para uma casa roxa, situada a duzentos metros da nossa.172

Mais uma vez, na hora em que o protagonista ia retornar ao mundo dos vivos, uma “situação fortuita” o impede. A essa altura das Memórias, o compasso de sua narrativa ainda não está inteiramente claro, mas, à semelhança do que acontecera no episódio do almocreve, em que Brás Cubas ia sonhando um grande futuro para si quando “empacou o jumento”, aqui temos novamente a descrição de um empacar.

Quando ele ia fechar o baú com “o problema da vida e da morte”, interrompe-o

o moleque Prudêncio, dizendo que uma pessoa do seu conhecimento mudara-se para uma casa vizinha, uma casa roxa – roxa, pisca-nos o olho o defunto, é quase o mesmo que coxa. Tratava-se de Dona Eusébia, cujos amores adulterinos com o Vilaça o menino diabo Brás havia denunciado uns quinze ou vinte anos antes, quando os havia surpreendido beijando-se “na moita” de sua casa e saíra gritando a recente descoberta a plenos pulmões para todos os demais convivas daquele banquete em honra da derrota de Napoleão.173 Ao ouvir um nome que evocava a sua infância, e lembrar também que daquele amor proibido nascera uma menina, “a flor da moita”174, Brás não escondeu o seu contentamento e logo a sua indiferença àquela senhora.

172 MP, XXV, p. 55. 173 Cf. MP, XII, p. 33: “Um episódio de 1814”. 174 Cf. MP, XXX, p. 61.

Tinham-me dado razão os acontecimentos. Ainda porém que ma não dessem, 1814 lá ia longe, e, com ele, a travessura, e o Vilaça, e o beijo da moita; finalmente, nenhumas relações estreitas existiam entre mim e ela. Fiz comigo essa reflexão e acabei de fechar o baú.

– Nhonhô não vai visitar Sinhá Dona Eusébia? – perguntou-me o Prudêncio. – Foi ela quem vestiu o corpo da minha defunta senhora.175

A lembrança de que Dona Eusébia participara, como ele, da morte de sua mãe, tendo mesmo vestido a defunta, foi um argumento invencível para que Brás reabrisse o baú e adiasse sua volta à vida – ou ao “bulício”, como ele a nomeia. É ainda o eco da morte de sua mãe que lhe paralisa a existência, mas, assim o crê Brás, não por muito tempo: “A ponderação do moleque era razoável; eu devia-lhe uma visita; determinei fazê-la imediatamente, e descer.”176

O problema é que, sobreposto a esse “acontecimento fortuito” que lhe impediu a volta – ao menos para quem acompanha a narrativa cronologicamente, deixando por ora de lado a consciência de que o narrador conta apenas o que lhe parece conveniente... –, um outro processo, mais sutil e mais decisivo, desenrolava-se na surdina. Um processo curioso, “nimiamente interessante” e absolutamente necessário ao “entendimento da obra”, à participação na gênese da posição do narrador. Escreve o defunto autor sobre o que lhe aconteceu ainda enquanto elaborava o seu luto, enquanto ainda trazia a “consciência boquiaberta” do capítulo anterior:

Renunciei tudo; tinha o espírito atônito. Creio que por então é que começou a desabotoar em mim a hipocondria, essa flor amarela, solitária e mórbida, de um cheiro inebriante e sutil. “Que bom que é estar triste e não dizer coisa nenhuma!” Quando esta palavra de Shakespeare me chamou a atenção, confesso que senti em mim um eco, um eco delicioso. Lembra-me que estava sentado, debaixo de um tamarineiro, com o livro do poeta aberto nas mãos e o espírito mais cabisbaixo do que a figura – ou jururu, como dizemos das galinhas tristes. Apertava ao peito a minha dor taciturna, com uma sensação única, uma coisa a que poderia chamar volúpia do aborrecimento. Volúpia do aborrecimento: decora esta expressão, leitor; guarda-a, examina-a, e se não chegares a entendê-la, podes concluir que ignoras uma das sensações mais sutis desse mundo e daquele tempo.177

A experiência de esvaziamento do sentido da realidade que se segue à descoberta do caráter constitutivamente finito da existência levou Brás Cubas a renunciar tudo, a entrar em um estado de atonia espiritual. Esse estado, que se segue à angustiante experiência da perda de familiaridade do mundo, subitamente revelado pela morte de sua mãe como a antítese do colo materno, faz com que Brás, incapaz de

175 MP, XXV, p. 56. 176 MP, XXV, p. 56. 177 MP, XXV, p. 55.

investir no que quer que seja, perceba tudo aquilo que o cerca como estranhamente equivalente em sua indiferenciação. Em vez de atuar, como sempre fizera nos tempos de “acadêmico estróina e superficial”, Brás agora simplesmente deixa-se atoar.

Enquanto permanece assim à-toa, “com o espírito mais cabisbaixo do que a figura – ou jururu, como dizemos das galinhas tristes”, sucede-lhe algo que nem sempre acomete os enlutados. Ele é tocado por uma “sensação única”, por um “eco delicioso”, que converte a sua “dor taciturna” em uma espécie de refúgio último contra a finitude. Se não é possível apegar-se a nada, pois que tudo acaba sendo mesmo roído pelo “dente tenaz de uma doença sem misericórdia”, resta ao menos a tristeza gerada pela perda da pessoa amada.178 Resta sobretudo o correlato imediato dessa tristeza: a inação. “Que bom é estar triste e não dizer [nem fazer] coisa nenhuma!”

Em meio ao luto, Brás Cubas descobre a “volúpia do aborrecimento”. Trata-se, sem dúvida, de uma expressão aparentemente contraditória, já que, em meio ao ritmo frenético da existência cotidiana, nada aborrece mais do que a falta do que fazer, normalmente experimentada como um fardo de que é preciso nos livrarmos imediatamente. O remédio comumente utilizado para suprimirmos aqueles momentos em que, por algum imprevisto, o instante se alonga – Langeweile, ao pé da letra “instante longo”, é a palavra alemã para “tédio” – é a invenção de um passatempo qualquer, que, ao apressar a passagem de um espaço de tempo sentido como vazio, pois que privado de sentido, nos restitui aquela sensação de pertencimento ao curso do tempo a que estamos habituados.

A condição para a aborrecida experiência do tédio é a nossa experiência habitual do tempo como algo prenhe de sentido, de projetos a realizar e tarefas a cumprir. É esse caráter futurante do tempo, cuja face presente só se deixa iluminar por estar voltada ao porvir, que sustenta a familiaridade do mundo. No caso de Brás Cubas, aquilo que sustentava a sua leveza existencial antes da morte de sua mãe era justamente a esperança indeterminada de um grande futuro para si. Se, até então, ele havia experimentado momentos de tédio, esses sempre haviam sido pensados como apenas acidentais e decerto eram facilmente superados com o recurso a algum passatempo,

178 A canção “De mais ninguém”, do disco Cor de rosa e carvão, de Marisa Monte, cuja letra foi escrita por Arnaldo Antunes, explicita o que está em jogo na “sensação única” experimentada por Brás Cubas. Diz a canção: “Se ela me deixou, a dor/ é minha só, não é de mais ninguém./ Aos outros eu devolvo a dó,/ Eu tenho a minha dor./ Se ela preferiu ficar sozinha,/ ou já tem um outro bem./ Se ela me deixou a dor é minha,/ a dor é de quem tem./ É o meu troféu, é o que restou,/ é o que me aquece sem me dar calor./ Se eu não tenho o meu amor,/ eu tenho a minha dor./ A sala, o quarto, a casa está vazia,/ a cozinha, o corredor./ Se nos meus braços ela não se aninha,/ a dor é minha./ É o meu lençol, é o cobertor,/ é o que me aquece sem me dar calor./ Se eu não tenho o meu amor,/ eu tenho a minha dor (...)”.

fosse da ordem da folia, fosse da ordem do academicismo superficial, que desde cedo ele sabia indispensável para a chegada do grande futuro a que almejava.

Com a morte de sua mãe, no entanto, tornou-se subitamente claro para Brás Cubas que, se a crença naquele grande futuro indeterminado e a esperança de alcançar uma “superioridade qualquer” eram o sustentáculo do sentido dos seus dias, esses dias simplesmente não tinham mais qualquer sentido. O grande futuro que ele acalentava, cheio de indeléveis realizações, simplesmente não existia, seja porque não havia qualquer coerência necessária entre uma ação e seu resultado, seja porque toda e qualquer realização não era mais do que transitória, e tendia à desrealização, ao fim, à morte. O tempo, que Brás até então experimentara como repositório de promessas, das mais disparatadas e augustas possibilidades, aparecia-lhe agora como fiel depositário da morte. Brás começa a suspeitar de um estreito parentesco entre o tempo e o cancro, que, como ele, é “indiferente às virtudes do sujeito; quando rói, rói; roer é o seu ofício.”

Perdida a sua dimensão futurante, o seu caráter de possibilidade efetivamente realizável, o tempo presente tende a distender-se e alongar-se indefinidamente. Torna-se vazio, e como tal incapaz de saciar a fome humana por sentido, o que explica o fato de Brás, ao deixar-se “atoar de imaginação em imaginação”, comparar-se a uma “borboleta vadia ou faminta”. Vadia porque impossibilitada de engajar-se em qualquer projeto existencial; faminta porque, ainda que fosse possível um tal engajamento, ela permaneceria insaciada e insaciável.

Com a queda de sua compreensão vulgar do tempo, é natural que Brás fale que uma “dor taciturna”, fúnebre, macabra, que evoca idéias de morte, lhe apertasse o peito. Difícil é compreender como essa “dor taciturna” pôde se converter em uma “sensação única”, e finalmente em “uma coisa a que se poderia chamar volúpia do aborrecimento”. O que haveria de voluptuoso nesse presente infinito, no qual todas as coisas ameaçam dissolver-se, indiferenciar-se, e todos os apelos tornam-se igualmente interessantes e portanto essencialmente desinteressantes?

A essa altura da narrativa, não é ainda possível uma resposta satisfatória a essa pergunta, mas, alguns capítulos antes, Brás já deixara indicado o desconsolo que sentiu ao receber o diploma, que, “se me dava a liberdade, dava-me a responsabilidade.” Na seção 2.3., analisou-se esse desconsolo como a recusa brascubiana de qualquer limitação da sua liberdade, por ele compreendida como uma espécie de livre-arbítrio absoluto. Brás, já se disse, não se contentava com nada menos do que tudo. Enquanto viveu na ilusão da ausência de limites, da inexistência da morte, tudo correu bem, e Brás habilmente sempre conseguiu valer-se do império da opinião para conciliar desejos muitas vezes inconciliáveis.

Súbito, porém, a morte se impõe, ele pela primeira vez a vê. Por um lado, essa experiência impossibilita que ele continue a nutrir a sua sede de ilimitado, apontando para o limite extremo de tudo o que é. Isso devia causar-lhe unicamente dor. Causa-lhe, no entanto, também volúpia. Ele é contagiado pela voluptuosa idéia de que, eliminada a possibilidade de uma efetiva realização existencial, a qual naturalmente implicaria a necessidade de escolher um projeto dentre os muitos que se anunciavam e portanto de renunciar a todos os demais, ele já não precisava abrir mão do que quer que seja. Súbito, ele via-se tomado por uma desnecessidade de optar, e essa liberdade, se não saciava a fome, ao menos conservava intacta a ilusão daquela absoluta liberdade espiritual a que sempre almejara – e que, mais tarde, ao introduzir a idéia do “desdém dos finados”, ele converteria na única superioridade de fato alcançável, sua vingança contra a morte.

É esse caráter voluptuoso de seu aborrecimento que permite finalmente entender por que, enquanto ainda elaborava o luto pela morte de sua mãe, Brás afirma que “por então é que começou a desabotoar em mim a hipocondria, essa flor amarela, solitária e mórbida, de um cheiro inebriante e sutil.” A tez amarelada dessa flor corresponde ao fato de ela continuamente evocar a proximidade da morte, haja vista que não é outra a cor resultante das contrações cadavéricas. O fato de ser uma flor solitária, por sua vez, diz respeito ao sumo da experiência realizada pelo próprio Brás, que, ao descobrir a finitude através da morte de sua mãe, foi abruptamente tomado de um sentimento de estrangeiridade em sua própria casa, de não pertencimento ao seu mundo, como se a familiaridade do mundo só se pudesse sustentar ao preço da ilusão da inexistência da morte. Finalmente, a articulação entre morbidez e hipocondria aponta para o abatimento e a falta de vigor que comumente acometem os enlutados, e que, se perdura excessivamente, convertendo-se em uma ferida mal cicatrizada, priva-lhes da capacidade de investir no que quer que seja, deixando-os com os olhos voltados unicamente para o passado e incapazes de esquecer a própria dor.

Todas essas características da hipocondria seriam em princípio apenas desagradáveis e dolorosas, e instigariam o enlutado a superá-la o quanto antes. Mas quando Brás afirma que essa “flor amarela, solitária e mórbida” tem, não obstante, “um cheiro inebriante e sutil”, ele identifica a hipocondria à volúpia do aborrecimento. Esta seria “uma das sensações mais sutis deste mundo e daquele tempo” justamente porque, como já se mostrou, permite a afirmação da própria liberdade espiritual, aí entendida como absoluta ausência de condicionamentos, em um mundo absolutamente condicionado por esse limite inexorável que é a morte – e não apenas por ele.

Brás, porém, ainda não se diz definitivamente hipocondríaco. Afirma apenas que por então é que nele “começou a desabotoar” essa flor. A essa altura de sua narrativa, portanto, o bulício ainda poderia falar mais alto, a mocidade ainda poderia reagir, a flor da hipocondria ainda poderia morrer em botão.

Assim, quando seu pai, preocupado com seu abatimento, foi buscá-lo na Tijuca “com duas propostas na algibeira”179, dizendo-lhe que se conformasse com “a vontade de Deus”180, Brás hesitou:

Uma parte de mim mesmo dizia que sim, que uma esposa formosa e uma posição política eram bens dignos de apreço; outra dizia que não; e a morte de minha mãe me aparecia como um exemplo da fragilidade das coisas, das afeições, da família...181

Enquanto Brás assim hesitava, seu pai é que não perdeu tempo, e reavivou-lhe a memória ao repetir a velha sabedoria familiar, transmitida de geração a geração. Disse-lhe:

(...) não gastei dinheiro, cuidados, empenhos, para te não ver brilhar, como deves, e te convém, e a todos nós; é preciso continuar o nosso nome, continuá-lo e ilustrá-lo ainda mais. Olha, estou com sessenta anos, mas se fosse necessário começar vida nova, começava, sem hesitar um só minuto. Teme a obscuridade, Brás, foge do que é ínfimo. Olha que os homens valem por diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros homens. Não estragues as vantagens da tua posição, os teus meios...

E foi por diante o mágico, a agitar diante de mim um chocalho, como me faziam, em pequeno, para eu andar depressa, e a flor da hipocondria recolheu-se ao botão para deixar a outra flor menos amarela, e nada mórbida – o amor da nomeada, o emplasto Brás Cubas.182

A posição do velho Cubas é inequívoca: a morte da esposa é fruto da “vontade de Deus”. Para alguns, isso poderia significar o reconhecimento de que, embora o intelecto finito do homem não a possa compreender, seu sentido é garantido pela existência Dele. Mas não para o velho Cubas, que usa esse argumento pura e simplesmente como uma forma de evadir-se da questão que aquela experiência poderia proporcionar-lhe, como aliás proporcionou a seu filho. Foi a “vontade de Deus”, afirma

o pai de Brás, e não se pensa mais nisso.

179 MP, XXVI, p. 56. 180 MP, XXVI, p. 56. 181 MP, XXVI, p. 57. 182 MP, XXVIII, p. 60.

A visita do pai explicita o confronto entre a autoridade paterna, que só cuida do futuro, e a sensação de pertencimento ao colo materno, cuja perda prende Brás ao passado. Se o pai lhe exige que continue o nome da família, e mesmo que o ilustre ainda mais, a (morte da) mãe o lembra “da fragilidade das coisas, das afeições, da família...”. Se o pai reconhece e defende a opinião pública como depositária do sentido da existência, a (morte da) mãe lhe ensina que mesmo o reconhecimento mais amplo é incapaz de livrar o homem da obscuridade essencial, a morte que lhe habita a alma. Se o pai lhe diz que, “se fosse necessário começar vida nova, começava, sem hesitar um só minuto”, a (morte da) mãe faz com que nele comece a desabotoar “a flor da hipocondria”, que implica uma resistência a começar o que quer que seja.

Entre o pai e a mãe, o futuro e o passado, o amor da nomeada e a volúpia do aborrecimento, a ação e a paralisia, Brás hesita. O pai vivo, no entanto, logo faz valer os seus dons de “mágico” – estaria Brás sugerindo que pregar a crença no futuro seria uma forma de ilusionismo? – e, como um palhaço, sai a agitar diante dele um chocalho, para ele “andar depressa”, como lhe faziam quando era pequeno, antes portanto daquela experiência originária que foi o confronto com a morte (da mãe). Tantas foram as admoestações de seu pai para que deixasse a tristeza e a obscuridade de lado, que o filho acabou cedendo:

Vencera meu pai; dispus-me a aceitar o diploma e o casamento, Virgília e a Câmara dos Deputados. (...) e a flor da hipocondria recolheu-se ao botão para deixar a outra flor menos amarela, e nada mórbida – o amor da nomeada, o emplasto Brás Cubas.183

Decisões importantes como essa, entretanto, não somos nós que as tomamos, elas é que nos tomam a nós. Desse modo, quando, antes de tornar à vida, Brás foi prestar aquela visita a Dona Eusébia que havia acordado com a lembrança de sua mãe, outro incidente haveria de interpor-se entre ele e o seu futuro. Não seria ainda dessa vez que ele descobriria a fórmula do emplasto Brás Cubas, que, ao contrário do que ele então pensava, não se deve tão facilmente confundir com o mero amor da nomeada.

2.6. Eugênia e a borboleta preta

Tão logo Brás chegou à casa de Dona Eusébia, esta “começou a falar de minha mãe, com muitas saudades, com tantas saudades, que me cativou logo, posto me

183 MP, XXIX, p. 60.

entristecesse.” Aquela senhora, que confessava ser uma “velha patusca”, “percebeu-o nos meus olhos, e torceu a rédea à conversação; pediu-me que lhe contasse a viagem, os estudos, os namoros...”.184 Brás teria falado um pouco de tudo isso e, acabado o assunto, prestada a devida homenagem à lembrança de sua mãe, simplesmente teria ido embora da Tijuca e voltado à cidade, como já decidira depois da conversa com seu pai.

Ocorre que, enquanto assim conversava, a filha de Dona Eusébia juntou-se a eles. E Brás, embora de imediato não se tenha encantado por “Eugênia, a flor da moita”185 – a justaposição de um nome que significa “bem nascida” e de um epíteto que aponta para a proveniência espúria da moça realça o uso ironicamente cruel que Brás Cubas faz da linguagem –, tampouco deixou de notar-lhe a “compostura de mulher casada”, que, se lhe “diminuía um pouco da graça virginal”, fazia com que parecesse “ainda mais mulher do que era”.186

Depressa nos familiarizamos; a mãe fazia-lhe grandes elogios, eu

escutava-os de boa sombra, e ela sorria, com os olhos fúlgidos, como se lá

dentro do cérebro estivesse a voar uma borboletinha de asas de ouro e olhos

de diamante...

Digo lá dentro, porque cá fora o que esvoaçou foi uma borboleta preta

(...). Dona Eusébia deu um grito, levantou-se, praguejou umas palavras soltas:

– Tesconjuro!... Sai, diabo!... Virgem Nossa Senhora!...187

A familiaridade do encontro, que já conseguia mesmo apagar a sua motivação originalmente fúnebre, foi subitamente interrompida pela entrada de uma borboleta preta, que Dona Eusébia compara ao próprio diabo, e Brás, sempre brincando com as antíteses, contrapõe a “uma borboletinha de asas de ouro e olhos de diamante” que estaria voejando “dentro do cérebro” de Eugênia.

Em uma primeira leitura, a contraposição entre as duas borboletas é reveladora da assimetria social que marca aquela relação. Brás, “garção bonito, airoso, abastado”, encontra-se na companhia de uma “robusta donzelona” e de sua filha, uma bastarda cuja “graça virginal” era menos diminuída por sua compostura do que por seu nascimento. Ciente e cioso dessa assimetria, que, não fosse pela morte de sua mãe, simplesmente teria inviabilizado aquele encontro, Brás é incapaz de reprimir a idéia de ser o objeto da cobiça de Eugênia, cujo cérebro, assim ele projeta, cuidaria apenas dos broches de ouro e anéis de diamante que ele poderia dar-lhe.

184 MP, XXIX, p. 60. 185 MP, XXX, p. 61. 186 MP, XXX, p. 61. 187 MP, XXX, p. 61ff.

No âmbito dessa leitura, a súbita aparição da borboleta preta revelaria a impossibilidade de uma união entre aquele “garção abastado” e aquela “flor da moita”. Assim, quando Dona Eusébia esconjura a borboleta preta, isso teria menos a ver com alguma “superstição” do que com a não menos ridícula tentativa de encobrir o abismo social que separava os moços, cujo casamento, assim projeta Brás, seria o objetivo último daquela “velha patusca” – daí os “grandes elogios” feitos à filha...

Ocorre que a lógica implacável do filho da elite vê-se um pouco abalada no fim da tarde, quando, de volta à casa, preparando-se para voltar à cidade, Brás vê “passar a cavalo a filha de Dona Eusébia, seguida de um pajem; fez-me um cumprimento com a ponta do chicote. Confesso que me lisonjeei com a idéia de que, alguns passos adiante, ela voltaria a cabeça para trás; mas não voltou.”188

Esse abalo, como sói acontecer, desperta-lhe o desejo de provar a sua superioridade, dobrando a donzela, desejo que até teria conseguido afastar, não fosse a insistência de Dona Eusébia, que, no dia seguinte, quando ele acabava os “preparativos da viagem”, foi buscá-lo à casa, para ele “ir lá jantar” novamente com elas. O narrador, como que defendendo-se postumamente das conseqüências daquele reencontro, joga a culpa no cálculo de Dona Eusébia. Diz-nos: “Cheguei a recusar; mas instou tanto, tanto, tanto, que não pude deixar de aceitar (...)”.189

Brás, a essa altura de sua narrativa, já era novamente só desejo, fosse o desejo de tornar ao bulício da cidade, à noiva e ao Parlamento, fosse o desejo de “glosar à filha o mesmo mote”190 que o Vilaça glosara à mãe. As admoestações de seu pai, para que esquecesse a morte da mãe e respeitasse a vontade de Deus, pareciam estar fazendo efeito. Brás, finalmente, parecia estar deixando morrer em botão a “flor amarela, solitária e mórbida” da hipocondria. Tudo ia bem até que, depois do jantar, Dona Eusébia resolveu mostrar-lhe a chácara.

Saímos à varanda, dali à chácara, e foi então que notei uma circunstância. Eugênia coxeava um pouco, tão pouco, que eu cheguei a perguntar-lhe se machucara o pé. A mãe calou-se; a filha respondeu sem titubear:

– Não, senhor, sou coxa de nascença.191

A continuidade entre a borboleta preta que invadiu o primeiro encontro de Brás e Eugênia e o fato de a moça ser “coxa de nascença” é evidente: o seu nascimento espúrio

188 MP, XXX, p. 62. 189 MP, XXXII, p. 63. 190 MP, XXXII, p. 64. 191 MP, XXXII, p. 64.

e coxo inviabilizava qualquer autêntica aproximação entre eles. Dada a inferioridade social de Eugênia, que Brás naturaliza ao atribuir-lhe um defeito biológico, aquele casamento era impossível.

Agora desobrigado de qualquer compromisso sério, Brás empenha-se ainda mais em dobrar aquela donzela, em reiterar a sua superioridade, que doravante seria não apenas social, mas também moral, na medida em que apenas verdadeiros cristãos não cuidariam de um defeito tão grave quanto aquele, ou melhor, sentiriam compaixão por ele. Depois daquela revelação, ele permaneceria ainda oito dias na Tijuca, “enlevado ao pé da minha Vênus manca. Enlevado é uma maneira de realçar o estilo; não havia enlevo, mas uma certa satisfação física e moral. (...) Não desci, e acrescentei um versículo ao Evangelho: – Bem-aventurados os que não descem, porque deles é o primeiro beijo das moças.”192

A interpretação da assimetria social como fundamento das metáforas da “borboleta preta” e da “coxidão ingênita” de Eugênia é reforçada pela confissão que, já morto e narrador, Brás Cubas faria: “Pobre Eugênia! Se tu soubesses que idéias me vagavam pela mente fora naquela ocasião! Tu, trêmula de comoção, com os braços nos meus ombros, a contemplar em mim o teu bem-vindo esposo, e eu com os olhos em 1814, na moita, no Vilaça, e a suspeitar que não podias mentir ao teu sangue, à tua origem...”.193

Essa confissão dá ensejo a que o narrador, imaginando a reação de “uma alma sensível”, título do capítulo que se segue ao da bem-aventurança, intrometa-se no curso da narrativa e, dirigindo-se diretamente ao leitor, em uma parábase semelhante às das comédias de Aristófanes, justifique-se do seguinte modo: “Há aí, entre as cinco ou dez pessoas que me lêem, há aí uma alma sensível, que está decerto um tanto agastada com

o capítulo anterior, começa a tremer pela sorte de Eugênia, e talvez ... sim, talvez, lá no fundo de si mesma, me chame cínico. Eu cínico, alma sensível? Pela coxa de Diana! (...) eu não sou cínico, eu fui homem (...).”194

A finalidade dessa parábase é quebrar a tendência à identificação entre leitor e protagonista, de modo a gerar um distanciamento favorável à reflexão. Ao negar o próprio cinismo tão enfaticamente a ponto de fazer menção à “coxa de Diana”, o narrador acaba por confirmá-lo, de modo a que os seus raciocínios aparentemente tão

192 MP, XXXIII, p. 65. 193 MP, XXXIII, p. 65. 194 MP, XXXIV, p. 65s.

bem fundamentados apareçam ao leitor, agora distanciado e portanto mais atento, como imposturas de classe. Curiosamente, porém, no mesmo movimento em que denuncia a si próprio como cínico, Brás Cubas suaviza essa acusação universalizando-a. O cinismo não seria uma característica individual sua, e tampouco dos jovens de sua classe social, mas sim da natureza humana.

O procedimento (brascubiano) de naturalização ou, conforme o ponto de vista, universalização das próprias experiências é fundamental na tessitura das Memórias póstumas de Brás Cubas como um todo. Esse procedimento, que, na narração de Brás Cubas, converte-se em verdadeiro mecanismo, do qual praticamente nada escapa, é o que garante ao personagem a aparência de filósofo. Os capítulos em que ele narra o seu encontro com Eugênia, no entanto, são mais exemplares do que os outros por revelarem as molas detrás do mecanismo, os interesses particulares de Brás Cubas. Neste caso, a naturalização do defeito de Eugênia serve para encobrir o seu caráter social e, por intermédio da parábase “a uma alma sensível”, ao mesmo tempo para revelar o defeito de uma sociedade que, contrariamente à moral cristã que afeta professar – não é à toa que o título de dois dos oito capítulos que compõem o episódio referem-se diretamente a passagens bíblicas –, valora os homens de acordo com o seu nascimento, isto é, com as suas posses. Sob essa ótica, é correta a interpretação de Roberto Schwarz, segundo a qual as Memórias póstumas de Brás Cubas teriam sido escritas “contra o seu pseudoautor”195, no intuito de desvelar o caráter violento e irracional da ideologia das elites brasileiras.

O problema é que, ao contrário do que pretende, essa interpretação de forma alguma esgota o episódio de Eugênia. O fato de que é sempre possível reportar uma reflexão pretensamente universal a um interesse particular não anula, por si só, a universalidade dessa reflexão. Assim, por mais que nos tenha parecido necessário chamar a atenção para o funcionamento do mecanismo ideológico de naturalização dos vícios sociais no relato de Brás Cubas, cumpre retomar a simpatia pelo personagem que até o momento havia norteado a nossa reconstrução do romance.

A (primeira) visita a Dona Eusébia, como já se disse, foi motivada pelo respeito de Brás Cubas à memória de sua mãe, última homenagem que ele lhe teria feito antes de voltar ao bulício e sepultar de vez a melancolia que começava a desabrochar em seu peito. Nessa visita, porém, uma borboleta preta sobressaltou a mãe e a filha, rompendo a

195 SCHWARZ, R. Um mestre na periferia do capitalismo. Op. cit., p. 82.

familiaridade da situação e nela insinuando um elemento estranho. Esse elemento estranho foi anteriormente lido como uma espécie de denúncia da assimetria social ali presente. O filósofo Brás Cubas, entretanto, tem uma outra interpretação do acontecimento, que apresenta em um capítulo à parte, imediatamente posterior ao da primeira visita a Dona Eusébia. Neste capítulo, intitulado justamente “A borboleta preta”, escreve o narrador:

No dia seguinte, como eu estivesse a preparar-me para descer, entrou no meu quarto uma borboleta, tão negra como a outra, e muito maior do que ela. Lembrou-me o caso da véspera, e ri-me; entrei logo a pensar na filha de Dona Eusébia, no susto que tivera, e na dignidade que, apesar dele, soube conservar. A borboleta, depois de esvoaçar muito em torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ela foi pousar na vidraça; e, porque eu a sacudisse de novo, saiu dali e veio parar em cima de um velho retrato de meu pai. Era negra como a noite. O gesto brando com que, uma vez posta, começou a mover as asas, tinha um certo ar escarninho, que me aborreceu muito. Dei de ombros, saí do quarto; mas, tornando lá, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo lugar, senti um repelão dos nervos, lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.

Não caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça. Apiedei-me; tomei-a na palma da mão e fui depô-la no peitoril da janela. Era tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado.

– Também por que diabo não era ela azul? – disse comigo.

E essa reflexão – uma das mais profundas que se tem feito, desde a invenção das borboletas – me consolou do malefício, e me reconciliou comigo

196

mesmo.

Esse capítulo, que Brás escreve afetando temer que “algum leitor circunspecto”

o detenha para perguntar se “é apenas uma sensaboria ou se chega a empulhação”197, é um dos mais coerentes do livro, na medida em que concentra em forma de alegoria os principais estágios de sua relação com Eugênia. Como em um corte em movimento característico do cinema, o vôo da borboleta preta conduz a câmera da imagem dos três conversando, na casa de Dona Eusébia, até a testa de Brás, em casa, onde finalmente pousa. Brás tenta afastar aquele elemento estranho, índice da coxidão ingênita de Eugênia, na esperança talvez de poder acalentar o desejo pela filha de Dona Eusébia, cuja “dignidade” ele ambiguamente admirara na visita do dia anterior.

Na primeira vez em que tenta afastar a borboleta preta, ela quase desaparece de sua consciência, mas é impedida por uma barreira tão invisível quanto as principais barreiras sociais: a vidraça. Na segunda vez, a sacudidela tem efeito contrário ao que esperava, e a borboleta preta pára sobre um retrato de seu pai, aquele mesmo homem que sempre ensinara Brás Cubas a temer a obscuridade, e que portanto devia temer mais

196 MP, XXXI, p. 62. 197 MP, XXXII, p. 63.

do que tudo um casamento com uma mulher de estirpe inferior, “uma coxa de nascença”. O fato de que, “uma vez posta” sobre o retrato de seu pai, a borboleta começou a mover as asas, remete ao embate entre a consciência de classe e o desejo de Brás, do qual aquela parecia escarnecer, o que lhe “aborreceu muito”. Para escapar a esse embate, Brás tentou sair do quarto; “mas, tornando lá, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo lugar”, não suportou mais a lembrança da “negritude” de Eugênia e, com um repelão, abateu a borboleta, sacrificando a possibilidade de assumir qualquer compromisso com uma “flor da moita”.

O problema é que seu desejo por ela não se deixou tão facilmente sacrificar: a borboleta preta “ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça”. Em vez de sentir raiva do próprio desejo ou mesmo da consciência de classe que lhe impossibilitava a sua satisfação, Brás apelou então para uma solução de compromisso: a compaixão. Foi o álibi da compaixão que lhe permitiu ficar oito dias “ao pé” de Eugênia, “ao pé dessa criatura tão singela, filha espúria e coxa, feita de amor e desprezo”, já que, arremata ele

o seu raciocínio compassivo, “ao pé dela sentia-me bem, e ela creio que ainda se sentia melhor ao pé de mim”.198 Foi, em suma, o álibi da compaixão que, no domingo seguinte, lhe permitiu ganhar o “primeiro beijo de Eugênia – o primeiro que nenhum outro varão jamais lhe tomara”, e que quase foi surpreendido por Dona Eusébia, que “entrou inesperadamente, mas não tão súbita, que nos apanhasse ao pé um do outro”.199

Além do evidente ridículo a que o narrador submete a compaixão, virtude capital do cristianismo que mais tarde seria fulminada definitivamente pela “teoria do benefício”200, a crueldade de Brás Cubas é repisada no plano da linguagem, através do uso insistente da expressão “ao pé de”, que, salvo engano, ocorre cinco vezes na página solitária em que Brás narra a sua “bem-aventurança” ao “pé da minha Vênus Manca”.201 Como a compaixão não é capaz de salvar nenhum desventurado, “a infeliz expirou dentro de alguns segundos”. Traduzindo: depois do beijo, Brás abandonou Eugênia à sua própria sorte.

Como esse comportamento lhe deixasse “aborrecido, incomodado”, foi inevitável o recurso à filosofia, que muitos pensadores já disseram só poder nascer em momentos de crise (Ortega y Gasset), ou de grande perigo (Nietzsche). Pergunta-se Brás em tom de revolta: “Também por que diabo não era ela azul?”

198 MP, XXXIII, p. 65. 199 MP, XXXIII, p. 65. 200 Cf. MP, CXLIX, p. 166: “O prazer do beneficiador é sempre maior que o do beneficiado.” 201 MP, XXXIII, p. 65.

Esse raciocínio metafísico, que revela como Brás não perdoa à natureza o defeito da borboleta preta, encontra uma correspondência perfeitamente simétrica no capítulo que se segue à descoberta da coxidão de Eugênia. A correspondência é aliás salientada pelo próprio narrador, que escreve:

O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, sem atinar com a solução do enigma. O melhor que há, quando se não resolve um enigma, é sacudi-lo pela janela fora; foi o que eu fiz; lancei mão de uma toalha e enxotei essa outra borboleta preta, que me adejava no cérebro. Fiquei aliviado e fui dormir. Mas o sonho, que é uma fresta do espírito, deixou novamente entrar o bichinho, e aí fiquei eu a noite toda a cavar o mistério, sem explicá-lo.202

Vê-se que, a despeito do seu confronto com a finitude constitutiva da existência por ocasião da morte de sua mãe, Brás Cubas, como nos tempos de faculdade, continua a não se contentar com nada menos do que tudo. A coexistência dos opostos bonita e coxa, borboleta e preta ou mesmo bela e bastarda parece-lhe “um imenso escárnio”, como se a natureza, podendo ser inteiramente isso ou aquilo, optasse conscientemente por nunca ser plenamente nada, resguardando sempre em seu seio uma negatividade que lhe parece insuportável.203 Essa negatividade, que se revela fenomenicamente na forma de figuras ambíguas como a borboleta preta ou Eugênia, é em última instância a mola que move a marcha do devir, aquela mesma marcha que atropelou a sua santa mãe, apesar de todas as suas qualidades. A lógica desse mecanismo, que Brás Cubas havia desistido de entender depois que seu pai novamente lhe incutira o amor da nomeada, propondo-lhe uma noiva e uma cadeira no Parlamento, aparece-lhe mais uma vez como um enigma confrangedor. Dessa feita, sua consciência não fica boquiaberta diante de uma morte biológica, mas diante de uma mácula, a coxidão, mortal para o seu desejo, para a sua vontade de quedar-se ao pé de Eugênia.

O encontro com Eugênia marca, portanto, um aprofundamento na ferida existencial que maculou a carne de Brás Cubas ao viver a morte de sua mãe. Quando a dor então sentida começava a dissipar-se e a ferida a cicatrizar, Eugênia, a “bem nascida”, lhe aparece para revelar que a morte, ou a imperfectibilidade do ser humano de que ela é a evidência cabal, não deve ser vista apenas como um limite externo à vida,

202 MP, XXXIII, p. 64. 203 Brás Cubas, aqui, raciocina como Manuel Bandeira, que um dia escreveu: “A vida assim nos afeiçoa,/ Prende. Antes fosse toda fel!/ Que ao se mostrar às vezes boa,/ Ela requinta em ser cruel.” (BANDEIRA,

M. “A vida assim nos afeiçoa”. In: Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 55.)

como aquilo que, sendo de natureza inteiramente distinta da natureza da vida, apenas marcaria o seu fim, sem no entanto dispor do poder de interferir em seu desdobramento. Ao contrário, a coxidão de Eugênia é a mordida da morte na vida, que, mais uma vez, revela-se incapaz de escapar a seu “dente tenaz”. Eugênia, apesar de “uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril”, apesar de seus bons genes, traz não obstante a morte, “negra como a noite”, na carne.

“Confesso que tudo aquilo me pareceu obscuro, incongruente, insano...”, poderia repetir Brás, mas não o fez. Tentou, ao contrário, enxotar esse outro enigma, “essa outra borboleta preta”, para fora de seu espírito. A princípio, não teve sucesso, e foi obrigado a “cavar o mistério, sem explicá-lo”. Mas logo encontrou uma solução: enxotar a própria Eugênia, o que viria a fazer imediatamente após conquistar-lhe o primeiro beijo. “Pois um golpe de toalha rematou a aventura. Não lhe valeu a imensidade azul, nem a alegria das flores, nem a pompa das folhas verdes, contra uma toalha de rosto, dois palmos de linho cru. Vejam como é bom ser superior às borboletas!”204

Se Eugênia, “filha espúria e coxa”, não era a borboleta (de sangue) azul que ele procurava, isso não significava que tal borboleta azul não pudesse ser encontrada alhures. A esperança de uma existência sem ambigüidades, de uma vida livre do “escárnio da natureza” ainda pulsava em seu peito. Afinal, a essa altura de sua narrativa, ele tem motivos para “suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio”, mas não sempre. Virgília, a noiva escolhida por seu pai, filha do “Conselheiro Dutra (...), uma influência política”205 , haveria de ser plenamente eugênica. Essa é, ao menos, a expectativa com que, após breve hesitação, ele encerra o episódio da borboleta preta:

Vejam como é bom ser superior às borboletas! Porque, é justo dizê-lo, se ela fosse azul, ou cor de laranja, não teria mais segura a vida; não era impossível que eu a atravessasse com um alfinete, para recreio dos olhos. Não era. Esta última idéia restituiu-me a consolação; uni o dedo grande ao polegar, despedi um piparote e o cadáver caiu no jardim. Era tempo; aí vinham já as próvidas formigas. . . Não, volto à primeira idéia; creio que para ela era melhor ter nascido azul.206

Quanto a Eugênia, abandonada à margem do caminho, ele lhe dedica um capítulo de despedida, no qual apresenta a sua filosofia das botas curtas:

As botas apertadas são uma das maiores venturas da terra, porque, fazendo doer os pés, dão azo ao prazer de as descalçar. (...) Enquanto esta

204 MP, XXXI, 63. 205 MP, XXVIII, p. 59. 206 MP, XXXI, p. 63.

idéia me trabalhava no famoso trapézio, e via a aleijadinha perder-se no

horizonte do pretérito, e sentia que o meu coração não tardaria também a

descalçar suas botas. E descalçou-as o lascivo. (...) Em verdade vos digo que

toda sabedoria humana não vale um par de botas curtas.

Tu, minha Eugênia, é que não as descalçaste nunca; foste aí pela estrada

da vida, manquejando da perna e do amor, triste como os enterros pobres,

solitária, calada, laboriosa, até que vieste também para esta outra margem... O

que eu não sei era se a tua existência era muito necessária ao século. Quem

sabe? Talvez uma comparsa de menos fizesse patear a tragédia humana.207

Por esse réquiem à “aleijadinha”, cujo mau gosto dificilmente se deixará superar em outro momento de um livro que não prima pela fineza, fica patente que o abalo provocado pela coxidão de Eugênia não foi ainda suficiente para paralisar o ímpeto vital de Brás Cubas, que, como o próprio nos diz, descalçou lascivamente as botas curtas com as quais ficara ao pé da “flor da moita”, recuperando assim toda a sua agilidade, e chegando ao ponto de afirmar a vida como sendo “o mais engenhoso dos fenômenos, porque só aguça a fome, com o fim de deparar a ocasião de comer”.

A conclusão final do episódio, em que Brás Cubas cruelmente repisa a sua superioridade sobre a moça utilizando o verbo “patear”, última referência a suas “patas”, é digna de atenção: indo além de qualquer consideração sobre a relação entre o defeito e o nascimento socialmente espúrio de Eugênia, ele faz alusão a uma “tragédia humana”, que talvez fracassasse com “uma comparsa de menos”. De que tragédia humana ele estaria a falar aqui se, como todo o episódio de Eugênia indica, propriamente trágica é apenas a situação dela, mas não a da humanidade em geral?

A resposta a essa pergunta depende da lembrança de que se trata de um livro de memórias póstumas, de um enredo cujo narrador já conhece o fim. Vale, em todo caso, continuar acompanhando cronologicamente a sua narrativa, a fim de participar na gênese da perspectiva melancólica que, no final das contas, permitirá a Brás Cubas falar de uma tragédia humana na qual também as borboletas de sangue azul estariam incluídas.

2.7. Marcela e a sege

Descalçadas as botas curtas, enquanto ainda “saboreava esse rápido, inefável e incoercível momento de gozo, que sucede a uma dor pungente”, enfim – este é o título do capítulo que se segue imediatamente ao das botas – Brás Cubas narra sua entrada na

207 MP, XXXVI, p. 67.

cidade208, e, mais especificamente, na casa do pai de Virgília. Já o primeiro encontro com o Conselheiro Dutra, que “achou que a minha candidatura era legítima”, e com a filha, “que não desmentiu em nada o panegírico de meu pai” – aquele que lhe pretensamente lhe teria convencido a abandonar o luto pela morte da mãe – foi definitivo. Escreve Brás: “Eu, que levava idéias a respeito da pequena, fitei-a de certo modo; ela, que não sei se as tinha, não me fitou de modo diferente; e o nosso olhar primeiro foi pura e simplesmente conjugal. No fim de um mês estávamos íntimos.”209

Nesse momento de sua vida parecia, enfim, que o grande futuro a que Brás Cubas sempre almejara estava prestes a concretizar-se. O casamento com a filha de uma “influência política” garantia-lhe, de um só golpe, uma rica prole e uma cadeira no Parlamento. Tudo corria bem, no compasso do mais certo, quando, matando o tempo à espera de um jantar na casa de Virgília, Brás consulta o relógio e “cai-me o vidro na calçada”210 . Um intérprete mais afoito notaria na queda do relógio uma quebra do tempo, uma espécie de empacar pouco distinto de outros empacares já vivenciados por Brás. Este, porém, não tinha ainda pressa. Sem sobressalto, entrou “na primeira loja que tinha à mão; era um cubículo – pouco mais – empoeirado e escuro.”211

A própria descrição do cenário, um “cubículo empoeirado e escuro”, empresta à narrativa um clima de suspense que se diria cinematográfico. Brás, ao que tudo indica, está a poucos instantes de um encontro fatal, que o leitor não terá ainda como saber se promovido pelo acaso ou pela lógica implacável de um mecanismo narrativo ainda invisível.212 Escreve o defunto:

Ao fundo, por trás do balcão, estava sentada uma mulher, cujo rosto amarelo e bexiguento não se destacava logo, à primeira vista; mas logo que se destacava era um espetáculo curioso. Não podia ter sido feia; ao contrário, via-se que fora bonita, e não pouco bonita, mas a doença e uma velhice precoce destruíam-lhe a flor das graças. As bexigas tinham sido terríveis; os sinais, grandes e muitos, faziam saliências e encarnas, declives e aclives, e davam uma sensação de lixa grossa, enormemente grossa. Eram os olhos a melhor parte do vulto, e aliás tinham uma expressão singular e repugnante, que mudou, entretanto, logo que eu comecei a falar. Quanto ao cabelo, estava ruço e quase tão poento como os portais da loja. Num dos dedos da mão

208 Referência ao capítulo XXXV, intitulado “O caminho de damasco”, em que Brás explica prosaicamente por que abandonou Eugênia: “Ora, aconteceu que, oito dias depois, como eu estivesse no caminho de Damasco, ouvi uma voz misteriosa, que me sussurrou as palavras da Escritura (At. IX 7): ‘Levanta-te, e entra na cidade.’ Essa voz saía de mim mesmo, e tinha duas origens: a piedade, que me desarmava ante a candura da pequena, e o terror de vir a amar deveras, e desposá-la. Uma mulher coxa!” 209 MP, XXXVII, p. 68. 210 MP, XXXVIII, p. 68. 211 MP, XXXVIII, p. 68. 212 Ver o apêndice a esta seção.

esquerda fulgia-lhe um diamante. Crê-lo-eis, pósteros? essa mulher era Marcela.213

O diálogo que se segue ao reconhecimento de Marcela é cheio de silêncios. Brás mal consegue articular duas palavras. Sua consciência parece novamente boquiaberta. Marcela é que, após reprimir “um movimento como para esconder-se ou fugir”, assume as rédeas da conversação. “Falou-me longamente de si, da vida que levara, das lágrimas que eu lhe fizera verter, das saudades, dos desastres, enfim das bexigas, que lhe escalavraram o rosto, e do tempo, que ajudou a moléstia, adiantando-lhe a decadência.” Após o relato, Marcela perguntou-lhe se ele já se casara, e a resposta, seca, foi “ainda não”214. Nessa resposta, vale salientar, o “ainda” anula o “não”. Ainda.

Nesse momento, apesar de novamente deparar com a ação cancerígena do tempo, vendo-o unicamente como princípio de corrosão – ou “enxurro”, para retomar os termos de um capítulo anterior –, Brás quer apressá-lo. Nessa pressa, nessa ânsia por se “ver fora daquela casa” e da companhia de Marcela, advinha-se uma tentativa desesperada de fechar os olhos à experiência que ali se anunciava, de recuperar o passo. Para tanto, urgia esquecer o rosto escalavrado da outrora “linda Marcela”, condição indispensável para retomar uma experiência do tempo como princípio de geração, como depositário do grande futuro que lhe esperava ao lado de Virgília.

“Supunha entrar numa casa de relojoeiro”, diz Brás a Marcela, “queria comprar um vidro para este relógio; vou a outra parte; desculpe-me; tenho pressa.” Marcela, porém, não aceitou a desculpa e impediu a partida imediata de Brás. Em vez de permitir que ele fosse consertar o tempo, digo, o seu relógio, foi ela quem assumiu as vezes de relojoeiro – “chamou um moleque, deu-lhe o relógio e, apesar da minha oposição, mandou-o a uma loja na vizinhança”.215 Brás foi obrigado a ficar parado onde estava.

Enquanto Brás esperava, e concluía, a partir da oferta da espanhola de lhe vender “finas jóias por preços baratos”, que “a paixão do lucro era o verme roedor daquela existência”216, um outro acaso se insinua naquele encontro casual. O narrador abre um novo capítulo, aparentemente sem qualquer relação com o enredo do romance, para descrever a entrada na loja de um sujeito baixo com a sua filha de quatro anos. Este conta a Marcela que a menina “fala na senhora a todos os instantes, e (...) ontem veio pedir-me com voz muito humilde (...) que queria oferecê-los [um padre-nosso e uma

213 MP, XXXVIII, p. 68ff. 214 MP, XXXVIII, p. 69. 215 MP, XXXVIII, p. 70. 216 MP, XXXVIII, p. 70.

ave-maria] a Santa Marcela.”217 Quando Brás, depois da saída da dupla, pergunta à espanhola quem era ele, ela lhe responde:

– É um relojoeiro da vizinhança, um bom homem; a mulher também; e a filha é galante, não? Parecem gostar muito de mim... é boa gente.

Ao proferir estas palavras havia um tremor de alegria na voz de Marcela; e no rosto como que se lhe espraiou uma onda de ventura...218

Este capítulo, “o vizinho”, que tende a passar despercebido, revela no entanto a complexidade das Memórias póstumas. Brás Cubas, a caminho da casa de Virgília, o futuro, deixa o seu relógio cair e quebrar, e é obrigado a ficar parado junto a Marcela, o passado. Esta, apesar de negociar jóias – num cubículo e com o rosto escalavrado, é verdade, mas com um diamante “num dos dedos da mão esquerda”, índice talvez de que “diamonds are forever”... –, toma para si a tarefa de fazer o tempo (no relógio) de Brás Cubas voltar a andar, ou seja, assume as vezes de um relojoeiro. Enquanto Brás, que “supunha entrar numa casa de relojoeiro”, é obrigado a ficar parado ao pé dessa outra Vênus manca, entram na loja um homem e sua filha, que, ao saírem, deixam na voz de Marcela “um tremor de alegria” e em seu rosto “uma onda de ventura”. Quando Brás indaga quem é o homem, Marcela lhe diz que se trata de “um relojoeiro da vizinhança”.

A repetição insistente da metáfora do relojoeiro, que, ao consertar relógios, faz o tempo voltar a andar, recuperando-lhe o caráter futurante ou projetivo, leva o leitor a perceber que, apesar das bexigas e das saudades de um passado não tão remoto assim, em que fora a “linda Marcela, como lhe chamavam os rapazes do tempo”219 , esta conseguira superar a melancolia a que a sua decadência física sem dúvida convidava. Marcela, apesar “do tempo, que ajudou a moléstia, adiantando-lhe a decadência”; e apesar da “alma decrépita” que Brás lhe atribuía, encontrou, na vizinhança, um relojoeiro; na vida, uma fonte de alegria e ventura que a motivava a seguir adiante.

Brás, no entanto, que trazia ainda “um tipo elegante e uma encadernação luxuosa”220, que tinha muito menos motivos do que a espanhola para choramingar “o curso incessante das águas”221, em sua busca por um relojoeiro na vizinhança, encontrou apenas a ruína de seu primeiro amor. Se Marcela encontrou o seu relojoeiro, a pergunta que a narrativa deixa ao leitor é se Brás teria encontrado o seu.

217 MP, XXXIX, p. 70. 218 MP, XXXIX, p. 71. 219 MP, XIV, p. 14. 220 MP, XXXVIII, p. 68. 221 MP, CXXXVII, p. 176.

Nisto entrou o moleque trazendo o relógio com o vidro novo. Era tempo; já me custava estar ali; dei uma moedinha de prata ao moleque; disse a Marcela que voltaria noutra ocasião, e saí a passo largo. Para dizer tudo, devo confessar que o coração me batia um pouco; mas era uma espécie de dobre de finados. O espírito ia travado de impressões opostas. Notem que aquele dia amanhecera alegre para mim. Meu pai, ao almoço, repetiu-me, por antecipação, o primeiro discurso que eu tinha de proferir na Câmara dos Deputados; rimo-nos muito, e o sol também, que estava brilhante, como nos mais belos dias do mundo; do mesmo modo que Virgília devia rir, quando eu lhe contasse as nossas fantasias do almoço. Vai senão quando, cai-me o vidro do relógio; entro na primeira loja que me fica à mão; e eis me surge o passado, ei-lo que me lacera e beija; ei-lo que me interroga, com um rosto cortado de saudades e bexigas...

Lá o deixei; meti-me às pressas na sege, que me esperava no Largo de S. Francisco de Paula, e ordenei ao boleeiro que rodasse pelas ruas fora. O boleeiro atiçou as bestas, a sege entrou a sacolejar-me, as molas gemiam, as rodas sulcavam rapidamente a lama que deixara a chuva recente, e tudo isso me parecia estar parado. Não há, às vezes, um certo vento morno, não forte nem áspero, mas abafadiço, que nos não leva o chapéu da cabeça, nem redemoinha nas saias das mulheres, e todavia é ou parece ser pior do que se fizesse uma e outra coisa, porque abate, afrouxa, e como que dissolve os espíritos? Pois eu tinha esse vento comigo; e, certo de que ele me soprava por achar-me naquela espécie de garganta entre o passado e o presente, almejava por sair à planície do futuro. O pior é que a sege não andava.

– João – bradei eu ao boleeiro. – Esta sege anda ou não anda?

– Uê! nhonhô! Já estamos parados na porta de sinhô conselheiro.222

Apesar de Brás finalmente ter conseguido sair, e “a passo largo”, da companhia de Marcela e de seu cubículo asfixiante, seu coração lhe batia estranhamente, em “uma espécie de dobre de finados”. Ele ainda não sabia disso, mas esse compasso fúnebre ditaria, daí em diante, o passo curto de sua existência. Ou melhor, de sua obra, definida por ele mesmo no prólogo ao leitor como uma “obra de finado”.

Nesse momento, tudo o que ele sabia é que seu “espírito ia travado de impressões opostas”. De um lado, a recordação de um futuro com que, ainda naquela manhã, ele contava. Futuro cheio de discursos proferidos na Câmara dos Deputados e dos risos de Virgília. De outro, um relógio quebrado e uma ex-amante corroída pelas bexigas. Bexigas que, como o cancro de sua mãe e a coxidão de Eugênia, laceravam-lhe a consciência com uma interrogação. Entre um lado e outro, Brás Cubas, em forma de pêndulo, hesitava.

Na tentativa de, decididamente, deixar para trás o passado, com seu “rosto cortado de saudades e bexigas”, e chegar logo à “planície do futuro”, lisa e sem escaras como o rosto de Virgília, Brás meteu-se “às pressas na sege”, que o esperava no Largo de São Francisco. A frase seguinte merece ser lida com redobrada atenção: “O boleeiro

222 MP, XL, p. 71.

atiçou as bestas, a sege entrou a sacolejar-me, as molas gemiam, as rodas sulcavam rapidamente a lama que deixara a chuva recente, e tudo isso me parecia estar parado.”

A descrição do atiçamento das bestas, do sacolejo da carroceria, do gemido das molas e finalmente do movimento das rodas da sege contrasta vivamente com a percepção de Brás Cubas que, mortificado em seu lugar, afirma que “tudo isso me parecia estar parado”. Esse contraste aponta para uma cisão irremediável entre a subjetividade de Brás Cubas, o que se poderia chamar seu tempo interior, e a objetividade do mundo, cujo tempo, como dizia Nelson Rodrigues, é o dos relógios e das folhinhas. Por mais que, como se lê no início do capítulo da sege, o moleque de Marcela tenha entrado “trazendo o relógio com o vidro novo”, o relógio existencial de Brás perdera os ponteiros223; por mais que ele, de algum modo, fosse capaz de reconhecer o movimento da sege e das coisas à sua volta, esse reconhecimento lhe deixava indiferente, sendo incapaz de mobilizá-lo. Se “as rodas da sege sulcavam rapidamente a lama”, Brás Cubas, como indica a própria brevidade da última frase do período, subitamente viu-se atolado em uma outra lama mais espessa: a sua interioridade. “E tudo isso me parecia estar parado.”

A afirmação de que o capítulo da sege pode ser lido como o capítulo em que é descrita a súbita constituição da interioridade de Brás Cubas, como o momento daquela cisão definitiva entre eu e mundo que tornará possível a sua conversão em um morto que narra, apóia-se na consideração atenta do clima no âmbito dessa interioridade. Como no “cubículo empoeirado e escuro” de Marcela, do qual Brás pretensamente teria saído “a passo largo”, o clima existencial – o páthos – de Brás Cubas é agora ditado por um “vento morno”.

Vento morno: não quente nem frio, “não forte nem áspero, mas abafadiço, que nos não leva o chapéu da cabeça nem redemoinha na saia das mulheres, e todavia é ou parece ser pior do que se fizesse uma ou outra coisa, porque abate, afrouxa e como que dissolve os espíritos”. Esse vento morno, escreve Brás, “eu tinha esse vento comigo”, indicando ao leitor como um fenômeno a princípio externo, o sopro do vento, acabou por ser introjetado, e, em última instância, por constituir a sua identidade. Vale lembrar,

223 É notável a semelhança entre o capítulo da sege e o sonho de Isak Borg (Viktor Sjöström) que abre o filme Morangos silvestres (Smultronstället), de Ingmar Bergman (Suécia, 1957). No sonho do protagonista, memorialista (póstumo) da estirpe de Brás Cubas, distinguem-se a princípio a imagem de um relógio sem ponteiros e de uma carroça transportando um caixão. Em sua progressão, vê-se então que a roda da carroça fica presa ao poste que serve de suporte ao relógio, no qual bate repetidamente até se desprender, fazendo a carroça emborcar e o caixão cair. Finalmente, vemos a imagem do protagonista abrindo o caixão e deparando consigo mesmo lá dentro.

naturalmente, que sopro é a tradução literal da palavra grega “psiché”, comumente vertida por “alma”.

O vento morno que, de chofre, constituiu a alma e passou a comandar a percepção da realidade de Brás Cubas certamente “me soprava”, conjectura ele, “por achar-me naquela espécie de garganta entre o passado e o presente”. Seguindo o raciocínio do próprio autor, torna-se patente que é uma determinada relação com o tempo a responsável pela constituição de sua identidade peculiar.

O fato de que uma experiência particular do tempo possa ser definidora da identidade de alguém é a prova de que o tempo de que se está aqui a falar não pode ser o tempo abstrato, cronológico, dos relógios e das folhinhas. O tempo de Brás Cubas, que configura a sua perspectiva, é marcado pelo desejo ardente de “sair à planície do futuro”, mas pela impossibilidade de escapar daquela “espécie de garganta entre o passado e o presente”.

Ele ficou preso a essa garganta quando, pela primeira vez, teve a “garganta presa”. Àquela altura, por ocasião da morte de sua mãe, no entanto, ainda lhe parecia possível escapar a ela, e chegar “à planície do futuro”. No caminho até a casa de Virgília, porém, dois obstáculos mantiveram-no parado onde estava: Eugênia e Marcela. Como se viu, ele conseguiu deixar esses obstáculos para trás. Algo, porém, não pôde não trazer consigo: o vento morno, ou, se se preferir, a memória daqueles encontros, decisiva para a constituição de sua identidade de “memorialista”. Essa memória, indissociável de sua dilacerante consciência do tempo como princípio de corrupção, é justamente o que “abate, afrouxa e como que dissolve os espíritos”.

Para fugir a ela, ele entrou às pressas na sege, a caminho da casa de Virgília. “O pior é que a sege não andava”, anota ele, contando em seguida como repreendeu o boleeiro pela demora. A resposta do boleeiro é no entanto decisiva: ele já havia chegado onde pretendia, mas não fora capaz de se dar conta disso. A visão do passado enegrecia-lhe a vista e a possibilidade de vislumbrar o futuro. Estaria ele definitivamente preso à sua interioridade, ao seu subsolo?

*

O título do capítulo que narra o reencontro com Marcela, “A quarta edição”224 , remete a um filosofema que Brás Cubas havia cunhado na Tijuca, enquanto ainda curtia

224 MP, XXXVIII, p. 68.

o luto pela morte de sua mãe. Coerentemente com o clima fúnebre da ocasião, e após mais uma leitura dos Pensamentos de Pascal, Brás resolveu polemizar com o mestre, anotando o seguinte: “Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.”225

Essa anotação, que, isolada, soa ao mesmo tempo provocativa e despropositada, como aliás boa parte dos filosofemas do autor, aparece no contexto de uma parábase, em que Brás Cubas, imaginando Virgília lendo as suas memórias póstumas, antecipa a indignação dela frente à sua pretensão de evocar fidedignamente acontecimentos ocorridos cinqüenta anos antes, e responde-lhe jocosamente: “Ah! indiscreta! ah! ignorantona! Mas é isso mesmo que nos faz senhores da terra, é esse poder de restaurar

o passado, para tocar a instabilidade de nossas impressões e a vaidade dos nossos afetos.”226

A articulação entre a “teoria das edições humanas”227 e o próprio estatuto de Brás Cubas como memorialista póstumo soa como uma confissão. Ao afirmar que apenas depois da última edição, “que o editor dá de graça aos vermes”, um homem é capaz de “tocar a instabilidade de nossas impressões”, corrigindo-a e convertendo-a em algo de estável – compreensível, previsível, controlável –, ele indica que, antes da morte, fora apenas um joguete do destino, mas que agora, “desafrontado da brevidade do século”, quem fazia o seu destino era ele, o narrador, o “defunto autor”. De acordo com essa indicação, o Brás Cubas-personagem da narrativa pode ser descolado do Brás Cubas-narrador, que titereia todos os personagens de sua obra, inclusive a si próprio.

A reprimenda de Brás à “ignorantona” Virgília, por lhe pedir provas da objetividade de seu relato, aponta ainda para o caráter assumidamente construtivo da memória (de Brás Cubas), que confessa ser capaz de “recordar” a sua história como uma história coerente apenas na medida em que é capaz de esquecer o que desestabiliza a coesão de sua (grande) narrativa, coesão à qual, apesar de todos os capítulos aparentemente despropositados, como o do vizinho relojoeiro, Brás Cubas almeja.

Assim, quando, na introdução a seu reencontro com Marcela, Brás escreve que, “naquele tempo, estava eu na quarta edição, revista e emendada, mas ainda inçada de

225 MP, XXVII, p. 59. 226 MP, XXVII, p. 59. 227 MP, XXXVIII, p. 68.

descuidos e barbarismos; defeito que, aliás, achava alguma compensação no tipo, que era elegante, e na encadernação, que era luxuosa”228, isso significa que, àquela altura de sua vida, Brás não alcançara ainda a posição privilegiada em que um homem se torna capaz de ver através da instabilidade de suas impressões, descortinando a implacável necessidade de que, à primeira ou quarta vista, elas estariam privadas. Essa posição privilegiada, eis um dos paradoxos centrais do livro e da “tragédia humana”, só é alcançável com a morte. Por isso Brás Cubas escreve no primeiro capítulo das Memórias póstumas que não é propriamente “um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço”229 .

Campa, note-se de passagem, é a tradução da palavra grega sèma, também origem da palavra “sentido”. Só depois da morte, de dentro do túmulo, é que se pode avaliar o sentido de uma vida. Nesse ponto, Brás Cubas retoma a conclusão de Édipo rei, que se encerra com a seguinte fala do corifeu: “Guardemo-nos de chamar um homem feliz, antes que ele tenha transposto o termo de sua vida sem ter conhecido a tristeza.”230

2.8. Virgília e a alucinação

“Era verdade”.231 Eis as palavras com que Brás Cubas abre o capítulo decisivo em que ele narrará por que acabou não se casando com Virgília, que até então lhe aparecera como a imagem mesma do grande futuro que sempre sonhara para si. Era verdade que ele já tinha chegado à casa dela; era verdade que, a despeito de sua própria percepção de que tudo estava parado, a sege se movera; era verdade, enfim, que ele trazia consigo o vento morno do capítulo anterior: a morte na alma.

Sobre este encontro com Virgília, que o recebeu com a “fronte nublada”, repreendendo-o pelo atraso, escreve o narrador:

Defendi-me do melhor modo; falei do cavalo que empacara, e de um amigo, que me detivera. De repente morre-me a voz nos lábios, fico tolhido de assombro. Virgília... seria Virgília aquela moça? Fitei-a muito, e a sensação foi tão penosa, que recuei um passo e desviei a vista. Tornei a olhá-la. As bexigas tinham-lhe comido o rosto; a pele, ainda na véspera tão fina, rosada e pura, aparecia-me agora amarela, estigmada pelo mesmo flagelo que devastara

o rosto da espanhola. Os olhos, que eram travessos, fizeram-se murchos; tinha

o lábio triste e a atitude cansada. Olhei-a bem; peguei-lhe na mão, e chamei-a

228 MP, XXXVIII, p. 68. 229 MP, I, p. 13. 230 SÓFOCLES. Édipo rei. Porto Alegre: L&PM, 2002, p. 106. 231 MP, XLI, p. 72.

brandamente a mim. Não me enganava; eram as bexigas. Creio que fiz um gesto de repulsa.232

Nesse breve parágrafo, chega ao ápice o movimento existencial que se desencadeara na vida de Brás Cubas a partir da morte de sua mãe e que acabaria por configurar e legitimar a sua perspectiva de defunto autor.

Esse movimento pode ser descrito como um movimento de interiorização progressiva da consciência dilacerante do tempo como princípio de corrupção. Tal interiorização funda-se na recordação sistemática de todos os seus encontros com a morte e na repetição obsessiva da estrutura, sempre idêntica, que articula esses encontros. Recordação e repetição de experiências “esclarecedoras” da finitude humana, como a essa altura já deve ter ficado claro ao leitor, são os princípios que orientam a não por acaso monótona construção das Memórias póstumas de Brás Cubas. Monótona porque o narrador só tem o interesse de recordar aquilo que, em sua biografia, repete e reforça a dor que sentiu pela primeira vez ao ver sua mãe morrer. Essa repetição, como veremos adiante, será a base de sua filosofia do trágico como apresentada no capítulo do delírio.

Não é à toa, portanto, que o encontro com Virgília começa com uma desculpa. Brás não aceita assumir a responsabilidade por seu atraso, por ter perdido o momento oportuno de chegar à casa, ao baú e quem sabe ao coração de Virgília. Atribui essa responsabilidade ao “cavalo que empacara” e a “um amigo, que me detivera”. A idéia de um empacar que veda o seu caminho até “a planície do futuro”, mantendo-o preso “naquela espécie de garganta entre o passado e o presente” já é conhecida do leitor: apareceu diretamente no episódio do almocreve, em que “empacou o jumento” e Brás Cubas quase encontrou a própria morte; e indiretamente nos episódios da morte de sua mãe, da descoberta da coxidão de Eugênia e da visão da face lacerada de Marcela, o “amigo” que o detivera, fazendo-o empacar como um cavalo, a despeito do fato de sua sege ter facilmente sulcado a lama do dia anterior.

O movimento de interiorização progressiva da consciência da finitude a que se aludiu acima fica claro nesses quatro encontros. No primeiro, graças ao almocreve, a morte sequer ultrapassou a soleira de sua consciência, tendo quando muito deixado a porta entreaberta. A prova disso é o fato de Brás Cubas ter se recuperado tão prontamente a ponto de embaçar aquele que acabara de salvá-lo. No segundo, a morte de sua mãe deixou sua consciência boquiaberta, mas, se o fez descobrir o absurdo de um

232 MP, XLI, p. 72.

dia a vida acabar, não o fez ainda capaz de perceber o fato de que a vida acaba a cada dia. No terceiro encontro, a morte deixa de ser pensada unicamente como o fim biológico da vida, como aquilo que a ela se opõe, e ganha a concretude de uma mácula, de uma imperfeição sempre “ao pé” daquilo que deveria ser perfeito. Eugênia é bonita e coxa, viva e morta a um só tempo. No quarto encontro, o poder corrosivo do tempo manifesta-se progressivamente em Marcela, condenada a sobrevivê-lo, a viver a própria morte. Finalmente, no episódio da sege, Brás Cubas já não necessita de nenhum “amigo” para lhe deter, de nenhum “cavalo” para lhe fazer empacar. Apesar de no princípio do capítulo ter reconhecido que o mundo se movia, e que ele é que achava que tudo parecia estar parado, no fim do capítulo sua consciência perde o controle sobre a distinção entre o movimento exterior e a imobilidade interior, e o vento morno que pretensamente sopraria apenas (em) sua alma alastra-se por toda parte. No mundo de Brás Cubas, passa a soprar apenas um vento morto.

Nesse momento da narrativa, no entanto, Brás Cubas, ao menos o Brás Cubas-personagem, ainda não tem consciência disso. Assim, quando se defende do “mau humor” de Virgília, aludindo a impedimentos exteriores como a causa de seu atraso, não está mentindo. Ao menos não conscientemente. Com os olhos voltados para o futuro, insiste ainda em esquecer, em deixar para trás os entraves às grandes ações ainda por realizar.

“Vai então, empacou o jumento”. Ou, nas palavras do capítulo em questão: “De repente, morre-me a voz nos lábios, fico tolhido de assombro.” A estrutura repete-se, monotonamente. O movimento existencial de Brás Cubas é mais uma vez abruptamente interrompido. Dessa vez, por uma alucinação, que, como uma fusão cinematográfica, sobrepõe Marcela a Virgília, o passado ao futuro, a morte à vida, a corrupção à geração,

o devir ao ser. “A sensação foi tão penosa”, escreve o narrador, “que recuei um passo e desviei a vista”. Depois de algum tempo de dolorosa contemplação da trágica imbricação dos opostos, em meio à qual Brás Cubas não conseguiu esconder um “gesto de repulsa”,

Virgília afastou-se, e foi sentar-se no sofá. Eu fiquei algum tempo a olhar para os meus próprios pés. Devia sair ou ficar? Rejeitei o primeiro alvitre, que era simplesmente absurdo, e encaminhei-me para Virgília, que lá estava sentada e calada. Céus! Era outra vez a fresca, a juvenil, a florida Virgília. Em vão procurei no rosto dela algum vestígio da doença; nenhum havia; era a pele fina e branca do costume.233

233 MP, XLI, p. 72.

E no entanto, era tarde demais. Se, até então, em todos os seus encontros com a morte, Brás Cubas sempre conseguira achar uma saída ou ao menos acreditar em uma, nesse encontro fatal anuncia-se a impossibilidade da fuga. Ao projetar na pele imaculada da noiva a varíola que corroera a beleza de Marcela, torna-se patente que ele já não necessita de mais nenhuma evidência objetiva do parentesco essencial entre ser e devir. Ao contrário. Doravante é a sua consciência que se encarregará de antecipá-lo alucinatoriamente. Essa compulsão à antecipação, como uma sombra, acompanhará todos os seus passos, e fará com que ele perca o compasso da existência, chegando sempre tarde demais onde quer que vá.

Nesse momento, em que o caráter alucinatório da consciência de Brás Cubas passa a dispensar a facticidade de novas experiências da finitude, fica claro que ele está condenado a ver sempre na felicidade presente “uma gota da baba de Caim”234 . Essa visão da Natureza como “mãe e inimiga”235, que só dá a vida para poder dar a morte, acabará por vedar todos os possíveis caminhos de Brás Cubas até a ação, e assim, condenado à inação, ele finalmente assumirá a tez cadavérica daquele que não foi, que, por ter vivido como um morto, acabou por converter-se em um defunto autor.

2.9. Que (não) escapou a Aristóteles

O capítulo da alucinação só ganha plena inteligibilidade a partir da leitura do capítulo irreverente sobre o “que escapou a Aristóteles”236, que Brás Cubas interpola entre o capítulo da alucinação e o capítulo em que anuncia o aparecimento de “Lobo Neves, um homem que não era mais esbelto do que eu, nem mais elegante, nem mais lido, nem mais simpático, e todavia foi quem me arrebatou Virgília e a candidatura”.237 Como o próprio narrador deixa claro, a explicação acima para a perda de Virgília, que poderia ser qualificada como uma “explicação física”, é apenas negativa, e portanto insuficiente. Com vistas a sanar essa insuficiência, Brás Cubas proporá então uma explicação “metafísica”, que, apesar do tom jocoso das referências do narrador ao pensamento aristotélico, será de fato capaz de iluminar a natureza do “impulso” subjacente à alucinação que pôs tudo a perder. Escreve o aspirante a filósofo:

234 MP, VI, p. 20: “Ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gota de baba de Caim.” 235 MP, VII, p. 24. 236 MP, XLII, p. 73. 237 MP, XLIII, p. 73.

Outra coisa que também me parece metafísica é isto: – Dá-se movimento a uma bola, por exemplo; rola esta, encontra outra bola, transmite-lhe o impulso, e eis a segunda bola a rolar como a primeira rolou. Suponhamos que a primeira bola se chama... Marcela – é uma simples suposição; a segunda, Brás Cubas; a terceira, Virgília. Temos que Marcela, recebendo um piparote do passado, rolou até tocar em Brás Cubas – o qual, cedendo à força impulsiva, entrou a rolar também até esbarrar em Virgília, que não tinha nada com a primeira bola; e eis aí como, pela simples transmissão de uma força, se tocam os extremos sociais, e se estabelece uma coisa que poderemos chamar – solidariedade do aborrecimento humano. Como é que este capítulo escapou a Aristóteles?

A idéia de uma “solidariedade do aborrecimento humano” faz referência à “volúpia do aborrecimento” que Brás Cubas teria experimentado na Tijuca, enquanto ainda elaborava o luto pela morte de sua mãe. O caráter paradoxal dessa sensação, “uma das sensações mais sutis desse mundo e daquele tempo”, já foi realçado na seção 2.5, em que se discutiu como o aborrecimento, ou o tédio, pode gerar o grande prazer (dos sentidos) que se costuma associar à volúpia. O prazer de permanecer como que estrangeiro ao mundo e indiferente a todas as ocupações com que ele cotidianamente nos requisita estaria fundamentalmente associado à desnecessidade de optar. Se o aspecto doloroso do tédio é deixar o sujeito sem ter nada a fazer, essa dor é convertida em volúpia no momento em que se constata, como aconteceu pela primeira vez com Brás Cubas por ocasião da morte de sua mãe, que todo fazer redunda em nada. Diante dessa constatação, não há mais excelsa fonte de prazer do que nada fazer. Só na inatividade, assim pensa Brás, é possível encontrar um refúgio contra o caráter necessariamente parcial e finito da satisfação associada a qualquer atividade. Se nenhuma atividade garante uma satisfação plena, e ainda por cima implica sempre a renúncia a uma série de outras atividades, aquelas que se escolheu não fazer, apenas renunciando de antemão a qualquer escolha é que se pode evitar o desprazer inerente ao ato mesmo de escolher – ou viver.

Essa é a “sabedoria” que ganha corpo em Brás Cubas como “volúpia do aborrecimento” e que, no capítulo “Na Tijuca”, ele próprio deriva do “desabotoar da hipocondria”. A hipocondria, comumente pensada como uma “mania de doença”, tem como principal sintoma uma preocupação excessiva com a morte a que qualquer doença, por mais ínfima que seja a sua manifestação e por maiores que sejam os cuidados do hipocondríaco, pode conduzir. Essa pré-ocupação excessiva leva o hipocondríaco a cercar-se dos mais intrincados esquemas de segurança para evitar o assalto dos germes potencialmente portadores da morte. Nesse sentido, a hipocondria aparece concretamente como uma espécie de compulsão à antecipação.

Essa compulsão à antecipação, por sua vez, não nasce de uma reflexão desinteressada sobre a condição humana, ou, conforme o caso, sobre a condição da própria saúde. Ela é antes o reflexo de uma patologia, da lógica de um mecanismo (lógos) impulsionado por um afeto (páthos), que, ao se instalar na vida de alguém, passa a determinar o seu modo de ser, por menos que esse alguém esteja plenamente consciente disso. No caso de Brás Cubas, o afeto que, a partir da morte de sua mãe, progressivamente se converteu na principal “força impulsiva” de sua existência, é a melancolia.

Ainda que Brás Cubas, em diversos momentos da obra, associe imediatamente a melancolia à hipocondria238 , é possível propor uma distinção conceitual em que a melancolia aparece como o princípio – nos dois sentidos da palavra, o de começo e o de fundamento – daquela compulsão à antecipação que acima definimos como sendo a expressão mais concreta da hipocondria. Essa compulsão à antecipação, por sua vez, estaria na base do tédio, e da volúpia do aborrecimento a ele correlata, na medida em que é a antecipação do fim de todas as coisas que faz com que elas se tornem incapazes de engajar o homem em alguma atividade, deixando-o preso a um presente infinito onde nada consegue efetivamente interessá-lo.

Assim, se é que essa associação entre os afetos que perpassam a narrativa de Brás Cubas e as dimensões do tempo procede, pode-se especular que o tédio diz respeito a uma experiência do presente como infinito; a hipocondria diz respeito a uma experiência do futuro como ameaça; e a melancolia diz respeito a uma experiência do passado como dor. Quando se propõe um primado da melancolia sobre a hipocondria e

o tédio, quer-se indicar que, no caso de Brás Cubas, a “força impulsiva” determinante vem da ferida aberta no passado, cuja dor traga toda a energia disponível para novos investimentos no futuro, o qual necessariamente aparece como fonte potencial de mais dor, e tem como reflexo, no presente, o não engajamento existencial que faz o tempo alongar-se indefinidamente, deixando Brás Cubas preso “naquela espécie de garganta entre o passado e o presente”, entre a dor e a construção de uma vida voltada exclusivamente para a tentativa de evitá-la.

238 Cf. MP, II, p. 17.

Relendo o capítulo “que escapou a Aristóteles” sob a ótica do Brás Cubas-personagem, torna-se claro que, apesar de casual, o reencontro com Marcela só ganhou

o peso definitivo que viria a ter, porque, por trás do rosto lacerado da espanhola, Brás Cubas enxergou um mecanismo inescapável que haveria de lacerar todo e qualquer rosto que lhe aparecesse, por mais fresco e puro que fosse. A universalização da experiência contida no caso particular de Marcela, porém, não seria possível sem a intervenção de um “impulso” que, vindo do passado – do encontro com a morte de sua mãe e com a coxidão de Eugênia –, houvesse transmitido a Brás Cubas aquela compulsão à antecipação que o levaria a ver no futuro o peso do passado, ou melhor, que o incapacitaria de ver propriamente o futuro como algo distinto do passado. Dessa incapacidade, e da tentativa de evitar a dor a ela correlata, brota a alucinação, que fechando o seu caminho ao futuro, consolida a estratégia brascubiana de defender-se da repetição da dor passada a qualquer preço. Ao preço inclusive do próprio casamento, da própria geração, da própria vida.

Relendo o mesmo capítulo sob a ótica do Brás Cubas narrador, entretanto, torna-se evidente que já o aparentemente casual reencontro com Marcela é fruto do impulso melancólico de justificar a qualquer preço a verdade objetiva de sua melancolia, que o narrador insiste em vender como o impulso ou a tonalidade afetiva fundamental daqueles que efetivamente conhecem a verdade profunda sobre a existência: o seu caráter trágico. Mas esse é o tema do próximo capítulo. Por ora, contentemo-nos em acompanhar, simpaticamente, o que se passa com o Brás Cubas personagem tão logo a melancolia se instala definitivamente em sua vida.

2.10. Depois da melancolia: da volúpia do aborrecimento ao desdém dos finados

A descrição fenomenológica do romance feita até aqui abordou apenas um terço das Memórias póstumas, justamente a parte do livro em que se configura o destino melancólico de Brás Cubas e ele vem a ser um defunto autor. A partir do momento em que esse destino “se abate” sobre ele, o afã por escapar à melancolia que marca todos os encontros de Brás Cubas entre as mortes de sua mãe e de seu pai – esse período entre duas mortes é o decisivo para a compreensão da “obra em si mesma”239 – dá lugar ao afã de zombar de todos aqueles que, por um ou outro motivo, ainda julgam possível escapar a esse destino. Se, por um lado, Brás Cubas pensa a melancolia como

239 MP, “Ao leitor”, p. 11.

constitutiva da própria condição humana, por outro vê na fidelidade à melancolia a marca de sua própria superioridade. Há, portanto, no capítulo “que escapou a Aristóteles”, uma fusão do Brás Cubas-personagem com o Brás Cubas-narrador, fusão já anunciada em diversos momentos anteriores do livro, mas só inteiramente consumada no capítulo em que a descrição física da transmissão do impulso de uma bola (o personagem) à outra (o narrador) é pensada como uma “coisa que também me parece metafísica”, a saber: a constituição do fundamento último da narrativa.

A morte do pai é, coerentemente com a função por ele desempenhada ao longo do romance – instigar em Brás Cubas a “sede de nomeada” –, descrita no capítulo que se segue imediatamente àquele em que Brás Cubas relata brevemente como perdeu Virgília e a candidatura. “Meu pai ficou atônito com o desenlace, e quer-me parecer que não morreu de outra coisa. Eram tantos os castelos que engenhara, tantos e tantíssimos os sonhos, que não podia vê-los assim esboroados, sem padecer um forte abalo no organismo”.240 Se, quando da morte de sua mãe, como mostramos na seção 2.5, seu pai fora fundamental para impulsionar Brás Cubas para além da melancolia que, já então, começava a desabotoar, morto o pai, “o mágico, a agitar diante de mim um chocalho (...) para eu andar mais depressa”241 , já não há qualquer outro impulso que possa concorrer com a pulsão melancólica. A morte do pai, ao contrário, tende a reforçá-la, na medida em que repete a experiência do limite da racionalização e do controle humanos que Brás Cubas fez pela primeira vez ao ver morrer a mãe. Dessa feita, dada a trivialidade que a morte começa a assumir a seus olhos, o relato é bem menos pungente do que o relato da morte da mãe, mas não menos prenhe de conseqüências. Escreve Brás: “Morreu sem lhe poder valer a ciência dos médicos, nem o nosso amor, nem os cuidados, que foram muitos, nem coisa nenhuma; tinha de morrer, morreu.”242

Segue-se ainda, como o coroamento da sucessão de perdas entre as mortes da mãe e do pai, a perda de Sabina, a irmã com quem acabou brigando ao longo da partilha da herança. “Fizeram-se finalmente as partilhas, mas nós estávamos brigados. (...) Tal qual a beleza de Marcela, que se esvaiu com as bexigas.”243 Se, à primeira vista, parece esdrúxula a comparação entre uma briga de irmãos e a varíola de uma ex-namorada, essa estranheza logo se desfaz quando se atenta para o fato de que tanto a briga quanto a doença remetem a um mesmo fenômeno: ao fato de que nada escapa ao “enxurro da

240 MP, XLIV, p. 74. 241 MP, XXVIII, p. 60. 242 MP, XLIV, p. 75. 243 MP, XLVI, p. 77.

vida”244 . Esse fato, tal é o credo do narrador, justifica a verdade objetiva de sua melancolia, de sua “afeição interior”. Ao mesmo tempo, no entanto, a própria inscrição de fenômenos tão díspares quanto os supracitados em uma mesma série depende já dessa mesma “afeição interior” que esses fenômenos viriam a justificar. Tampouco aqui é possível escapar à circularidade da compreensão. Ou, nas palavras de Brás Cubas: “Marcela, Sabina, Virgília... aí estou eu a fundir todos os contrastes, como se esses nomes e pessoas não fossem mais do que modos de ser da minha afeição interior.”245 O jogo de palavras é aqui tentador: a afeição interior (ou páthos) determinará a feição de Brás Cubas como narrador, a qual, por sua vez, alimentará essa afeição interior com uma narração feita sob medida para confirmá-la. No afã dessa confirmação, todos os personagens da narrativa, “esses nomes e pessoas” em princípio contrastantes, autônomos e singulares, serão fundidos e convertidos em mero instrumento de uma prova. Essa prova (da verdade objetiva da melancolia), por sua vez, dependerá do corrosivo exercício da galhofa, que ora se pode identificar à pura e simples zombaria, ora à ironia. Mas não antecipemos os fatos.

Ao episódio da partilha e da briga com Sabina, segue-se o segundo maior salto cronológico do livro, que só perde para o salto que vai da descrição da morte à descrição do nascimento do narrador. Pode-se mesmo dizer que este segundo salto prepara a segunda vida de Brás Cubas. Uma vida que não começa com o seu nascimento biológico, mas sim com a origem do defunto autor, que se anuncia com a morte de sua mãe e se consolida definitivamente no episódio da alucinação em casa de Virgília, quando ele passa a antecipar alucinatoriamente o fim de todas as coisas.

Tomado dessa compulsão à antecipação, que priva de todas as coisas o seu valor e o seu sentido, Brás Cubas passou os dez anos seguintes “recluso, indo de longe em longe a algum baile, teatro ou palestra, mas a mor parte do tempo passei-a comigo mesmo. Vivia; deixava-me ir ao curso e recurso dos sucessos e dos dias, ora buliçoso, ora apático, entre a ambição e o desânimo.”246 Cumpre notar como, nesses anos de reclusão, Brás Cubas entregou-se radicalmente àquela desnecessidade de optar que, nas seções 2.5 e 2.9, associamos à volúpia do aborrecimento. A volúpia, nesse momento de sua vida, está ligada não apenas às prostitutas que “embalaram aí a sua elegante

244 MP, XXIII, p. 52. 245 MP, XLVII, p. 77. 246 MP, XLVII, p. 77.

abjeção”247, mas sobretudo à afirmação de sua “liberdade espiritual”248, à possibilidade de não se comprometer com o que quer que seja, trate-se de uma esposa ou um partido político; à possibilidade de viver como um estrangeiro em sua própria terra, alheio à pretensa gravidade de todas as ocupações que mobilizavam os seus contemporâneos.

O problema é que, como o próprio Brás Cubas anotou no capítulo XXV, aquele em que cunhou a expressão “volúpia do aborrecimento”249, essa volúpia dificilmente é duradoura. Naquele momento, ele facilmente abriu mão dela com uma auto-exortação: “Reagia a mocidade, era preciso viver.”250 E teria vivido, e teria trocado essa volúpia por outras menos aborrecidas, não fossem os encontros por nós comentados ao longo deste capítulo. Devido a estes, acabou retornando a ela, que, se não chega a ser um emplasto anti-hipocondríaco, é ao menos um bálsamo para a melancolia. Um bálsamo tão transitório quanto tudo o mais – à exceção do mal que pretensamente deveria aliviar. A pergunta é: o que Brás Cubas poderia fazer, quando a mocidade já não mais reagia? Quando ficou claro que ele havia perdido o momento oportuno para consumar os sonhos paternos – essa perda fica clara na narrativa como um salto de dez anos em um parágrafo –, o que lhe restaria, uma vez esgotada a volúpia do aborrecimento?

Enquanto esta durou, Brás Cubas, em meio a seu exílio voluntário, “escrevia política e fazia literatura”251, e, embora tenha chegado até mesmo “a alcançar certa reputação de polemista e de poeta”252 ,

quando me lembrava do Lobo Neves, que já era deputado, e de Virgília, futura marquesa, perguntava a mim mesmo por que não seria melhor deputado e melhor marquês do que o Lobo Neves – eu, que valia muito mais do que ele –, e dizia isto a olhar para a ponta do nariz...253

Ao leitor que acompanhou a nossa descrição da melancolia como o afeto que serve de princípio e fundamento à narrativa de Brás Cubas, soa um bocado estranha a sua lembrança um tanto quanto ressentida “do Lobo Neves, que já era deputado”. Afinal, como mostramos, não foi propriamente Lobo Neves que conquistou Virgília, mas sim Brás Cubas que a perdeu. Foi Brás Cubas que não suportou a idéia de assumir

247 MP, XLVII, p. 77. 248 MP, XCIX, p. 128. 249 MP, XXV, p. 55: “Volúpia do aborrecimento: decora esta expressão, leitor; guarda-a, examina-a, e, se não chegares a entendê-la, podes concluir que ignoras uma das sensações mais sutis desse mundo e daquele tempo.” 250 MP, XXV, p. 55. 251 MP, XLVII, p. 77. 252 MP, XLVII, p. 77. 253 MP, XLVII, p. 78.

um compromisso tão eterno quanto o casamento diante da “fragilidade das coisas, das afeições, da família”254 e, sobretudo, diante da transitoriedade da beleza de Virgília, cuja “pele fina e branca do costume”255 acabaria, cedo ou tarde, convertida em uma “imponente ruína”.256 A prevalecer a lógica da melancolia de Brás Cubas, motor de sua alucinação, Lobo Neves é que teria algo a invejar-lhe, a saber: a consciência da própria condição, que lhe impedia de assumir qualquer compromisso efetivo, e prendia-o à voluptuosidade de não fazer nada a sério.

Nesse raciocínio, por meio do qual Brás Cubas converte a sua derrota social em uma espécie de superioridade ontológico-epistemológica, encontra-se resumida a sua “filosofia da ponta do nariz”, cujo pressuposto é o mesmo mecanismo de universalização que já adotara para, transcendendo as suas experiências particulares, afirmar que a melancolia seria a característica essencial de toda a humanidade. Com que direito ele realiza essas universalizações, é algo que a narrativa não se ocupa em discutir explicitamente. Mas o fato é que, se durante os dez anos que se seguiram à morte de seu pai, Brás Cubas não fez nada a sério, tendo se abandonado “ao curso e recurso dos sucessos e dos dias, ora buliçoso, ora apático, entre a ambição e o desânimo”, agora, quando a volúpia do aborrecimento não lhe parecia mais suficientemente voluptuosa, e algo nele reagia, o que nele reagia era justamente a sua memória.

Se, como mostramos anteriormente, a condição para a volúpia do aborrecimento era uma lembrança constante, espécie de baixo contínuo de todo o livro, das experiências da própria finitude desencadeadas a partir da morte de sua mãe, agora essa lembrança constante, sem perder a sua “força impulsiva”, ganha um reforço significativo: a lembrança de que homens como o Lobo Neves, que valiam muito menos do que ele, pois que permaneciam ignorantes da própria condição, não obstante achavam-se superiores a ele e tinham essa superioridade respaldada socialmente.

Isso não poderia continuar assim... Embora Brás Cubas, no tom distanciado que

o caracteriza, não manifeste explicitamente a sua revolta, é ela que determinará todos os desdobramentos posteriores de sua narrativa, na qual ele se ocupará em destruir meticulosamente, um a um, todos os falsos princípios e ideais que davam um sentido à vida dos homens à sua volta, tomando inclusive a sua própria biografia como artifício

254 MP, XXVI, p. 57. 255 MP, XLI, p. 72. 256 MP, V, p. 20.

retórico para fortalecer o seu argumento. Da volúpia do aborrecimento, Brás Cubas passará à volúpia do ressentimento.

O ressentimento de Brás Cubas, em analogia com a sua memória reduplicada, tem um caráter duplo e talvez mesmo triplo: em primeiro lugar, é o ressentimento do melancólico com relação a uma natureza, que, sendo “às vezes um imenso escárnio”257 , não é como deveria ser; em segundo lugar, é o ressentimento contra os outros homens, que, sendo incapazes de reconhecer isso, julgam-se felizes, e, ainda que sem o saber, escarnecem dele, Brás Cubas, incapaz de esquecer258; em terceiro lugar, talvez, haja aí um ressentimento contra si próprio, um ressentimento contra o próprio ressentimento, contra a impossibilidade de se deixar levar pelo apelo de qualquer ação.

Em todo caso, incapaz de agir, Brás Cubas não o é de reagir. Incapaz de construir, não o é de destruir. Sob essa ótica, o fato de ter perdido o “momento oportuno”259 para assumir, de um só golpe, um casamento e uma cadeira no parlamento, uma responsabilidade pessoal e uma responsabilidade política, não era de todo privado de atrativos. Garantia-lhe uma posição privilegiada, fora da vida, como a de um estrangeiro ou mesmo a de um defunto, para colocar-se acima dos outros, para zombar de todos aqueles que assumiam alguma responsabilidade, que se engajavam no que quer que fosse. Se os homens não sabiam que tudo era nada e que tudo redundaria em nada, ele, Brás Cubas, encarregar-se-ia de mostrar-lhes.

No âmbito dessa interpretação, a articulação entre a “pena da galhofa” e a “tinta da melancolia” torna-se clara. O poder corrosivo da galhofa, que, desde Aristóteles, é pensada como um instrumento para afirmar a própria superioridade260, é a expressão da revolta e do ressentimento de Brás Cubas, que assim reage ao “escárnio da Natureza”261 e à ignorância dos outros homens. Tal poder é utilizado por Brás Cubas em função da demonstração da verdade de sua melancolia, segundo a qual a descoberta da finitude

257 MP, XXXIII, p. 64. 258 Cf. NIETZSCHE, F. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003, p. 9: “(...) em meio à menor como em meio à maior felicidade é sempre uma coisa que torna a felicidade o que ela é: o poder-esquecer ou, dito de maneira mais erudita, a faculdade de sentir a-historicamente durante a sua duração. Quem não pode se instalar no limiar do instante, esquecendo todo passado, quem não consegue firmar em um ponto como uma divindade da vitória sem vertigem e sem medo, nunca saberá o que é a felicidade, e ainda pior: nunca fará algo que torne os outros felizes.” Compare-se essa passagem com o capítulo do delírio de Brás Cubas (MP, VII, p. 22ff). 259 MP, LVI, p. 86. 260 ARISTÓTELES. Retórica das paixões. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 7-9: “Os que estão nessa situação, portanto, facilmente são levados à cólera e se enraivecem contra os que escarnecem, zombam e troçam [deles], porque ultrajam. (...) A causa do prazer para os que ultrajam é pensarem que aumentam sua superioridade sobre os ultrajados.” 261 MP, XXXIII, p. 64.

acarreta a perda irreparável da confiança ingênua em um sentido fechado para o mundo e conseqüentemente para as ações do homem. Na ausência desse sentido para sempre perdido, tudo o que restaria ao homem que vive nesse “mundo abandonado por Deus”262 é vingar-se desse abandono, não apenas renunciando inteiramente a engajar-se em qualquer ação, como e sobretudo denunciando o caráter derrisório de todo e qualquer engajamento.

Se a renúncia ao engajamento é a marca do Brás Cubas personagem, que leva uma vida que se poderia dizer irônica, no sentido de distanciada de si própria, deslocada, clandestina, determinada pelo insuportável peso de sua melancolia – em alemão, a palavra para melancolia diz literalmente “ânimo pesado” (Schwermut) –, a denúncia da Natureza, “mãe e inimiga”, assim como a dos homens que ainda não foram capazes de surpreender essa inimizade, é a marca do Brás Cubas narrador, que constrói uma narrativa que se poderia dizer irônica, na medida em que apresenta com uma naturalidade dissimulada – a primeira tradução para o latim do termo grego eironéia foi justamente dissimulatio – episódios que, como ele bem o sabe, chamarão a atenção do leitor para o caráter absurdo dos comportamentos humanos usuais.

A presente evocação da diferença entre narrador e personagem serve apenas para chamar a atenção para o seu progressivo movimento de aproximação. À medida que a ironia vai ocupando o primeiro plano da narração, em que o peso da melancolia vai aparecendo cada vez mais encoberto pela ironia, e não diretamente, como nos episódios que se seguem à morte da mãe de Brás Cubas, narrador e personagem vão se confundindo, sem no entanto apagar inteiramente o rastro de sua diferença.263 Assim como o narrador narra a sua história do “outro mundo”, o personagem vive a sua vida como se fosse outra vida que não a sua.

Ambos comungam de um mesmo desdém pelos outros, que, no entanto, se expressa de modos sutilmente distintos ao longo da narrativa. Sobre o alheamento que acabamos de lhe atribuir, e que, como o próprio esclarece, seria fruto de um certo espírito de vingança, escreve o personagem-narrador:

(...) eu galgara os quarenta anos, e não era nada, nem simples eleitor de paróquia. (...) Multidão, cujo amor cobicei até a morte, era assim que eu me vingava às vezes de ti; deixava burburinhar em volta do meu corpo a gente humana, sem a ouvir, como o Prometeu de Ésquilo aos seus verdugos. Ah! tu cuidavas encadear-me ao rochedo da tua frivolidade, da tua indiferença, ou da

262 Cf. LUKÁCS, G. Teoria do romance. Op. cit., p. 89. 263 Essa fusão, porém, assim como no cinema, não anula as duas distintas imagens da qual provêm.

tua agitação? Frágeis cadeias, amiga minha; eu rompia-as de um gesto de Gulliver. Vulgar coisa é ir considerar no ermo. O voluptuoso, o esquisito, é insular-se o homem no meio de um mar de gestos e palavras, de nervos e paixões, decretar-se alheado, inacessível, ausente. O mais que podem dizer, quando ele torna a si – isto é, quando torna aos outros –, é que baixa do mundo da lua; mas o mundo da lua, esse desvão luminoso e recatado do cérebro, que outra coisa é senão a afirmação desdenhosa de nossa liberdade espiritual? Vive Deus! eis um bom fecho de capítulo.264

Vem à luz nessa passagem a mesma dialética do senhor e do escravo265 que já aparecera quando Brás Cubas menciona a lembrança de “Lobo Neves, que já era deputado”. Se, por um lado, Brás Cubas aos quarenta anos “não era nada”, na medida em que até então não conseguira conquistar o reconhecimento da multidão, por outro lado o fato de ele afirmar que cobiçou esse amor “até a morte” é ironicamente subvertido pelas características dessa mesma multidão que, logo a seguir, ele fornece: “frivolidade, indiferença, agitação”. Em certo sentido, é a multidão que deveria cobiçar

o seu amor, e não o contrário.

Brás Cubas, como já terá ficado claro, identifica-se com o senhor de Hegel, na medida em que não foge ao combate face à face com a morte. Como senhor que julga ser, ou, nos termos de Aristóteles266, como um homem excepcional, luta pelo próprio reconhecimento, pelo reconhecimento da verdade da própria melancolia. O problema é que a multidão dos escravos que lhe pode dar esse reconhecimento, encadeada ao “rochedo da frivolidade, da indiferença e da agitação”, não reconhece a sua própria condição e, assim, é incapaz de reconhecer a “verdade” corporificada por Brás Cubas. O mais grave é que, mesmo que a multidão fosse capaz de reconhecer a superioridade de Brás Cubas, esse reconhecimento de nada lhe valeria, na medida em que ele não reconheceria a multidão como digna de reconhecê-lo.

Assim, a saída que ele encontra, ao menos nesse momento de sua vida, aos quarenta anos, é “insular-se (...), decretar-se alheado, inacessível, ausente”: morto. Somente dessa posição privilegiada para além da multidão e de suas frívolas ocupações

264 MP, XCIX, p. 128s. 265 Cf. HEGEL, G. A fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 131: “Nesses dois momentos vem-a-ser para o senhor o seu Ser-reconhecido mediante uma outra consciência [a do escravo]. (...) Mas, para o reconhecimento propriamente dito, falta o momento em que o senhor opera sobre o outro o que o outro opera sobre si mesmo; e o escravo faz sobre si o que também faz sobre o Outro. Portanto, o que se efetuou foi um reconhecimento unilateral e desigual. (...) Assim, o senhor não está certo do ser-para-si como verdade; mas sua verdade é de fato a consciência inessencial e o agir inessencial dessa consciência.” 266 “Por que todos os homens que foram excepcionais (perittoi) no que concerne à filosofia, à política, à poesia ou às artes aparecem como seres melancólicos?” (Cf. ARISTÓTELES. “Problema XXX”. In: KLIBANSKY, R; PANOFSKY, E; SAXL, F. Saturn und Melancholie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1992, p. 59.

é que ele pode chegar à “afirmação desdenhosa de nossa liberdade espiritual”, ou seja, à afirmação da positividade de não ser nada. Se algo fosse, seria apenas com base no reconhecimento de um outro que ele não reconhece. Ou, o que é ainda pior, com base na ignorância do “enxurro perpétuo”. Neste caso, portanto, quem desdenha não quer comprar.

Fugindo aos condicionamentos próprios à multidão e à morte própria à Natureza, ele afirma negativamente a própria liberdade, que, repita-se, pensa como ausência absoluta de condicionamentos. E aí instala-se o paradoxo: Brás julga escapar à limitação e à morte – seja a morte pensada como finitude natural, seja pensada como heteronomia ou reconhecimento da indistinção entre “voltar a si” e “voltar aos outros” – fingindo-se de morto. Um morto que só não renuncia a uma ação: narrar, isto é, exercitar o próprio desdém. Contra tudo e contra todos, inclusive contra si mesmo – como vimos, não faltam momentos em sua biografia nos quais ele se deixou levar pelo amor à multidão ou, o que é pior, pelo apelo de uma ação qualquer.

E assim se explica o enigmático fecho do capítulo XCIX. Se “não há nada tão incomensurável quanto o desdém dos finados”267 , a má consciência, a consciência ressentida e desdenhosa de Brás Cubas é convertida em fundamento último da realidade, isto é, de sua narrativa. “Vive Deus!” 268

Elevando a sua consciência ao lugar vazio outrora ocupado por Deus, Brás deixa de ser o personagem e se converte no próprio autor da tragédia. Um tragediógrafo que, como o seu modelo divino, converte todos os seus personagens em simples marionetes, cujas vidas passam a não ter nenhum outro sentido senão corroborar a verdade de sua melancolia e, correlatamente, de seu desdém por uma Natureza que não tinha o direito de ser o que é.

267 MP, XXIV, p. 54. 268 MP, XCIX, p. 129.

CAPÍTULO III

A tragédia de Brás Cubas

“Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque, ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: – Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.”

Machado de Assis269

3.1. Entre Brás Cubas e Brás Cubas: a eterna contradição humana

A ambigüidade contida na idéia de uma “tragédia de Brás Cubas” brotou da descrição fenomenológica das Memórias póstumas empreendida no capítulo anterior, que culminou com a hipótese de que a origem do defunto autor não se confunde com o nascimento biológico do personagem, relatado no capítulo X, mas sim com o momento em que ele passa a antecipar alucinatoriamente o fim de todas as coisas, relatado no capítulo XLI, sobre a sua “alucinação”. A partir dessa (dis)secção de Brás Cubas, toda a vida do personagem Brás Cubas antes do capítulo da alucinação pode ser lida como a condição para a inteligibilidade da perspectiva (melancólica) do narrador Brás Cubas, ao mesmo tempo em que a perspectiva do narrador Brás Cubas condiciona o modo como a vida do personagem Brás Cubas será lembrada, isto é, narrada. Assim como na brincadeira infantil do cabo de guerra, a desistência de um dos oponentes levaria à queda do outro, de modo que se torna temerária qualquer tentativa de eleger o narrador ou o personagem como o fundamento último da narrativa. Brás Cubas deve ser lido como um narrador-personagem e como um personagem-narrador.

269 MP, CLX, p. 173.

Essa hipótese permite retomar sob uma nova luz, mais concreta, as considerações do primeiro capítulo deste trabalho. Ali, tentou-se caracterizar a obra de arte (machadiana) como uma corda distendida, um espaço entreaberto pela tensão entre três pares dialéticos: o par autor-personagem, o par leitor-obra270 e o par eu-outro. O fundamental naquela caracterização era a percepção de que o próprio da obra de arte é ser o lugar da resistência mútua de cada um dos contendores à força de seu oponente. Tendo em vista que cada um dos pólos só pode vir a ser o que é a partir dessa resistência mútua, a tensão que a obra põe em obra tem uma prioridade ontológica com relação a ambos os pólos. A obra, sob essa ótica, é como o hífen acima utilizado na grafia dos pares dialéticos: ao separar, reúne, ao reunir, separa; ao distinguir, identifica, ao identificar, distingue.

A ambigüidade da expressão “tragédia de Brás Cubas” aponta justamente para a impossibilidade de um apaziguamento dessa luta. Se, ao ouvir essa expressão, o leitor entende o genitivo objetivamente, a ênfase recai sobre a tragédia do personagem Brás Cubas, que, fazendo a figura de herói trágico, acaba por sucumbir a um destino que foge inteiramente ao seu controle. Se, por outro lado, o leitor entende o genitivo subjetivamente, a ênfase recai sobre a tragédia narrada por Brás Cubas, que, a partir de uma posição privilegiada, póstuma ou mesmo divina, titereia os personagens de sua narrativa, determinando-lhes o destino.

A inscrição lingüística dessa ambigüidade é apenas a marca mais visível da ambigüidade que caracteriza todos os níveis das Memórias póstumas discutidos até aqui. Ela corresponde, da forma mais imediata, à tensão entre o Brás Cubas autor e o Brás Cubas personagem, a qual pressupõe, na tessitura do próprio romance, a tensão entre o ímpeto paranóico do ingente “eu” do narrador e a resistência dos personagens de sua narrativa, que algumas vezes fazem ouvir uma voz “outra” que não a sua. A inscrição lingüística dessa ambigüidade corresponde, finalmente, a uma ambigüidade na própria posição do leitor das Memórias póstumas, que, se permanece fiel ao imperativo de deixar aparecer a “obra mesma”, oscila entre uma atitude simpática, calcada na identificação com o personagem e no esquecimento do narrador, e uma atitude irônica,

270 Cumpre notar que o conceito (concreto, em sentido hegeliano) de obra como tensão, guerra ou jogo de forças, distingue-se do conceito (abstrato, em sentido hegeliano) de obra como o pólo que se opõe ao pólo leitor. Este pode ser identificado “à obra em sua pura materialidade”, àquilo que antecederia e portanto excluiria o movimento hermenêutico do leitor, ao passo que aquele inclui todas as mediações necessárias para que uma obra de arte venha a ser o que é, inclusive a necessidade (ontológica) de ser interpretada e conseqüentemente a história de sua recepção.

calcada na identificação com o narrador e na conseqüente ridicularização do personagem e de todo o seu entorno.

Simpatia e ironia, aproximação e distanciamento, memória e esquecimento são, aliás, as posições entre as quais oscila não apenas o leitor das Memórias póstumas, mas também o narrador. A própria estrutura de um livro de memórias gera inevitavelmente aquela cisão que não escapou à nossa descrição fenomenológica: de um lado, o narrador, que escreve a partir do futuro, com os olhos voltados para o que já não é, e que portanto é sempre póstumo; de outro lado, a presentificação do que foi, a imagem especular de si mesmo em tempos idos e vividos, que, como qualquer imagem especular, duplica, diferencia, pressupõe a identificação (aquele outro sou eu) na medida mesma em que a despedaça (aquele outro não sou mais eu).

O narrador, sob essa ótica, é convertido em uma espécie de leitor de si mesmo, dessa obra que é sua vida. E o leitor, impossibilitado de uma identificação plena com Brás Cubas pelo mesmo mecanismo que impede a identificação plena do narrador consigo mesmo, é forçado continuamente a assumir a responsabilidade pela (construção da) narrativa. Uma responsabilidade que, como já deve ter ficado claro, não deve ser total, pois de outro modo ficaria eliminada a alteridade da obra, única razão para lê-la; ou a alteridade da vida, única razão para vivê-la (ou, no caso, recordá-la).

O problema é que o narrador das Memórias póstumas, como veremos adiante, de forma alguma concordaria com essa última afirmação. Brás Cubas, como vimos no capítulo anterior a partir de uma simpática atenção às peripécias do personagem, caracteriza-se justamente por uma recusa da “eterna contradição humana”271 , que, segundo o próprio Deus do conto “A igreja do diabo”, seria a ambigüidade fundamental que serve de fonte a todas as demais. Essa ambigüidade fundamental, reflexo do parentesco essencial entre ser e devir que Brás Cubas foi progressivamente descobrindo ao longo de seus múltiplos encontros com a morte descritos no último capítulo, é justo o que ele sempre pretendeu extirpar de sua vida. Enquanto viveu, não foi capaz disso, e só lhe restou a revolta contra uma existência que não era como deveria ser. A questão é saber se, com a sua conversão em defunto (autor), ele se tornou capaz de corrigir o “imenso escárnio” da Natureza por intermédio de sua técnica literária. A questão é saber

271 MACHADO DE ASSIS, J. M. “A igreja do diabo”. Em: Histórias sem data. Rio de Janeiro; São Paulo; Porto Alegre: Jackson, 1952, p. 22: “Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.”

se, ao assumir a posição de narrador e morto, Brás efetivamente conseguiu realizar a tão desejada passagem de herói trágico a autor da tragédia.

3.2. Entre o drama e a narração: o que não escapou a Brás Cubas

Na seção anterior, a tentativa de realçar a série de ambigüidades que constituem a complexidade das Memórias póstumas de Brás Cubas encobriu a necessidade de discutir explicitamente uma hipótese que, a princípio, soa no mínimo discutível: a hipótese de que um romance (moderno) como as Memórias póstumas de Brás Cubas possa ser lido como uma tragédia. Será cabível a comparação entre o romance, gênero narrativo por excelência, e a tragédia, a mais elevada expressão do gênero dramático? Não será intransponível a diferença entre drama e narração? Em suma: com que direito se pode falar em uma “tragédia de Brás Cubas”?

Há ao menos duas estratégias possíveis para uma resposta a essas perguntas. A primeira, que se diria mais natural, na medida em que reproduz a forma clássica do silogismo, nos obrigaria a formular um conceito (universal) de tragédia, a achar um termo médio comum às tragédias em geral e ao romance Memórias póstumas de Brás Cubas em particular, e finalmente a concluir com a defesa do título deste capítulo. A segunda, que seria mais coerente com o ponto de partida deste trabalho, segundo o qual a idéia de interpretação, de romance ou de tragédia deve brotar da atenção à autonomia de uma obra (de arte) exemplar, nos levaria a fugir de uma discussão universalista sobre a natureza dos gêneros e a voltar os olhos para a obra mesma em questão, as Memórias póstumas de Brás Cubas, visando a estabelecer se, no que tem de mais singular, ela apresenta uma possível superação dos conceitos estanques de romance e tragédia.

O problema é que, também aqui, a distinção entre essas duas estratégias hermenêuticas, ao separá-las, reúne-as, chamando a atenção para a ambigüidade de sua co-pertinência originária. A segunda estratégia, sob uma certa ótica, só se torna compreensível como uma tentativa de superação (ou fundamentação) da primeira, de modo que necessariamente a implica. Vejamos brevemente como.

A definição de tragédia, ponto de partida da primeira estratégia, pode ser extraída da Poética, de Aristóteles, a mais importante obra sobre o tema. Escreve o filósofo:

É pois a Tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o medo e a compaixão, tem por efeito a purificação dessas emoções.272

Tendo em vista que, na abertura do livro, Aristóteles dissera que seu propósito era o de classificar as diferentes espécies de poesia de acordo com três critérios diferenciais – os meios, os modos e os objetos da imitação – cumpre extrair da definição acima os elementos que propiciaram o estabelecimento da diferença tradicional entre a tragédia e a epopéia, forma literária que antecede histórico-filosoficamente o

273

romance.

Quanto ao objeto da imitação, “uma ação de caráter elevado”, nada distingue a imitação épica da imitação trágica, sendo aliás esta a semelhança que distingue ambas da comédia, que, em vez de representar os mitos dos heróis, é a “imitação de homens inferiores”.274 Quanto aos meios, a “linguagem ornamentada” da tragédia, cuja métrica era mais próxima da língua falada e que continha partes de canto coral, diferia bastante do “verso heróico”275 da poesia épica. Finalmente, e essa é a diferença que mais nos interessa, o modo de imitação da tragédia é o drama, encenação “mediante atores”, “completa e de certa extensão” – isto é, baseada nas unidades de tempo, lugar e ação –, ao passo que o modo de imitação da epopéia é a narração, que interpõe sempre um mediador, o narrador, entre os acontecimentos narrados e os espectadores.

Disso decorrem duas experiências distintas do tempo. A narração, em princípio, trabalha com fatos passados. Quando elabora um relato, o narrador deixa claro que já conhece o fim de sua história, de modo que o que ocorreu não poderá ser modificado. Assim, mesmo que a construção da narrativa implique de algum modo a vivificação dos feitos do passado, o narrador costuma deixar clara a impossibilidade de o leitor interferir em seu desfecho. Em contrapartida, quando compõe um drama, o dramaturgo deve arranjá-lo de modo a que o espectador tenha a impressão de que tudo está se desenrolando naquele momento e de que o curso dos acontecimentos ainda não está inteiramente determinado. Deve, portanto, tornar presentes os acontecimentos. Por

272 ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Ars Poetica, 1992, p. 37 (1449b). 273 LUKÁCS, G. Teoria do romance. São Paulo: Duas cidades; ed. 34, 2000, p. 55: “Epopéia e romance, ambas as objetivações da grande épica, não diferem pelas intenções configuradoras, mas pelos dados histórico-filosóficos com que se deparam para a configuração.” 274 ARISTÓTELES. Op. Cit., p. 33 (1449a). 275 Ibidem, p. 127 (1459b): “Quanto à métrica, prova a experiência que o verso heróico é o único adequado à epopéia (...) o verso heróico é o mais grave e o mais amplo, e, portanto, se presta melhor do que qualquer outro a acolher vocábulos raros e metafóricos (...).”

oposição à narração, que trabalha com o tempo passado, o drama trabalha com a presentificação do tempo representado.276

A diferença entre a forma dramática e a forma narrativa, portanto, é a que mais evidentemente separa a tragédia, mesmo quando apenas lida e não encenada, do romance. Se nos contentássemos com o caráter aparentemente estanque dessa diferença, a idéia de uma tragédia de Brás Cubas estaria definitivamente descartada. Felizmente, porém, nem mesmo Aristóteles se contenta com uma topologia tão reducionista. No capítulo XXIV da Poética, ele elogia Homero, o grande poeta épico, com as seguintes palavras:

(...) só ele não ignora qual seja propriamente o mister do poeta. Porque o poeta deveria falar o menos possível por conta própria, pois, assim procedendo, não é imitador. Os outros poetas, pelo contrário, intervêm em pessoa na declamação, e pouco e poucas vezes imitam, ao passo que Homero, após breve intróito, subitamente apresenta varão ou mulher, ou outra personagem caracterizada – nenhuma sem caráter, todas as que o têm”277 .

A importância dessa passagem repousa sobre o fato de realçar algo que imprime um caráter mais dialético, ou, para voltar aos termos da seção anterior, ambíguo, à diferença entre os gêneros poéticos estabelecida pelo próprio Aristóteles. Utilizando Homero como exemplo, o filósofo chama a atenção para o fato de que a primazia do narrador não exclui o discurso direto dos próprios personagens da narrativa, que, em diversos momentos, são representados de modo tão dramático que fazem esquecer a onipresença do narrador e a experiência do tempo própria à narração. Nesse sentido, poder-se-ia mesmo dizer que a eficácia da forma narrativa depende de sua “impureza”. Se o efeito visado pela epopéia é o espanto e mesmo o assombro com os feitos dos antepassados heróicos, a passagem da admiração à imitação da conduta dos heróis, que é propriamente a base da pedagogia homérica, depende de algo que aproxime os ouvintes da epopéia desses modelos tão distantes não apenas no tempo, mas em sua familiaridade com os deuses. A hipótese de Aristóteles é a de que essa aproximação depende da utilização da forma dramática no seio mesmo da forma narrativa, na medida em que, se a narração distancia e favorece a observação e o aprendizado, o drama aproxima e favorece a identificação e a imitação.

A observação aristotélica sobre a presença de elementos dramáticos em Homero vale de forma ainda mais contundente para as Memórias póstumas de Brás Cubas, em

276 Cf. HOLLANDA, L. B. “Drama e narração em Aristóteles”. In: Revista Artefilosofia. (No prelo). 277 Ibidem, p. 129 (1460a).

que se alternam momentos pungentemente dramáticos, como o relato da morte da mãe do protagonista, com uma série de intervenções do narrador que visam justamente a quebrar as identificações a que essas passagens dramáticas dão ensejo. É possível inclusive conjeturar que a presença do narrador só se torna tão conspícua ao longo do romance, porque, em diversos momentos, ele pressente que as suas intenções didáticas ficam ameaçadas pela tendência do leitor a se deixar levar pelo enredo e a se identificar empaticamente com os personagens, chegando mesmo a compreendê-los.278 O que, para

o narrador, significa: chegando mesmo a compreender o incompreensível.

Uma vez que Aristóteles complexifica a diferença entre drama e narração a partir do exemplo de um poeta épico, ficamos tentados a indagar se uma tal complexificação também não seria possível a partir do exemplo de um poeta trágico. Ainda que essa idéia não encontre um respaldo tão explícito na letra do próprio texto aristotélico, é possível conjeturar que o efeito visado pela tragédia, a catarse do medo e da compaixão, pressupõe não apenas a presentificação dos acontecimentos e a conseqüente identificação entre os espectadores e os personagens favorecidas pela forma dramática. Para que possa haver a catarse do medo, que pressupõe identificação entre a situação do espectador e a dos personagens, é preciso não deixar que ele se converta em horror, ou seja, é preciso preservar a distância estética, lembrando periodicamente ao espectador de que, por mais próximo que lhe pareça o drama, trata-se de um drama alheio, incapaz de arrancá-lo à margem segura, a platéia, em que se encontra. Em algumas tragédias clássicas, esse efeito de distanciamento era promovido pelo coro, cujas intervenções explicativas, ou narrativas, criavam uma espécie de barreira entre a platéia e os personagens, atualizando a consciência de que, no final das contas, há uma diferença entre acontecimentos encenados, por mais competente que seja a sua presentificação, e acontecimentos efetivamente vividos. Ao mesmo tempo, é apenas o distanciamento gerado pela consciência de que se trata de um drama alheio que, dialeticamente, torna possível a compaixão, que se pode definir como uma espécie de medo pelo outro, a qual, por sua vez, só pode ser purificada se o medo, ou seja, a compaixão por si mesmo, vier lembrar os espectadores de que, apesar de alheio, trata-se de um drama humano, que em princípio não poupa ninguém, o que portanto inviabiliza

278 MP, LXXI, p. 102: “(...) o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam

o céu, escorregam e caem...”.

o sentimento de superioridade que sentem aqueles que se julgam inteiramente ao abrigo de dores que só poderiam tocar os “outros”.

Apesar de não anular a diferença entre a epopéia, antecessora do romance, e a tragédia, o que essa leitura dialética da Poética de Aristóteles deixou claro é que não se deve associar a tragédia unicamente ao modo dramático, assim como tampouco se deve associar a epopéia (e o romance) exclusivamente ao modo narrativo. A diferença entre a poesia épica e a poesia trágica repousa na medida da mistura, ou melhor, no modo como, em cada obra singular, se estabelece a tensão entre drama e narração.

A lembrança de que a atenção à singularidade de uma obra de arte determinada é mais importante do que qualquer discussão universalista sobre a natureza dos gêneros poéticos nos remete de volta à diferença entre as duas estratégias hermenêuticas para a justificação do título deste capítulo anteriormente mencionadas, a que se baseia na estrutura do silogismo e a que se baseia na recusa do mecanismo silogístico de identificação.

O que o longo excurso pela Poética de Aristóteles nos permitiu entrever é que, uma vez que se recusa uma identificação unívoca entre tragédia e drama, por um lado, e entre romance e narrativa, por outro, torna-se possível conferir ao modo dramático a função de termo médio que permitiria falar em uma tragédia de Brás Cubas. Se efetivamente pretendêssemos seguir “com rigor” o modelo silogístico de argumentação, seríamos levados a dizer o seguinte: a tragédia é o gênero poético caracterizado por uma preponderância do modo dramático sobre o modo narrativo. O romance Memórias póstumas de Brás Cubas caracteriza-se por uma preponderância do modo dramático sobre o modo narrativo. Logo, o romance Memórias póstumas de Brás Cubas é uma tragédia.

O problema dessa desastrada tentativa de aplicar a uma obra de arte uma forma de pensamento que lhe é totalmente estranha e externa é evidente. Compromete-nos com uma premissa que nenhuma leitura das Memórias póstumas de Brás Cubas endossaria: a premissa de que essa obra se caracteriza por uma preponderância do modo dramático sobre o modo narrativo. Se a rigidez silogística não faz justiça à complexidade da obra machadiana, aliás revelando-nos o quanto a lógica tem a aprender com a estética, a estética com a fenomenologia, e a fenomenologia com cada obra singular, isso não significa que devamos jogar fora o bebê junto com a água suja do banho.

A leitura da Poética que estrutura as premissas do silogismo acima deve ser conservada. Assim, embora recusemos qualquer preponderância apriorística do modo dramático sobre o modo narrativo nas Memórias póstumas de Brás Cubas como um todo, o que inviabiliza a aplicação do rótulo de “tragédia” para essa obra como um todo, sustentamos a idéia de que há episódios da narrativa de Brás Cubas, ainda que parcos, em que o modo dramático relega a voz do narrador a um segundo plano. Uma reconstrução desses episódios, que lhes confira aquela espécie de unidade (de tempo, lugar e ação) que falta à obra como um todo, como veremos na seção 3.5., é o que justifica falar em uma “tragédia de Brás Cubas”, entendendo-se aqui o genitivo objetivamente e o conceito de tragédia aristotelicamente. Essa reconstrução, entretanto, não tem como negar a preponderância do modo narrativo ao longo da obra, de modo que a expressão “tragédia de Brás Cubas”, quando o genitivo é entendido subjetivamente, nos obriga a ir além do conceito aristotélico de tragédia. Da tensão entre drama e narração, somos portanto levados a uma outra tensão, entre distintos conceitos de tragédia, tema da próxima seção.

3.3. Entre a poética da tragédia e a filosofia do trágico

Talvez não seja supérfluo salientar que, de acordo com a interpretação da seção anterior, a preponderância de drama ou de narração nas Memórias póstumas de Brás Cubas tem menos a ver com a presença de discursos diretos ou indiretos ao longo do texto do que com a tensão que se estabelece entre o leitor e a obra. Há passagens do texto que inegavelmente solicitam do leitor uma quase plena identificação com o personagem, ao passo que outras solicitam um distanciamento irônico. Na identificação simpática, mais aparentada ao drama, ressalta o Brás Cubas personagem; no distanciamento irônico, mais aparentado ao romance, o Brás Cubas narrador, que, ao rir do seu passado e quebrar a unidade de tempo, lugar e ação, recusa-se a identificar-se consigo mesmo. Mais uma vez, a simpatia exigida pela leitura fenomenológica proposta no capítulo anterior nos obriga a sustentar essa tensão. Se, em nossa leitura, não podemos nem cair em uma identificação plena com Brás Cubas, nem em um distanciamento absoluto com relação a suas peripécias, já que tanto o excesso de empatia quanto o excesso de ironia feririam a medida da obra, cumpre no entanto distinguir, no âmbito da obra, aqueles momentos em que a identificação é exigida daqueles momentos em que o distanciamento é indispensável.

A dificuldade inerente à exposição dessa diferença tem a ver com a essência da linguagem (de um trabalho como este), que não apenas se estrutura em torno de uma rígida oposição entre sujeito e objeto, causa e efeito, forma e matéria, fundamento e fundado, como também faz soar estranho qualquer pensamento que não reconheça incondicionalmente a vigência dos princípios de identidade, de não-contradição e do terceiro excluído. Assim, por mais que não queiramos de forma alguma perder de vista

o fato de que não há identificação sem distanciamento, drama sem narração, ou Brás Cubas (personagem) sem Brás Cubas (narrador) – e vice-versa! –, cumpre-nos chamar a atenção para uma outra ambigüidade contida na expressão “tragédia de Brás Cubas”, aquela entre dois distintos conceitos de tragédia, a qual, esperamos, tornará mais nítida a lábil fronteira que serve de origem aos pares dialéticos que acabamos de mencionar.279

Em seu Ensaio sobre o trágico, texto seminal para o reconhecimento da diferença que ora nos importa considerar, escreve Peter Szondi: “Desde Aristóteles, há uma poética da tragédia, mas apenas desde Schelling uma filosofia do trágico.”280

Em linhas gerais, a diferença entre a poética da tragédia e a filosofia do trágico é a diferença entre “um ensinamento acerca da criação poética”281 , que pretende “determinar os elementos da arte trágica”282 , suas características e seu efeito, por oposição à arte dos poetas épico e cômico, e uma “teoria do trágico, que volta sua atenção não mais para o efeito da tragédia e sim para o próprio fenômeno trágico”.283 Pensada a princípio de modo estanque, a oposição entre a Poética de Aristóteles e a filosofia trágica de Schelling é a oposição entre uma obra de caráter eminentemente empírico, baseada na análise de uma série de obras de arte disponíveis ao escrutínio de seu autor, que visa à constituição de uma teoria dos gêneros poéticos284, e uma obra que, a partir da análise de uma tragédia exemplar como Édipo rei, nela descobre o paradigma do próprio modo de ser, trágico, da realidade. Se, em Aristóteles, pensador da Antigüidade, a tragédia ainda pode purificar a existência de seu absurdo, na medida em

279 Importante notar que a atenção a (mais) essa diferença encontra-se ela própria numa encruzilhada: apesar de ter como propósito conspícuo a tentativa, motor de todo este trabalho, de fazer justiça à série de ambigüidades que perfazem a complexidade das Memórias póstumas de Brás Cubas, nada garante que ela não acabe operando em sentido oposto, caindo no estabelecimento de (mais) uma dicotomia estanque. 280 SZONDI, P. Ensaio sobre o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 23. 281 Ibidem. 282 Ibidem. 283 Ibidem, p. 29. 284 Ibidem, p. 23: “Mesmo quando vai além da obra de arte concreta, ao perguntar pela origem e pelo efeito da tragédia, a Poética permanece empírica em sua doutrina da alma, e as constatações feitas – a do impulso de imitação como origem da arte e a da catarse como efeito da tragédia – não têm sentido em si mesmas, mas em sua significação para a poesia, cujas leis podem ser derivadas a partir dessas constatações.”

que o ocaso do herói faz resplandecer o divino sentido de seu mundo, em Schelling,

pensador da Modernidade, a tragédia traz à luz a insuperável tragicidade de um tempo

histórico que se pode caracterizar como um entretempo (Zwischenzeit), um tempo que já

não é mais o do mundo fechado dos gregos e não é ainda o da almejada restauração da

totalidade.285 O homem moderno, preso “naquela espécie de garganta entre o passado e

o presente” e ansioso “por sair à planície do futuro”286, aparece, no seio da filosofia

trágica, como aquele que chegou tarde demais para os velhos deuses e cedo demais para

os novos, e que portanto tem o paradoxo como único alimento. Escreve Schelling:

Muitas vezes se perguntou como a razão grega podia suportar as contradições de sua tragédia. Um mortal, destinado pela fatalidade a ser um criminoso, lutando contra a fatalidade e no entanto terrivelmente castigado pelo crime que foi obra do destino! O fundamento dessa contradição, aquilo que a tornava suportável, encontrava-se em um nível mais profundo do que onde a procuraram, encontrava-se no conflito da liberdade humana com o poder do mundo objetivo, em que o mortal, sendo aquele poder um poder superior – um fatum –, tinha necessariamente que sucumbir, e, no entanto, por não ter sucumbido sem luta, precisava ser punido por sua própria derrota. O fato de o criminoso ser punido, apesar de ter tão-somente sucumbido ao poder superior do destino, era um reconhecimento da liberdade humana, uma honra concedida à liberdade. A tragédia grega honrava a liberdade humana ao fazer seu herói lutar contra o poder superior do destino: para não ultrapassar os limites da arte, tinha de fazê-lo sucumbir, mas, para também reparar essa humilhação da liberdade humana imposta pela arte, tinha de fazê-lo expiar – mesmo que através do crime perpetrado pelo destino... Foi grande pensamento suportar voluntariamente mesmo a punição por um crime inevitável, a fim de, pela perda da própria liberdade, provar justamente essa liberdade e perecer com uma declaração de vontade livre.287

Se, na leitura que fizemos da Poética (da tragédia) de Aristóteles, as categorias

centrais são as de drama e narração, na leitura que se pode fazer da passagem acima da

filosofia do trágico de Schelling, as categorias centrais são as de liberdade e

necessidade. A compreensão do trágico como modo de ser da realidade (humana)

implica a interpretação do conflito essencial entre a “vontade livre” e o “fatum”, entre o

poder do homem de moldar o próprio destino e o “poder superior” sob o qual ele tem

285 Embora seja possível explicar a diferença entre a poética da tragédia e a filosofia do trágico em Aristóteles e Schelling de modo estanque, a partir de considerações histórico-filosóficas que acabariam por isolar a primeira como uma expressão exclusiva da Antigüidade e a segunda como um fruto caracteristicamente moderno, não é possível negligenciar que, de acordo com o interesse prévio do leitor, tanto é possível reconhecer o embrião de uma filosofia do trágico na poética da tragédia de Aristóteles quanto é possível reconhecer uma aceitação tácita da definição aristotélica de tragédia na filosofia do trágico de Schelling. Também aqui a tensão entre pólos mutuamente dependentes aponta para a prioridade ontológica da tensão que, ao diferenciá-los, condiciona o estabelecimento de suas respectivas identidades. 286 MP, XL, p. 71. 287 SCHELLING, F. apud SZONDI, P. Op. Cit., p. 29.

“necessariamente que sucumbir”. “Esse conflito [entre a liberdade e a necessidade]”, prossegue Schelling, “não termina com a derrota de uma ou de outra, mas pelo fato de ambas aparecerem indiferentemente como vencedoras e vencidas.”288

A base dialética da concepção de Schelling é o que justificou a sua breve menção no âmbito deste trabalho, que no entanto não visa de forma alguma a aprofundar a discussão do pensamento do filósofo alemão, mas sim, como já se adiantou, a utilizar o conflito que ele identifica como a essência do trágico para tornar visível a diferença entre os dois usos do genitivo na expressão “tragédia de Brás Cubas”.

Para o esclarecimento do uso objetivo do genitivo, como concluímos na seção anterior, a referência à Poética de Aristóteles é indispensável, na medida em que nos permite caracterizar como “trágico” um período da trajetória de Brás Cubas no qual ele aparece como um herói trágico, que, como qualquer herói trágico, depois de ouvir as palavras do oráculo e tentar escapar ao destino por ele predito, vive as experiências fundamentais da “peripécia” e do “reconhecimento”.

Para o esclarecimento do uso subjetivo do genitivo, por outro lado, a idéia de uma filosofia do trágico é fundamental, na medida em que nos permite caracterizar como “trágica” a visão de mundo que estrutura toda a narrativa do defunto autor. Essa visão trágica do mundo, se por um lado é condicionada pelas experiências vividas por Brás Cubas entendido como herói trágico, por outro atua de forma decisiva na determinação do modo como essas experiências, que corroboram a sua visão trágica do mundo, serão lembradas. Parece-nos que, fiel ao interesse melancólico de sua narrativa e à obsessão por provar a verdade objetiva de sua melancolia, o narrador Brás Cubas empenhou-se ao máximo em apagar todos os rastros daquelas experiências que pudessem contradizer o sumo da filosofia trágica que ele pretendia nos transmitir de sua pretensa posição privilegiada no outro mundo.

Tendo em vista que, ao uso objetivo do genitivo na expressão “tragédia de Brás Cubas” correspondem as passagens mais dramáticas da obra, calcadas no conceito aristotélico de tragédia, que exige sobretudo a identificação entre leitor e personagem; e que, ao uso subjetivo, correspondem as passagens mais narrativas, que exigem do leitor um distanciamento do personagem e uma aceitação da filosofia trágica do narrador, cumpre-nos agora, neste capítulo que é sem dúvida menos fenomenológico que o

288 Ibidem, p. 31.

anterior, embora de forma alguma anti-fenomenológico, fazer um pequeno panorama, quase uma caricatura, da estrutura da obra como um todo, de modo a realçar a diferença entre os episódios em que sobressai uma ou outra das supramencionadas concepções de tragédia.

3.4. A estrutura das Memórias póstumas de Brás Cubas

A fixação da estrutura de uma obra tão complexa, e portanto dinâmica, quanto as Memórias póstumas de Brás Cubas é uma tarefa fadada ao fracasso. Feita essa ressalva,

o esboço de estrutura que propomos abaixo pode ser útil para propiciar uma visualização mais sistemática não apenas da obra em questão, mas sobretudo da leitura das Memórias póstumas que está na base deste trabalho.

A construção de oposições abstratas entre pólos dialeticamente contrapostos que alimentou nossa empreitada até aqui tem fundamentalmente dois intuitos: em primeiro lugar, o intuito de tornar visível o caráter derivado de cada um dos oponentes, que só podem vir a ser o que são a partir da tensão mútua que lhes constitui; em segundo lugar,

o de permitir uma (dis)secção do defunto autor que torne no mínimo problemática qualquer tentativa de atribuição de um predicado definitivo que caracterize satisfatoriamente a sua identidade (como aqueles que lhe foram atribuídos pela maioria dos críticos tradicionais da obra machadiana).

1. capítulos I a IX Prólogo metafísico. Apresentação da necessidade de “um emplasto anti-hipocondríaco destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade” é seguida pela apresentação de uma filosofia do trágico, que justifica a reivindicação brascubiana da universalidade da melancolia.
2. capítulos X a XXII Romance de (de)formação. Antes da melancolia (e da tragédia), Brás Cubas se apresenta como mais um homem que expressa o seu meio social e reproduz as suas “deformidades” mecanicamente. Neste sentido, ele não havia ainda propriamente se tornado o Brás Cubas que nos interessa.
3. capítulos XXIII a XLVI A tragédia de Brás Cubas, o personagem, tem algumas das principais características exigidas por Aristóteles. Ao fim, enseja o nascimento de Brás Cubas, o narrador, isto é, o ironista implacável. Único conjunto de episódios do livro em que o modo dramático tende a suplantar o narrativo.
4. capítulos Apresentação da técnica literária do narrador corresponde à exposição do império da técnica. A filosofia da ponta do nariz é a sua confissão de que tudo e todos deverão servir (de
XLVII a XLIX instrumento) à demonstração sistemática da verdade de sua melancolia, ou melhor, de sua filosofia do trágico, enunciada no prólogo metafísico.
5. capítulos L a CLIX Uma vida no subsolo, na clandestinidade. Utilização sistemática da ironia como mimese do modo de ser trágico da realidade, que a tudo corrói. Simultaneamente, como afirmação da própria superioridade. Os ídolos de pés de barro derrubados por Brás: 1. altruísmo (pela filosofia da ponta do nariz) 2. poesia, arte (pela vaidade e a sede de nomeada) 3. ética (pela lei da equivalência das janelas) 4. amor, “pêndula entre prazer e dor” (pelo fastio e a finitude) 5. leitor, bibliômano, crítico (pela sua intrínseca alienação) 6. família (pelo jogo de interesses pecuniários que a sustenta) 7. casamento (pelo adultério e os interesses pecuniários) 8. política (pelo conservadorismo e a vacuidade das elites) 9. filosofia (pelo humanitismo) 10. caridade, religião (pela teoria do benefício) 11. a vida (pela morte)
6 capítulo CLX Resumo da tragédia do personagem Brás Cubas – “sou o que não foi” – e coroação da vingança de seu autor: o que não foi deliberadamente, e portanto o que não ficou calado, o que nem mesmo a morte, isto é, a vida, conseguiu silenciar.

De acordo com a divisão acima, já teríamos abordado no capítulo anterior os três primeiros estágios do romance, especialmente o estágio 3, que agrupa o conjunto de episódios que, vistos sob a ótica deste capítulo, configuram “a tragédia de Brás Cubas”, entendido como herói trágico. Uma interpretação do modo como Brás Cubas pode ser considerado um herói trágico a partir de algumas das categorias fixadas por Aristóteles na Poética será brevemente esboçada na seção 3.5.

Na seção 3.6., por sua vez, os mesmos acontecimentos que configuram a tragédia de Brás Cubas entendido como um herói trágico serão considerados sob uma ótica sutilmente distinta. Discutiremos de que forma aquilo que, para o personagem, parece ser a ação de um destino incompreensível, que lhe deixa sempre com a consciência boquiaberta, é em realidade moldado pelo narrador, o Brás Cubas tragediógrafo, com o fito de comprovar a sua filosofia do trágico.

Essa comprovação, como veremos na seção seguinte, 3.7., depende de uma imitação, pelo narrador, da ironia trágica que atribui à Natureza, da qual, a partir de uma certa altura de sua biografia e desde o começo das Memórias póstumas, se fará porta-voz.

A voz da Natureza, aliás, é a voz dominante do capítulo do delírio, cerne do prólogo metafísico das Memórias, que “funciona assim como uma tese da qual o romance, a narrativa da vida e dos amores de Brás Cubas, será a demonstração”289 . Tendo em vista que a filosofia do trágico como apresentada sinteticamente no capítulo do delírio é a expressão discursiva e a universalização da melancolia de Brás Cubas, que servirá de fio condutor à composição de sua obra como um todo, na seção 3.8., empreenderemos uma análise detalhada desse capítulo.

Já na seção 3.9., dedicaremos nossa atenção ao modo como Brás Cubas, em imitação da Natureza e coerentemente com a sua filosofia do trágico, utilizará a sua ironia para demolir todos os ídolos de sua sociedade, os sentidos sobre os quais os seus contemporâneos baseavam suas vidas, a fim de, desnudando o seu absurdo, comprovar a verdade objetiva de sua melancolia.

Nas seções 3.10 e 3.11., finalmente, indagaremos se o narrador teria alcançado o seu objetivo, ou se, ironicamente, seus propósitos autorais não teriam sido subvertidos pelo mesmo mecanismo que ele julgava controlar tão bem. A partir dessa questão, além da tragédia do Brás Cubas personagem (genitivo objetivo) e da tragédia escrita pelo Brás Cubas narrador (genitivo subjetivo), teríamos também uma tragédia do Brás Cubas narrador (genitivo objetivo), que, recolocando o problema da diferença entre narrador e personagem, simultaneamente dois e um, nos levará a conceber as Memórias póstumas de Brás Cubas como um exemplar único para a compreensão da tragédia da linguagem.

3.5. Brás Cubas como herói trágico

A descrição fenomenológica da vida de Brás Cubas entre as mortes de sua mãe e de seu pai, empreendida no capítulo anterior, foi orientada pela necessidade de tornar visível a gênese de sua melancolia. A melancolia, como tentamos mostrar, é a disposição afetiva que dá o tom da narrativa de Brás Cubas, determinando não apenas o que será lembrado e o que será esquecido, mas sobretudo o que não será esquecido. Essa melancólica impossibilidade de esquecer (os seus encontros com a finitude), de tirar os olhos do passado e voltá-los para o futuro, foi o que, em última instância, acabou por vedar todos os caminhos de Brás até a realização. Subjugado pelo peso excessivo de sua memória, ao cabo das Memórias póstumas só restou a esse

289 MURICY, K. A razão cética: Machado de Assis e as questões de seu tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 101.

memorialista, no célebre capítulo “das negativas”, inventariar tudo o que não foi e não fez.

Ainda que o tom de bazófia com que ele se gaba de não ter transmitido “a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”290 não deva ser desprezado, o fato é que esse balanço tardio de sua vida não se afina inteiramente com as suas ações entre as duas mortes que lhe acabaram por selar o destino (de) melancólico. Apesar de a ironia das palavras finais do livro visar a converter até mesmo a melancolia do narrador em uma superioridade com relação a homens inconscientes de sua condição, por um lado, e à própria Natureza, por outro, a cuja voracidade Brás se nega a entregar novos frutos, o fato é que, naquele período decisivo de sua vida discutido no capítulo anterior, Brás Cubas não se entregou sem luta. Se as irônicas palavras finais de sua obra são uma espécie de louvor à inação, pensada como a única forma de resistência a uma existência que não é o que deveria ser, as ações e as palavras que se seguem ao seu período de luto na Tijuca – “Reagia a mocidade, era preciso viver.” – apontam em uma direção bem diferente.

A tragédia de Brás Cubas, sob essa ótica, não deve ser confundida com a mera apresentação de um homem sendo esmagado por uma necessidade cega, um poder superior, um fatum. De acordo com a supracitada passagem de Schelling, só há tragédia onde o herói trágico, como herói que é, não sucumbe sem luta. Na verdade, pode-se inclusive ir além de Schelling, e afirmar que só há tragédia onde é a própria luta por escapar a um destino anunciado que possibilita a realização desse destino.

Tendo em vista que esse mecanismo de inversão do sentido de uma ação é, no campo da tragédia, análogo ao tropo retórico da inversão de sentido que, desde Quintiliano, recebeu o nome de “ironia”, pode-se afirmar que sem ironia não há tragédia. Em todo caso, sem ironia não haveria uma “tragédia de Brás Cubas”. Como nenhuma leitura das Memórias póstumas pode negligenciar a ironia, trata-se agora de mostrar como o conceito de ironia trágica nos permite caracterizar aristotelicamente o período entre as mortes de sua mãe e de seu pai como “a tragédia de Brás Cubas”.

O conceito de ironia trágica pressupõe a convicção de que sem ironia não há tragédia. Este conceito remonta à obra de Connop Thirwall, On the irony of Sophocles,291 na qual ele defende a existência de dois níveis de ironia na tragédia. O

290 MP, CLX, p. 173. 291 THIRWALL, C. apud MENKE, C. Die Gegenwart der Tragödie: Versuch über Urteil und Spiel. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2005, p. 63.

primeiro desses níveis é o que ele chama de “ironia da ação (trágica)” e o segundo de “ironia do poeta (trágico)”.

A ironia da ação trágica é o que permite diferenciar a idéia de destino propriamente trágica da idéia de destino presente nos mitos que a tragédia toma como matéria-prima. Enquanto nos mitos o destino aparece como uma espécie de necessidade cega, de violência em estado bruto que arrasta gratuitamente o herói, apresentado como joguete ou marionete dos deuses, na tragédia não há tal passividade. A queda do herói, para ser trágica, precisa em alguma medida ser auto-infligida. A ironia da ação trágica, como bem mostrou Peter Szondi em seu ensaio sobre Édipo rei, repousa sobre “a unidade de salvação e destruição. A destruição em si não é trágica, mas sim o fato de a salvação tornar-se destruição. O trágico não se consuma com a queda do herói, mas sim com o fato de o homem sucumbir no caminho que tomou justamente para escapar à ruína”.292 Essa é, aliás, uma possível interpretação do que Aristóteles chama de Peripécia (metabolé), definida na Poética como “a mutação dos sucessos no contrário”.293

A ironia da ação trágica, no entanto, pressupõe uma ironia diante da ação trágica, ou seja, um distanciamento irônico-reflexivo por parte daqueles que a conformam: o poeta trágico e o espectador da tragédia. Se, sob a perspectiva do herói, não é possível apreender que todas as suas ações o conduzem justamente na direção contrária à que pretendia ir; e ao mesmo tempo se admite que nessa inversão de sentido típica da ironia pensada como tropo da retórica é que repousa a tragicidade da ação trágica, então é forçoso concluir que a ironia da ação trágica só se torna visível a partir da ironia do autor, ou, conforme o caso, do espectador da tragédia. Isso, aliás, é o que Aristóteles indica na Poética quando afirma que sem Reconhecimento não há tragédia.294 Édipo só apreende a tragicidade de sua situação quando se torna um espectador de si mesmo.

A partir dessa imbricação entre ironia e tragédia, que subverte não apenas as interpretações tradicionais da ironia machadiana, como também a interpretação que será desenvolvida na próxima seção, revelando que nas Memórias póstumas há mais de um conceito de ironia em tensão dialética com os demais, cumpre finalmente retomarmos

292 SZONDI, P. “Versuch über das Tragische”. In: Schriften I. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1978, p.

213. 293 Cf. ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Ars Poetica, 1992, p. 61. 294 ibidem, p. 61: “O Reconhecimento (anagnórisis), como indica o próprio significado da palavra, é a passagem do ignorar ao conhecer, que se faz para a amizade ou inimizade das personagens que estão destinadas para a dita ou para a desdita.”

panoramicamente a análise da série de peripécias que levaram Brás Cubas a converter-se finalmente em um defunto autor.

A série dessas peripécias tem início com a morte da mãe de Brás Cubas, que se poderia mesmo comparar ao oráculo que afasta Édipo de Corinto e o leva para o seio da cidade materna e para o cumprimento de seu destino. Nesse episódio, anuncia-se para Brás o absurdo da finitude, do devir, da incoerência entre as ações de uma pessoa e o resultado dessas ações. Pode-se dizer que, nesse momento, o “grande futuro” com que ele sempre sonhara lhe aparece como uma ilusão.

A descrição pungente da morte da mãe gera uma identificação radical com o personagem, já que a morte biológica não poupa mesmo a ninguém, e ali Brás Cubas realiza uma experiência efetivamente universal, escapando ao mecanismo de universalização das comezinhas “tragédias particulares” que perpassa a maior parte de sua narrativa. Essa identificação, apesar das parábases irônicas do narrador, confere um caráter dramático à narrativa.

A súbita descoberta do caráter trágico da existência, que ele chama de “obscuro, incongruente, insano”295, precipita Brás Cubas em um estado de luto, e ele escreve que “por então é que começou a desabotoar em mim a hipocondria, essa flor amarela, solitária e mórbida, de um cheiro inebriante e sutil.”296

Ao perceber o começo do desabotoar da melancolia, Brás Cubas faz de tudo para fugir a ela, e, embora com menos presteza do que teria desejado seu pai, investe todas as suas energias em retornar ao bulício, à vida que tivera antes da morte de sua mãe. Tenta-

o primeiro com Eugênia, até descobrir a sua coxidão, que põe tudo a perder, e depois com Virgília, a noiva que seu pai escolhera para ele. Quando está indo pedir a sua mão em casamento, porém, o seu relógio cai ao chão e se quebra, e, ao ir consertá-lo, ao tentar fazer o tempo voltar a andar, ele depara com Marcela, o seu amor de juventude, corroída pelas bexigas.

As evidências da morte sem sentido de sua santa mãe, da coxidão de Eugênia e da varíola de Marcela, no entanto, não são ainda suficientes para que ele abandone o afã de escapar àquele destino (de) melancólico. Ao chegar à casa de Virgília, porém, bastante atrasado, mas ainda decidido a pedir sua mão em casamento, ele olhou para ela e

295 MP, XXIII, p. 53. 296 MP, XXV, p. 55.

a sensação foi tão penosa, que recuei um passo e desviei a vista. Tornei a olhá-la. As bexigas tinham-lhe comido o rosto; a pele, ainda na véspera tão fina, rosada e pura, aparecia-me agora amarela, estigmada pelo mesmo flagelo que devastara o rosto da espanhola. Os olhos, que eram travessos, fizeram-se murchos; tinha o lábio triste e a atitude cansada.297

O episódio da alucinação, em que, como numa fusão cinematográfica, Marcela e Virgília, passado e futuro se fundem, é aquele em que a ironia da ação trágica encontra

o seu ápice. Desde a experiência da morte de sua mãe, que lhe revelou sem encobrimentos o parentesco essencial entre ser e devir, vida e morte, geração e corrupção, tudo o que Brás Cubas fez foi tentar voltar ao bulício, ao “grande futuro” que seu pai e seu entorno social lhe prometiam. Cada nova tentativa de voltar à vida – a uma vida não maculada pelo peso da finitude – teve no entanto sempre o resultado inverso ao que ele esperava. Quanto mais fugia da morte, Brás Cubas ironicamente mais ia ao seu encontro. Até que, no encontro fatal com Virgília, ao contrário do que acontecera nos anteriores, ele finalmente reconheceu a impossibilidade da fuga. Ao projetar na pele imaculada da noiva a varíola que corroera a beleza de Marcela, torna-se patente que ele já não necessita de mais nenhuma evidência objetiva do parentesco essencial entre vida e morte. Ao contrário. Doravante é a sua melancolia que se encarregará de antecipá-lo alucinatoriamente, como aliás ele próprio nos explica no capítulo “que escapou a Aristóteles”.

Esse reconhecimento da impossibilidade da fuga, ou, nos termos de Schelling, da impotência da liberdade face à necessidade, constitui a principal peripécia na vida de Brás Cubas.298 Se, desde o nascimento em berço esplêndido, ele parecia fadado a um “grande futuro”, a morte da mãe e as experiências de morte que rapidamente lhe sucedem, todas com nome de mulher, convertem o grande futuro em um enorme passado, cujo peso é tão ingente que faz com que Brás Cubas, apesar de todo o seu afã por recuperar o prumo, finalmente sucumba. A evidência de sua queda, da cesura no curso socialmente pré-estabelecido de sua vida, é o retiro de dez anos que ele faz imediatamente após a morte de seu pai, ocorrida aliás pouquíssimo tempo depois da morte de sua mãe.

Nesse retiro, em que se consolida a distância reflexiva de Brás Cubas com relação às suas experiências imediatas, fica claro que ele está destinado a ver sempre na

297 MP, XLI, p. 72. 298 Como em Édipo rei, a mais perfeita das tragédias segundo Aristóteles, também na tragédia de Brás Cubas a peripécia se dá simultaneamente ao reconhecimento.

felicidade presente “uma gota da baba de Caim”299. Essa visão da Natureza como “mãe e inimiga”300, que só dá a vida para poder dar a morte, acabará por vedar todos os possíveis caminhos de Brás Cubas até a ação, e assim, condenado à inação, ele finalmente assumirá a tez cadavérica daquele que não foi, que, por ter vivido como um morto, acabou por converter-se em um defunto autor.

O célebre capítulo final do livro, “das negativas”, em que Brás Cubas se gaba por tudo o que não foi e não fez, e, finalmente, diz que saiu da vida com um “pequeno saldo” justamente por não ter transmitido “a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”301, aparece, à luz dessa interpretação da tragédia de Brás Cubas, como uma atualização quase literal da sabedoria trágica que, segundo a versão de Nietzsche, o rei Midas teria arrancado a Sileno, companheiro de Dionísio. Escreve o filósofo:

Reza a antiga lenda que o rei Midas perseguiu na floresta, durante longo tempo, sem conseguir capturá-lo, o sábio Sileno, o companheiro de Dionísio. Quando, por fim, ele veio a cair em suas mãos, perguntou-lhe o rei qual dentre as coisas era a melhor e a mais preferível para o homem. Obstinado e imóvel,

o demônio calava-se; até que, forçado pelo rei, prorrompeu finalmente, por entre um riso amarelo, nestas palavras: – Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer o que seria mais salutar para ti não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo

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morrer.

Se, sob um certo ponto de vista, o riso amarelo de Sileno corresponde à tez amarelada e cadavérica de Brás Cubas, por outro lado não se pode negligenciar que o silêncio obstinado do primeiro, que só falou forçado pelo rei Midas, contrapõe-se à loquacidade desenfreada do segundo. Tal loquacidade, por sua vez, se é a marca do Brás Cubas narrador, de forma alguma caracteriza o Brás Cubas personagem, o herói trágico cujas esperanças foram ceifadas pela ironia da ação trágica descrita ao longo desta seção. Em defesa dessa diferença entre narrador e personagem, basta lembrar de seu incômodo e de seu silêncio, dos constantes empacamentos e da “consciência boquiaberta” que marcam os seus reencontros com sua mãe moribunda e Marcela variolada, e os seus encontros decisivos com Eugênia e Virgília. Esses silêncios, apesar de muitas vezes aparecerem encobertos pelas intervenções do narrador, que visam a roubar a dignidade de seu personagem e sobretudo a atrair para si a atenção do espectador, são eloqüentes. Apontam para o drama (trágico) de Brás Cubas, que não é

299 MP, VI, p. 20: “Ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gota de baba de Caim.” 300 MP, VII, p. 24. 301 MP, CLX, p. 173. 302 NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia. São Paulo: Cia. das letras, 1992, p. 36.

anulado pelo simples fato de o “mesmo” Brás Cubas, ao assumir postumamente a posição de narrador, querer empurrá-lo para baixo do tapete da (sua) história. Lida a contrapelo, a história de Brás Cubas não é exatamente a que ele pretende ter nos transmitido.

Tal leitura a contrapelo da ironia da ação trágica que marca o período da vida de Brás Cubas entre as mortes de sua mãe e de seu pai, no entanto, só é possível a partir da “ironia do poeta trágico”, de um tipo de distanciamento irônico-reflexivo que caracteriza tanto o poeta trágico quanto o espectador da tragédia. Como veremos na seção seguinte, o recalcamento do caráter dramático da história de Brás Cubas, que tentamos realçar ao longo desta seção, funda-se na filosofia trágica do Brás Cubas narrador, cujo fim conspícuo, curiosamente, é justamente eliminar de sua narrativa a possibilidade da ambigüidade que caracteriza uma determinada interpretação da tragédia.

Ao tornar-se um espectador de si mesmo, Brás Cubas não quer entrever em nenhum momento de sua vida aquele tipo de abertura que caracteriza a temporalidade própria ao drama, e por isso deixa claro desde a primeira linha que já conhece o fim da sua (e de qualquer) história: a morte. Assim, se a princípio o leitor não pode jamais esquecer que a existência de Brás Cubas como configurada nas Memórias póstumas emana do interesse (melancólico) daquele que a reconstrói postumamente, e da filosofia trágica com que ele pretende formular e justificar a sua disposição afetiva fundamental, tampouco deve esquecer, como mostraremos no fim desse capítulo, que um dos aspectos da “tragédia humana” de que Brás Cubas tanto fala consiste justamente no fato de um homem jamais ter um controle absoluto sobre a sua vida, ou um autor sobre a sua história.

Mas, como diria Brás, não antecipemos os acontecimentos.

3.6. Brás Cubas como tragediógrafo

Sem a ironia da ação trágica, não há tragédia, mas apenas um destino cego. A condição para a configuração de uma verdadeira tragédia é que, em alguma medida, o herói, ainda que sem o saber, cause o seu destino no movimento mesmo de escapar a ele. A ironia da ação trágica, no entanto, para aparecer como tal, depende do distanciamento do poeta ou, conforme o caso, do espectador da tragédia, já que, enquanto as realiza, o próprio herói evidentemente não pode ter consciência da ironia embutida em suas ações. Um reconhecimento precoce demais inibiria a ação e conseqüentemente inviabilizaria a falta trágica (hamartía) da qual depende qualquer tragédia.

Na seção anterior, demos a entender que se pode atribuir a Brás Cubas a responsabilidade pelo seu destino, na medida em que foi seu afã por “fechar o baú com

o problema da vida e da morte”303 , por embotar a própria consciência da finitude constitutiva da existência, que, em sentido contrário ao que ele visava, sempre e de novo fez com que ele deparasse com manifestações cada vez mais concretas e para ele insuportáveis dessa mesma finitude. Não houvesse ele pretendido fechar os olhos ao problema da vida e da morte, talvez ele tivesse conseguido suportar melhor uma visão da vida da qual a morte não está necessariamente excluída.

Ao argumento da seção anterior acerca da responsabilidade de Brás Cubas pelo próprio ocaso, porém, sempre se poderia objetar que, a partir da ótica do personagem, foi sempre o acaso, ou um destino incompreensível, que a tudo comandou. Tudo começou com o cancro de sua mãe, dir-nos-ia ele, pelo qual ninguém em sã consciência tentaria responsabilizá-lo. O mesmo se poderia dizer com relação à sua demora em deixar a Tijuca e o luto, que poderia ser atribuída ou ao acaso de Dona Eusébia haver se mudado em momento inoportuno para a casa roxa ao lado da sua; ou à insistência da mesma Dona Eusébia, que foi buscá-lo no dia seguinte ao de sua primeira visita, instando muito para que ele fosse novamente visitá-las, a ela e à filha. O choque do encontro com a beleza coxa de Eugênia, por sua vez, poderia ser facilmente atribuído ao defeito biológico da moça, aos misteriosos desígnios de uma Natureza que, como frisou

o próprio Brás, “é às vezes um imenso escárnio”.304 Quanto ao reencontro com Marcela variolada, só se teria tornado possível pelo terrível acaso de um relógio quebrado, descuido do qual não está livre nenhum ser humano. E mesmo a alucinação com Virgília, se por um lado tem de ser atribuída àquele que deforma à realidade de acordo com interesses mais ou menos conscientes, por outro pode servir para desresponsabilizar o alucinado, que, como qualquer alienado, não tem como responder pelo teor de sua própria alienação.

Com relação ao problema da responsabilidade de Brás Cubas, o personagem, por sua própria tragédia, portanto, não é possível chegar a uma conclusão satisfatória, já que, onde um leitor enxerga a ação da liberdade, outro, com igual direito, poderia

303 MP, XXV, p. 55. 304 MP, XXXIII, p. 64.

enxergar a ação da necessidade, travestida de acaso ou de absurdo, e outro ainda poderia enxergar uma fusão de ambas. Mas se, de fato, até o episódio da alucinação, é fácil aceitar que os acasos parecem comandar os encontros de Brás Cubas, conduzindo-o, como se fossem expressão do Destino, para a consolidação de sua melancolia, a partir da conversão de Brás Cubas em um inativo (narrador), ocorrida logo após a morte de seu pai, no período em que ele se manteve à margem de tudo, naquela letargia digna de um eremita ou de um defunto (autor), torna-se gritante a impossibilidade de o leitor continuar a sustentar uma identificação simpática com (as peripécias de) o personagem, condição para que ele apareça como um herói trágico.

A partir desse ponto de virada, analisado mais detidamente na seção 2.10., encerra-se a tragédia do personagem Brás Cubas, que, se por um lado é a condição para a inteligibilidade da gênese da posição (melancólica) do narrador Brás Cubas, por outro só se torna ela própria compreensível a partir do distanciamento exigido por esse mesmo narrador, cuja ironia, do capítulo XLVII, em que é enunciada a sua filosofia da ponta do nariz, até o fim do livro, o capítulo das negativas, chegando mesmo até o prólogo metafísico dos primeiros capítulos, dará o tom de sua narrativa.

Tendo em vista a estrutura circular da obra, a compreensão do delírio relatado no capítulo VII, em que Brás Cubas apresenta sinteticamente a filosofia trágica que serviria de base à construção de suas Memórias, aí incluída a tragédia de Brás Cubas analisada na seção anterior, pode ser iluminado não apenas pela interpretação dessa tragédia, mas igualmente por uma consideração atenta daqueles capítulos (XLVII a XLIX) em que ele apresenta explicitamente as bases de sua técnica literária, deixando clara a sua intenção de manipular não apenas o próprio passado, mas as vozes de todos os demais personagens de sua narrativa, inclusive e sobretudo a voz da Natureza, que permaneceria um risco para a sua armação paranóica caso ele permitisse a sua livre expressão. Escreve o narrador:

Nariz, consciência sem remorsos, tu me valeste muito na vida... (...) Essa sublimação do ser pela ponta do nariz é o fenômeno mais excelso do espírito, e a faculdade de a obter não pertence ao faquir somente: é universal. Cada homem tem necessidade e poder de contemplar o seu próprio nariz, para o fim de ver a luz celeste, e tal contemplação, cujo efeito é a subordinação do universo a um nariz somente, constitui o equilíbrio das sociedades. Se os narizes se contemplassem exclusivamente uns aos outros, o gênero humano não chegaria a durar dois séculos: extinguia-se com as primeiras tribos. (...) A conclusão, portanto, é que há duas forças capitais: o amor, que multiplica a espécie, e o nariz, que a subordina ao indivíduo. Procriação, equilíbrio.

Nessa passagem, mais uma vez encontramos em operação o mecanismo de universalização de experiências particulares que caracteriza Brás Cubas, e que não raro tende a converter os seus visos de filósofo em algo bastante próximo do ridículo. Assim, ao contrário da tradição interpretativa machadiana305, que vê em passagens como essa a reiteração da circunspecta influência de Schopenhauer306 sobre Machado de Assis, negligenciando a função específica desempenhada pelas “passagens filosóficas” no âmbito das Memórias póstumas, e assim ferindo grosseiramente a autonomia da obra, parece-nos mais interessante chamar a atenção para o fato de que, embora a contemplação do próprio nariz não seja um fator desprezível na constituição do equilíbrio – e, caberia igualmente lembrar, do desequilíbrio – das sociedades, a afirmação da necessidade de uma negação sistemática da alteridade, que soa problemática quando diz respeito ao “gênero humano”, soa incontestável quando diz respeito à caracterização da posição de Brás Cubas como narrador.

Quando ele afirma que, “se os narizes se contemplassem exclusivamente uns aos outros, o gênero humano não chegaria a durar dois séculos”, basta resistir ao charme de um narrador cujo principal sortilégio é oferecer a seus leitores fórmulas universais sobre tudo, sabedoria barata facilmente ostensível, que logo se tornará patente o fato de que, embora permaneça controversa a questão acerca do caráter ontológico do egoísmo ou do narcisismo universais, não há controvérsia quanto ao fato de que a técnica (literária) de Brás Cubas como narrador consiste em sua excessiva contemplação do próprio nariz, cujo efeito não é outro senão a subordinação do universo a sua perspectiva, a seu interesse fundamental, a sua melancolia, a seu ressentimento.

Ao subordinar todos os personagens de sua narrativa à sua disposição afetiva fundamental, à sua “afeição interior”307, Brás Cubas inviabiliza a possibilidade de novas experiências que, em sentido contrário àquelas vividas entre as mortes de sua mãe e seu pai, pudessem relativizar a verdade de sua melancolia. Da enunciação da “filosofia da ponta do nariz” em diante, o propósito conspícuo de toda a sua narração será o de converter sistematicamente todas as suas lembranças em instrumentos para a

305 Cf. COUTINHO, A. A filosofia de Machado de Assis. Op. Cit. 306 CF. SCHOPENHAUER, A. Metafísica do amor. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 15: “O egoísmo é uma qualidade tão profundamente enraizada em toda individualidade em geral que, para estimular a atividade de um ser individual, os fins egoísticos são os únicos com os quais se pode contar com segurança.” 307 MP, XLVII, p. 77: “Marcela, Sabina, Virgília... aí estou eu a fundir todos os contrastes, como se esses nomes e pessoas não fossem mais do que modos de ser da minha afeição interior.”

comprovação da objetividade de sua melancolia, o que necessariamente implica o esquecimento de episódios que pudessem comprometê-la.

As memórias de Brás Cubas, sob essa ótica, são todo o contrário da memória involuntária comumente referida a Proust. Além de ser rigorosamente comandado por um mecanismo cuja lógica serve implacavelmente à exclusão da alteridade e à imposição da idéia de que a melancolia seria a única resposta condizente com a descoberta do parentesco essencial entre vida e morte, o ato de lembrar que funda a narrativa póstuma de Brás Cubas sopra um “vento morno”308 sobre tudo o que é lembrado. Em sentido inverso ao daquela presentificação radical do passado que é a base do drama trágico, capaz de insuflar vida nos acontecimentos, na medida em que sustenta a identificação entre o espectador e os personagens nele existencialmente engajados – o espectador torce pelos personagens –, as memórias de Brás Cubas podem ser reputadas póstumas em sentido hiperbólico. Não são póstumas apenas porque ele é um defunto autor ou porque póstumo é o caráter de toda memória que se apresenta narrativamente, mas sobretudo porque mortificam tudo o que tocam, ao evocar melancolicamente o caráter derrisório de todo e qualquer engajamento.

A partir da consideração atenta da filosofia da ponta do nariz, em suma, aquilo que sob a ótica do Brás Cubas personagem aparecia como fruto de uma sucessão de acasos, de um destino incompreensível ou de uma Natureza escarninha, passa a aparecer como o resultado de uma técnica narrativa que, alimentada pela melancolia, subordina tudo à visão trágica do mundo que lhe é correlata. Quando Brás Cubas, em outro momento da obra, afirma que “o Destino [é o] grande procurador dos negócios humanos”309, ele sem o saber nos dá a chave para a compreensão de sua posição como narrador, que consiste em deixar com que o Destino, “casualmente”, confirme a sua compreensão melancólica da existência como um “enxurro perpétuo”.

A tragédia de Brás Cubas, sob essa ótica, só pode ser apreendida em toda a sua complexidade quando se depreende o seu caráter radicalmente circular. Por um lado, é a tragédia de um “herói” que, enredado em uma série de experiências absurdas por sua imprevisibilidade, incontrolabilidade e incompreensibilidade, sucumbe no momento em que se deixa tomar pelo peso da melancolia, assim vendo-se constrangido (por essa disposição afetiva) a renunciar a todo e qualquer engajamento existencial. Simultaneamente, por outro lado, é a tragédia de um homem que, tendo sobrevivido à

308 MP, XL, p. 71. 309 MP, LVII, p. 86.

própria queda e vendo-se incapaz de sustentar a sua posição heróica, curva-se à sua melancolia sem de forma alguma curvar-se ao (seu) destino.310

Impossibilitado de engajar-se efetivamente em qualquer ação por força das experiências descritas no capítulo 2 deste trabalho, Brás Cubas, macerado pelo ressentimento, dará o salto que configurará a sua ação como inativo, isto é, a sua ação como narrador, única que ainda julga aceitável, digna de si: da idéia de que sua vida não foi como deveria ser, saltará para a idéia fixa de que a Vida (a Natureza, o Homem) não é o que deveria ser. Essa universalização, que serve de matriz a todas as demais, é o delírio (paranóico) que estrutura a posição do narrador das Memórias póstumas de Brás Cubas, cuja filosofia trágica serve de fio condutor a toda sua narrativa, aí naturalmente incluída – eis a prova da circularidade da obra! – a tragédia de Brás Cubas descrita na seção anterior.

O salto que dá origem a Brás Cubas, repita-se ainda uma vez, deve ser localizado entre a alucinação do personagem diante de Virgília e a enunciação da filosofia da ponta do nariz que caracteriza a técnica literária do narrador. Uma vez que se aceita essa hipótese, podemos retomar as palavras do “defunto autor” no primeiro capítulo das Memórias póstumas, quando ele afirma que para ele “a campa foi outro berço”311, referindo-se aí à sua morte biológica ocorrida em “agosto de 1869”312, e interpretá-las coerentemente com a diferença entre personagem e narrador que vimos tentando caracterizar ao longo de todo este trabalho. Ao fazermos isso, torna-se patente que a segunda vida de Brás Cubas, a sua paradoxal vida de morto, de agente (ator) inativo ou, em suas palavras, defunto autor, teria começado muito antes de 1869, e mais exatamente quando, incapaz de agir em sentido próprio, isto é, de engajar-se existencialmente em qualquer ação, e ao mesmo tempo incapaz de uma inação absoluta, ele passou a agir como se não estivesse agindo, passou a agir como se pudesse

310 Nesse ponto, Brás Cubas, o herói caído, assemelha-se bastante a Édipo, depois de furar os olhos e, pelas mãos de Antígona, ser conduzido ao bosque de Colono, perto de Atenas. Como nos esclarece o grande helenista Erwin Rohde: “Ele [Édipo em Colono] de fato aparece para nós como um sofredor inocente, mas também como um [velho] rabugento de natureza temerária e violenta, vingativo, teimoso, e voluntarioso, que foi antes brutalizado do que enobrecido pelos sofrimentos. (...) Basta apenas ler a peça [Édipo em Colono] sem idéias pré-concebidas, para ver que esse velho passional e selvagem, impiedosamente lançando terríveis maldições sobre seus filhos, vingativamente regozijando-se pela futura infelicidade de seu próprio país, ignora inteiramente ‘a profunda paz vinda dos deuses’ ou a ‘iluminação do sofredor pio’ que a interpretação literária tradicional apressadamente sempre lhe atribuiu. O poeta não é alguém que enfeita as duras realidades da vida com frases banais de insípida consolação. Ele percebeu claramente que o efeito mais comum da infelicidade e da miséria sobre os homens não é o de ‘iluminálos’, mas sim o de debilitá-los e vulgarizá-los.” (Ver ROHDE, E. Psyche: The cult of souls and belief in immortality among the greeks. New York: Harcourt, Brace & Company, 1925, p. 431). 311 MP, I, p. 15. 312 MP, I, p. 15.

permanecer à margem de suas próprias ações, tal qual um observador desinteressado, um simples narrador.

O problema é que, evidentemente, a idéia de uma observação ou de uma ação desinteressadas é tão quimérica quanto a idéia, que até hoje sustenta algumas religiões, de uma inação absoluta. Assim sendo, se a melancolia deve ser vista como o interesse que dá o tom da (pretensa) inação de Brás Cubas, cumpriria perguntar de que modo ela dá igualmente o tom de sua narração.313 Se, de acordo com a filosofia da ponta do nariz, a melancolia de Brás Cubas deve subordinar a si todos os outros interesses, perspectivas e disposições afetivas potencialmente presentes em suas memórias, como é que a antecipação (hipocondríaca) do fim de todas as coisas, manifestação mais imediata da melancolia, aparece narrativamente? Além disso, cumpriria igualmente perguntar o que interessa a esse interesse. Qual é a intenção recôndita em uma universalização absoluta da melancolia, seja como princípio existencial a regular a (in)ação do personagem, seja como princípio literário a regular a (in)ação do narrador?

A última dessas questões já foi respondida, de passagem, na página anterior. Ao afirmarmos que Brás Cubas, após a alucinação com Virgília, curvou-se à sua melancolia sem curvar-se ao (seu) destino, deixamos indicado que, movida por essa melancolia, a idéia fixa que passou a sustentar o sentido de seus dias, e conseqüentemente a sua posição como narrador e personagem, como um personagem com visos de narrador (ou observador distanciado) de si mesmo, foi a idéia de vingança. Brás Cubas toma para si, como ponto de honra, a missão de se vingar da Natureza, de provar que podia ser mais forte do que ela, a qual poderia até lhe destruir, mas jamais lhe vencer. A Natureza, pensada como a personificação da alteridade, de tudo o que sempre escapa à compreensão e ao controle humanos, a inimiga indestrutível, precisava ser domada, silenciada, vencida.

Tomado por essa espécie de volúpia do ressentimento, extrato mais profundo daquela “volúpia do aborrecimento”314 que tantas vezes aparece ao longo das Memórias póstumas, Brás Cubas não quer correr riscos em sua disputa com a Natureza. Assim, quando considerado como personagem das Memórias, sua estratégia, sobretudo após o desfecho da tragédia analisada na seção anterior, é não entregar mais quaisquer frutos à

313 O caráter paradoxal da narração como ação de narrar, que para Brás Cubas corresponde a uma forma de inação, precisa ser investigado melhor adiante. Será que, como parece acreditar Brás Cubas, aquele que narra conseguiria manter-se à margem do poder corrosivo que ele atribui à Natureza, “mãe e inimiga”? 314 MP, XXV, p. 55.

voracidade de sua inimiga, tentando, dentro do possível, não agir, isto é, só agindo na clandestinidade315 ou então quando já é tarde demais316 . Se, por outro lado, consideramos Brás Cubas como narrador das Memórias, ou, para voltar aos termos do título desta seção, como tragediógrafo – portador e divulgador de uma filosofia trágica – , sua estratégia é antecipar-se à voracidade da Natureza, chamando a atenção para o caráter derrisório não apenas de todas as suas ações, mas igualmente das ações dos demais personagens de sua narrativa, que, ao contrário dele, permaneceriam ignorantes de sua condição.

Nesse sentido, o distanciamento inerente à perspectiva do tragediógrafo Brás Cubas, que, querendo denunciar e assim secretamente escapar ao “enxurro da vida”, permanece sempre distante de si mesmo e de qualquer engajamento existencial, permite-nos entrever aquilo que, sob a ótica do herói trágico Brás Cubas, permanecia encoberto: o fato de que a ironia da ação trágica, que converte todo engajamento na vida em um engajamento na morte, não tem nada de natural, e, ao menos no âmbito das Memórias póstumas, dificilmente pode ser atribuída ao destino.

Para o ressentimento e o espírito de vingança de Brás, não bastaria simplesmente, a partir do distanciamento inerente à ironia do poeta trágico (ou narrador), tornar visível a ironia da ação trágica quando ela ocorre, já que, em princípio, ela não precisa ocorrer necessariamente.317 É possível imaginar ações que não operem em sentido inverso ao pretendido. Assim, a única maneira de Brás Cubas garantir a própria vitória sobre a voracidade da Natureza era, como personagem, não engajar-se em nada, e desse modo só lhe entregar frutos podres ou sem valor pessoal; e, como narrador, caricaturar de tal modo a Natureza e sua voracidade de modo a, pelo exagero, tornar visível um processo de corrosão que, muitas vezes, não é perceptível ao longo do tempo de uma vida humana, sobretudo quando esse tempo não é compreendido de modo linear. Com o fito de excluir de sua narrativa qualquer possibilidade de uma ação que não parecesse derrisória aos olhos do leitor, Brás sistematicamente apequena a si mesmo e a todos os demais personagens de sua narrativa e descobre sempre motivos vis por trás de qualquer ação, mesmo as aparentemente mais belas.

315 Veja-se o seu romance com Virgília, absolutamente não oficial, narrado entre os capítulos L e CXIV. 316 Veja-se a sua ridícula entrada para a Câmara dos Deputados, narrada no capítulo CXXVIII, “Na câmara”, em que, ao reencontrar Lobo Neves anos depois do término de seu caso com Virgília, registra o narrador: “A onda da vida trouxera-nos à mesma praia, como duas botelhas de náufragos (...).” 317 Por mais que se defenda a idéia de que a morte, mais cedo ou mais tarde, arrasta a tudo e a todos, o fato é que a sua irrupção não aconteceria sempre tão oportunamente para os propósitos retóricos de Brás se ele não a manipulasse narrativamente como manipula a tudo o mais.

Destarte, pode-se afirmar, a melancolia que, no plano existencial, converte-se em inação, no plano narrativo converte-se em ironia, expressão do fato de que Brás Cubas, derrotado pelo Destino, arrancará a vitória das garras da derrota ao converter-se, ele próprio, em senhor do destino. Pelo menos dos destinos dos personagens de sua narrativa. Ao antecipar compulsivamente o fim de todas as coisas, em imitação caricatural de sua própria representação da Natureza, Brás Cubas aprisiona nas malhas dessa representação aquilo que, por definição, sempre escapa a seu império. Através dos mecanismos de antecipação e universalização que estruturam sua narrativa, Brás Cubas introduz na Natureza uma coerência que, a rigor, ela não tem, e assim restitui a si mesmo aquele controle cuja perda está na origem de sua melancolia. “Vive Deus! eis um bom fecho de capítulo.”318

3.7. Brás Cubas como porta-voz da Natureza

A caracterização de Brás Cubas como tragediógrafo resguarda ao menos dois sentidos distintos. Em primeiro lugar, Brás Cubas pode ser visto como o autor de sua própria tragédia, aquele que, ao recordar postumamente o seu passado, reconstruiu todo um período de sua vida, o período inscrito entre as mortes de sua mãe e de seu pai, de acordo com a estrutura do drama trágico como apresentada por Aristóteles na Poética. Em segundo lugar, Brás Cubas pode ser visto como portador e divulgador de uma filosofia trágica, que, no âmbito das Memórias póstumas, não serve de fundamento apenas à tragédia de Brás Cubas em sentido aristotélico, mas ao todo da obra.

De acordo com a interpretação das Memórias póstumas proposta até aqui, a gênese do tragediógrafo Brás Cubas não pode ser compreendida sem uma atenção à tragédia do herói trágico Brás Cubas, ao passo que esta tampouco pode ser compreendida sem uma investigação do interesse que serviu de fundamento à sua elaboração.

Essa tensão entre autor e personagem ou tragediógrafo e herói trágico, dado o caráter circular da obra, que genialmente encena o caráter circular da interpretação e da memória, preexiste, repita-se, aos pólos por ela engendrados. Tal prioridade ontológica é o que, em larga medida, explica a sensação de artificialidade gerada por uma interpretação das Memórias póstumas que, para expor a (trágica) co-pertinência dos opostos, precisa o tempo todo desatar o nó górdio que os une da única maneira possível,

318 MP, XCIX, p. 129.

a maneira de Alexandre.319 Se a violência, como já se indicou anteriormente, é inerente a toda e qualquer interpretação, então a interpretação mais fiel à obra mesma, a interpretação menos paranóica e mais simpática, será justo aquela que, no movimento de explicitar o sentido da obra, for capaz de explicitar a sua própria paranóia, pondo-se a si mesma em questão.

No caso das Memórias póstumas de Brás Cubas, entretanto, verifica-se um fato curioso: a simpatia implica a paranóia. A simpatia exigida pelo método fenomenológico obriga-nos a explicitar a estrutura paranóica da obra, que, lida a partir de uma identificação com o narrador e um distanciamento com relação ao personagem – o narrador antes de vir a ser o seu conceito –, aparece-nos como comandada por uma idéia fixa que antecede e justifica a idéia fixa que matou Brás Cubas, aquela envolvendo a criação de um “emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade”320 . Trata-se da idéia de que uma visão sem encobrimentos da verdade última sobre a condição humana gera necessariamente a melancolia, que portanto seria a disposição afetiva fundamental da humanidade como um todo, mesmo que, para a maioria dos mortais, não apareça como tal. É, aliás, o fato de que ela permanece encoberta para a maioria que, além de fazer Brás Cubas, na melhor tradição aristotélica321, sentir-se superior a todos os demais, explica a tarefa que ele assume ao redigir as suas Memórias póstumas: revelar a verdade última sobre a trágica condição do homem.

Como os profetas bíblicos, no entanto, Brás Cubas sabe que sua mensagem não chegaria aos ouvidos normalmente moucos a que era endereçada sem a ajuda de um artifício tão duvidoso quanto eficaz. Sabe que, para fazer-se ouvido, não basta (1) enunciar prosaicamente uma verdade, é preciso (2) pregar com o próprio exemplo, sacrificar-se em nome da verdade que se professa. Sabe, ademais, que o próprio exemplo, por mais eloqüente que seja, pode não ser ainda suficiente, e que, para inculcar a verdade que se quer transmitir no espírito de leitores potencialmente resistentes a ela, cumpre ainda (3) universalizar o próprio exemplo, vê-lo monotonamente repetido por tudo e por todos.

319 Como nos relata Plutarco, Alexandre “ocupou a cidade de Górdio (...), onde viu aquela afamada carroça, cujo jugo estava amarrado com uma casca de sorveira. Explicaram-lhe que, segundo uma antiga tradição, tida pelos bárbaros como certa, o destino reservara o império do universo ao homem que desatasse aquele nó. O nó era tão bem feito e se compunha de tantas voltas que não se podia perceber-lhe as pontas. Alexandre (...) cortou-o com um golpe de espada.” (Em: PLUTARCO. Alexandre e César. São Paulo: Ediouro, 2001, p. 53.) 320 MP, II, p. 17. 321 Cf. nota 266.

As Memórias póstumas, lidas como uma peça de retórica, cujo intuito é demonstrar a objetividade da melancolia (de Brás Cubas), são constituídas por três grandes movimentos, que correspondem aos três supramencionados níveis da sabedoria (profética) de Brás Cubas: 1) a apresentação, no prólogo metafísico, e mais especificamente no capítulo do delírio, de uma visão (trágica) da Natureza e da condição humana que, no entender de Brás, deve necessariamente engendrar a melancolia; 2) a confirmação dessa visão trágica na forma de uma tragédia de Brás Cubas, em que, no final, o herói acaba por sucumbir à Natureza e ao peso da melancolia por ela engendrada; e 3) a reiteração dessa visão trágica por meio da demonstração sistemática de que nada escapa à voracidade da Natureza, de cuja ironia, ou escárnio322 , a ironia escarninha de Brás Cubas se fará porta-voz.

O decisivo nesse esboço da estrutura da obra, menos detalhado do que o apresentado na seção 3.4., na medida em que elide a discussão da filosofia da ponta do nariz, condição para a visualização do caráter retórico das Memórias póstumas,éa apreensão da relação necessária entre a melancolia e a ironia. A compreensão do que está em jogo nessa relação, como nos indicou o próprio Brás Cubas em seu prólogo ao leitor, é a chave para a visualização da “obra em si mesma”. Afinal, diz-nos o autor, “escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil entrever o que poderá sair desse conúbio.”323

Ao contrário do que ele ironicamente sugere, é enorme a dificuldade em antever

o que gera e o que é gerado por esse conúbio, na medida em que a relação entre ironia e melancolia não é unívoca, pois, ao contrário da noção de melancolia, que parece ter um significado relativamente estável ao longo da obra, a noção de ironia é radicalmente instável, como aliás já começou a ficar claro a partir da distinção entre a ironia da ação e a ironia do poeta trágico esboçada anteriormente. Assim, na breve reconstrução que se seguirá dos movimentos 1) e 3) das Memórias, mister é atentarmos sempre para o modo como ironia e melancolia podem ser articulados. Cumpre entender de que modo o ânimo pesado (Schwermut) que caracteriza a perspectiva melancólica pode aparecer fenomenologicamente como ironia, ou galhofa – termo irônico em si mesmo, pois designa ao mesmo tempo uma “manifestação alegre e ruidosa” e “uma zombaria

322 MP, XXXIII, p. 64: “(...) a natureza é às vezes um imenso escárnio.” 323 MP, “Ao leitor”, p. 11.

explícita e veemente”, próxima ao “deboche” e sobretudo ao “escárnio”324, como se fosse possível rir simultaneamente com e de alguém.

Diga-se de passagem que, uma vez que se admite a plausibilidade de uma “tragédia de Brás Cubas”, pensada como uma obra redigida por Brás Cubas com o intuito de defender uma filosofia trágica, o riso constante que perpassa as suas palavras pode ser lido como um riso com a Natureza, isto é, um riso que tenta imitar hiperbolicamente o escárnio que Brás lhe atribui; e um riso da Natureza, já que, ao efetuar essa mimese literária do caráter corrosivo da existência, do caráter mortífero da vida, e assim antecipar-se ao inelutável, Brás de algum modo julga poder manter-se superior a ele.

3.8. O sentido retórico-cosmológico do delírio de Brás Cubas

O capítulo do delírio tem um título sugestivo, na medida em que o encontro entre Brás Cubas e Natureza, ou Pandora, é fundamental para a interpretação das memórias póstumas de Brás Cubas como uma armação325, ou, se se preferir, um delírio paranóico, em que todas as peças têm de fazer sentido, onde nada existe por acaso, ou melhor, onde mesmo o acaso é fruto de uma necessidade retórica, a da negação sistemática de uma existência que, dada a sua ambigüidade ou tragicidade, não é o que deveria ser. Esse capítulo, que Eça de Queirós sabia de cor, apresenta a enunciação mais direta da filosofia do trágico que, como expressão discursiva do raciocínio implícito na melancolia de Brás Cubas, dá o tom de toda a sua obra.

O delírio começa quando Brás Cubas, após tomar “a figura de um barbeiro chinês” e logo depois sentir-se “transformado na Suma Teológica de Santo Tomás”, é “restituído à forma humana” e arrebatado por um hipopótamo, em cujo dorso será

324 HOUAISS, A. Op. cit., p. 1419. 325 A compreensão das memórias póstumas de Brás Cubas, e não das Memórias póstumas de Brás Cubas, como uma armação (Ge-stell), ou, na tradução brasileira de Heidegger, como uma com-posição paranóica, surgiu da leitura de seu texto “A questão da técnica”, em que ele afirma que “a essência da técnica moderna se mostra no que chamamos de com-posição”, isto é, no “apelo de exploração que reúne

o homem a dis-por do que se des-encobre como dis-ponibilidade”. A idéia de Ge-stell interpreta a necessidade humana de instrumentalizar tudo, de dis-por de tudo, como o sintoma do afã de um controle absoluto da natureza que inviabilizasse experiências da finitude como as vivenciadas por Brás Cubas ao longo de sua tragédia. A técnica literária do defunto autor, sob essa ótica, aparece como uma armação, ou armadura, cujo propósito é, pela antecipação, inviabilizar ou ao menos despotencializar a irrupção da Morte, do Outro, do Real, do Inominável, do Horror, do Negativo, ou, nos termos das Memórias, da Natureza. (Cf. HEIDEGGER, M. “A questão da técnica”. Em: Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2005, ps. 11-38.)

conduzido “à origem dos séculos”.326 “O silêncio daquela região era igual ao do sepulcro”, escreve o defunto autor, “dissera-se que a vida das coisa ficara estúpida diante do homem”.327

Ao descrever essa região, em que as coisas negam-se à voracidade hermenêutica do homem, opondo o seu silêncio à nossa loquacidade, Brás compara esse silêncio àquele do sepulcro, remetendo a imaginação do leitor para a visualização do parentesco essencial entre a morte como fim biológico e a morte como experiência da finitude da compreensão humana, que, como tal, é indissociável da própria vida. Essa comparação será reforçada logo em seguida, quando a personificação da vida, que é também a da morte, aparece em uma “figura de mulher”, reportando o leitor – ao menos o leitor deste trabalho – para a lembrança de que, ao longo das Memórias póstumas, todos os encontros de Brás Cubas com a morte tiveram sempre um nome de mulher: Eugênia, Marcela, Virgília... Escreve o narrador:

(...) um vulto, uma figura de mulher me apareceu então, fitando-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano (...). Estupefato, (...) perguntei quem era e como se chamava: curiosidade de delírio.

– Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga. (...) Não te assustes – disse ela – minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se afirma. Vives: não quero outro flagelo. (...)

Dizendo isto, a visão estendeu o braço, segurou-me pelos cabelos e levantou-me ao ar, como se fora uma pluma. Só então pude ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma contorção violenta, nenhuma expressão de ódio ou ferocidade; a feição única, geral, completa, era a da impassibilidade egoísta, a da eterna surdez, a da vontade imóvel. (...) Ao mesmo tempo, nesse rosto de expressão glacial, havia um ar de juventude, mescla de força e viço, diante do qual me sentia eu o mais débil dos seres.328

A figura de Natureza, ou Pandora, concentra uma série de ambigüidades. Ela é mãe, e simultaneamente inimiga; dá a vida, e simultaneamente a morte; tem uns olhos rutilantes como o sol e ao mesmo tempo uma expressão glacial; transmite “o pão da dor e o vinho da miséria”329 que levariam a uma negação da vida, mas ao mesmo tempo a vontade de viver; traz na sua bolsa, em suma, “os bens e os males, e o maior de todos, a esperança, consolação dos homens”330, que, como é de seu feitio, não deixa claro se é um bem ou um mal. Por isso, como no mito grego, se chama Pandora.

326 MP, VII, 22s. 327 MP, VII, p. 24. 328 MP, VII, p. 24. 329 MP, VII, p. 24. 330 MP, VII, p. 25.

O fato de ser uma figura eminentemente ambígua, e como tal inapreensível, somado à sua “impassibilidade egoísta” e à sua “eterna surdez” é o que lhe converte na origem da tragédia, já que sua absoluta indiferença com relação aos feitos dos homens confere a suas existências uma imprevisibilidade e uma incontrololabilidade que antecedem, histórico-filosoficamente, a vitória (definitiva) dos Olímpicos sobre os Titãs, de Zeus sobre Cronos, da ordem sobre o caos, das formas sobre o informe, ou, em termos nietzscheanos, de Apolo sobre Dionísio.331 Natureza, ou Pandora, sem poder ser reputada má por trazer a morte e tampouco boa por dar a vida, com seu “rosto de expressão glacial”, serve de fundamento a uma compreensão da existência para além do bem e do mal, a uma compreensão da vida que recusa qualquer justificação moralista, qualquer ilusão de uma coerência necessária entre um ato e seus possíveis resultados. Natureza, ou Pandora, poderia ainda receber o nome de Bárbara, que designa tanto uma espécie de violência (ou crueldade) pré-civilizada, quanto o que é hiperbolicamente admirável.

Essa bárbara ambigüidade inerente à Natureza é o que Brás Cubas se recusa a entender e muito menos a suportar. Quando a Natureza lhe pergunta se ele entendera quem ela era, segue-se uma resposta exasperada: “Natureza, tu? a Natureza que eu conheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um flagelo, nem, como tu, traz esse rosto indiferente, como o sepulcro.”332 A Natureza que Brás conhece, ou melhor, que Brás gostaria de ter conhecido, a Natureza como a Natureza deveria ser, é uma Natureza absolutamente livre dessa co-pertinência dos opostos, dessa ambigüidade que é a marca do trágico. Antecipa-se, aqui, em uma construção apodíctica, o que, após a descoberta da imperfeição (natural) de Eugênia, irrompe amargamente em forma de interrogação: “Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita?”333 Brás Cubas, e por ora não importa se em um movimento ideologicamente insidioso ou não334, não suporta que a natureza não seja natural. Não aceita que natural não é o que nos parece natural, mas o que parece natural à Natureza.

331 Cumpre notar que, para Nietzsche, a pretensa vitória de Apolo sobre Dionísio, almejada e propiciada pelo moralismo socrático, faz perecer, ao anular a tensão que os constitui a ambos, também Apolo. 332 MP, VII, p. 25. 333 MP, XXXIII, 64. 334 Vale lembrar que, depois dos livros de Roberto Schwarz, nenhuma descrição da filosofia trágica de Brás Cubas pode se deixar levar inteiramente pela identificação com o protagonista. Assim, por mais que, a essa altura de nossa análise, estejamos privilegiando a sua voz, não podemos esquecer que o movimento de naturalização dos processos sociais – que por exemplo o levaram a converter o nascimento espúrio de Eugênia em um defeito natural – é um dos pilares da ideologia (conservadora) do narrador.

Esta, reconhecendo a profunda lascívia de seu interlocutor, que, como o filósofo da alcova de Sade, não aceita nada menos do que tudo, acaba por lhe descortinar, como que inadvertidamente, a única saída para uma condição (humana) que lhe parece humilhante, já que conspurcada por uma inaceitável ambigüidade. Fala a voz da Natureza: “(...) eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu estás prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada.”335

A voluptuosidade do nada: eis o fundamento daquela “sensação única” que, mais adiante na narrativa, Brás Cubas identificaria como uma das “sensações mais sutis desse mundo e daquele tempo”, a “volúpia do aborrecimento”.336 Diante da constatação do caráter insuperavelmente ambíguo de tudo que é, o que resta a um grande lascivo como Brás Cubas senão a tentativa de escapar a essa ambigüidade refugiando-se no nada? Se tudo o que é tende inexoravelmente a não ser, só o que, por definição, já sempre não é pode sustentar a plena identidade consigo mesmo. Tendo em vista que Brás Cubas só reconhece como natural e desejável aquilo que permanece sempre idêntico a si mesmo, nada que é pode satisfazer-lhe. Assim, se o aborrecimento, se o tédio, se nada fazer aparecerá como a única resposta existencial condizente com a sua visão da Natureza, fazer nada – denunciar, amplificar e antecipar o movimento de nadificação do nada em meio ao que é – aparecerá como a única ação que lhe resta diante da impossibilidade de nada fazer absolutamente.

Fazer nada, gozar com a antecipação da morte na vida, produzir artificial ou artisticamente o fim de tudo será então a única ação que um “homem esclarecido” com relação à sua própria condição, a saber, que um homem melancólico aceitará desempenhar, e tudo o mais lhe aparecerá como humilhação. Em vez de esperar que a Natureza o obrigasse a devolver para ela a vida que (transitoriamente) lhe emprestara, Brás irá antecipar-se a essa inexorável cobradora, assim anulando ou ao menos diminuindo a dor oriunda de suas sempre inesperadas pancadas à porta. A melancolia, como fundamento dessa antecipação, dessa incapacidade de volver os olhos do passado em direção ao futuro sem aquele trincar de dentes ou aquela contração cadavérica própria aos defuntos, não deve entretanto ser pensada como uma idiossincrasia ou mesmo uma patologia de Brás Cubas, mas – ao menos é isso que ele nos quer (retoricamente) dar a entender – encontra sua justificação no modo de ser objetivo da própria Natureza, óbvio para quem não se esquiva a encará-la face a face.

335 MP, VII, p. 25. 336 MP, XXV, p. 55.

Ao fazê-lo, Brás, em movimento (afetadamente) inverso ao da maior parte do livro, pede-lhe “com olhos súplices (...) mais alguns anos”, ao que ela responde, simultaneamente calando suas delirantes pretensões e restituindo-lhe em frases sintéticas o sumo de sua filosofia do trágico, de sua “voluptuosidade do nada”:

– Pobre minuto! – exclamou. – Para que queres tu mais alguns instantes de vida? Para devorar e seres devorado depois? Não estás farto do espetáculo e da luta? (...) Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jucundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste. (...) Sobe e olha.337

O trágico, como nos indica a fala da Natureza, é o tempo: o fato de que cada minuto a mais (de vida) é simultaneamente um minuto a menos (de vida). Esse fato é o que permite falar em uma ironia (trágica) da Natureza, na medida em que, como o tropo retórico da inversão de sentido, todo vir-a-ser é simultaneamente um vir-a-não-ser. “Objetivamente” falando – como o delirante Brás, ao personificar a Natureza ou ao assumir a posição de defunto (ou) narrador, pretende poder falar –, nada distingue viver de morrer. Que a vida em flor venha sempre conspurcada pelo verme da morte é o que Brás Cubas não consegue suportar. Eis a sua idéia fixa, a dor que lhe rói... e impulsiona. Como ele próprio nos dirá em momento posterior da obra:

Ouvi as horas todas da noite. Usualmente, quando eu perdia o sono, o bater da pêndula fazia-me muito mal; esse tique-taque soturno, vagaroso e seco parecia dizer a cada golpe que eu ia ter um instante menos de vida. Imaginava então um velho diabo, sentado entre dois sacos, o da vida e o da morte, a tirar as moedas da vida para dá-las à morte, e a contá-las assim:

– Outra de menos...

– Outra de menos...

– Outra de menos...

– Outra de menos...

O mais singular é que, se o relógio parava, eu dava-lhe corda, para que ele não deixasse de bater nunca, e eu pudesse contar todos os meus instantes perdidos.338

Naturalmente, a ironia da ação trágica, indissociável do devir da Natureza (ou do tempo), só pode ser percebida a partir daquela espécie de distanciamento que caracteriza a perspectiva daqueles que não se deixam enganar pela conjuntura presente, que surpreendem um sentido outro para além daquele que imediatamente se apresenta, que, ao verem aflorar a vida, não negligenciam o vir-a-ser de seu contraponto. Esse distanciamento constitui um segundo nível de ironia, a ironia do poeta trágico, ou, no

337 MP, VII, p. 25. 338 MP, LIV, p. 84.

caso das Memórias póstumas, do narrador. Esse segundo nível de ironia, como vimos anteriormente, não apenas condiciona a apreensão do primeiro, como, ao contrário deste, permanece contingente. Alguns homens, como Brás Cubas, entendem a piada; outros, a maioria, não. É que, para entendê-la no sentido em que Brás Cubas a entende, cumpre obedecer o imperativo da Natureza, cumpre olhar a vida como quem colocado fora dela, à distância. Quando Brás Cubas, após a alucinação com Virgília, e a despeito de si mesmo, “sobe e olha”, aquela visão, se a princípio lhe causa unicamente a volúpia do aborrecimento, logo enseja o aparecimento da voluptuosidade do nada, e lhe dá ganas de dar corda ao relógio, “para que ele não deixasse de bater nunca, e eu pudesse contar todos os meus instantes perdidos”. A ambigüidade no emprego do verbo contar, nessa passagem, aponta para o terceiro e último nível da ironia (de que Brás Cubas ainda é consciente): a ironia de quem, ao contar os próprios instantes perdidos, não apenas faz questão de enumerá-los para si, mas de contá-los para os outros, e assim convencê-los de que “a vida” tem “uma regularidade de calendário”. Conta-nos ele:

Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. (...) Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim – flagelos e delícias –, desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. (...) A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura – nada menos que a quimera da felicidade – ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão.339

O que ressalta na descrição de Brás Cubas do desfile dos séculos é o ritmo curto e monocórdio com que ele enumera os motivos que sempre teriam dado um sentido à vida dos homens em sua eterna corrida atrás da “quimera da felicidade”. Nessa enumeração, cobiça, cólera, inveja, trabalho, ambição, fome, vaidade, melancolia, riqueza e amor são contados como se fossem moedas de igual valor, todas fadadas a cair nas mãos do “velho diabo” citado há pouco, que tira essas “moedas da vida para dá-las à

339 MP, VII, p. 26.

morte”. Se, como já se sugeriu, o cerne do delírio de Brás Cubas é a idéia de que trágico é o tempo340 – o tempo que subsiste na forma de uma Natureza implacável que a tudo consome para conservar sempre o seu “ar de juventude, mescla de força e viço” –, cumpre concluir a partir da descrição acima que, para ele, não é possível conceber o tempo senão como uma sucessão de instantes homogêneos, cujas duração e textura não são alteradas de acordo com as mudanças nos projetos humanos. Se tudo dura o mesmo tempo, tudo tem o mesmo valor, ou seja, valor nenhum. “A vida tinha assim uma regularidade de calendário, fazia-se a história e a civilização (...), as gerações se superpunham as gerações, umas tristes, como os Hebreus do cativeiro, outras alegres, como os devassos de Cômodo, e todas pontuais na sepultura.” Se, não importando o que se faça e como se faça, a sepultura chegará sempre pontualmente, revelando o caráter perpetuamente fugaz e escarninho da felicidade, as ações ficam privadas de sentido e ridículos os homens que ainda insistem em agir.

A crença na homogeneidade do tempo, porém, só se torna possível a partir do distanciamento irônico com relação a todas as razões de viver forjadas pelos homens. Esse distanciamento irônico, por sua vez, pressupõe uma inibição de toda e qualquer ação que, a partir da descrição do desfile dos séculos feita por Brás Cubas, aparece como uma exceção. Em geral, as supracitadas razões de viver agitam o homem, “como um chocalho”, e, enquanto permanece agitado, o homem de forma alguma percebe o tempo homogeneamente. Um minuto de fome e um minuto de abundância não têm apenas durações diferentes, mas incomensuráveis.

Assim, o que a retórica delirante de Brás Cubas nos quer apresentar como a imagem objetiva da própria Natureza, devemos ouvir como uma excelente descrição da imagem da natureza de Brás Cubas como narrador, calcada em sua peculiar experiência do tempo. A compreensão de Brás Cubas como narrador, se nos é permitida uma reconstrução de nossos argumentos até aqui não menos delirante do que a dele, depende de uma atenção à seguinte ordem de razões, a partir da qual, espera-se, a circularidade da obra acabará por aparecer de modo... incontestável: 1. a melancolia que tomou Brás Cubas após a morte de sua mãe e dele se apossou definitivamente após a morte de seu pai é o fundamento de sua inação; 2. essa inação é a condição para o seu distanciamento

340 MP, VII, p. 25: “O minuto que vem é forte, jucundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste.” Essa descrição do trágico talvez possa ser iluminada pelo fragmento LXII de Heráclito, que diz: “Imortais mortais, mortais imortais, vivendo a morte destes, morrendo a vida daqueles.” (Em: Heráclito: Fragmentos contextualizados. Rio de Janeiro: Difel, 2002, p. 206).

irônico; 3. o seu distanciamento irônico é a condição para o seu surgimento como narrador; 4. a sua posição ironicamente distanciada como narrador é a condição de sua percepção da homogeneidade do tempo; 5. a sua percepção da homogeneidade do tempo é a condição de sua visão da irônica tragicidade da própria Natureza; 6. a sua visão da irônica tragicidade da própria Natureza é a condição de seu ressentimento; 7. o seu ressentimento com relação a uma Natureza que não é o que deveria ser é a condição de sua melancolia. 8. a melancolia é o fundamento de sua inação...

Se, por um lado, o item 8 aparece como uma simples repetição do item 1, assim corroborando a pertinência de uma leitura circular das Memórias póstumas de Brás Cubas, por outro a retomada da idéia de que a melancolia seria o fundamento do “cheiro de sepulcro”341 que perpassa o romance traz em seu bojo uma diferença sutil, mas crucial. Se, na primeira volta da (nossa) leitura, a melancolia aparecia como uma disposição afetiva que se abateu sobre Brás Cubas, a cujo peso ele não foi capaz de reagir, convertendo-se à revelia em um inativo, em um homem que passou a viver como um defunto, na segunda volta da (nossa) leitura a melancolia aparece como a disposição afetiva que mais bem expressa a sua filosofia do trágico, que portanto deve ser pensada como a disposição afetiva, que, ao contrário de o abater, é aquela em nome da qual ele se bate. Se, na primeira volta da (nossa) leitura, a identificação com o personagem fazia com que ele nos aparecesse como um herói trágico, um culpado inocente, na segunda volta da (nossa) leitura, a identificação com o narrador faz com que ele nos apareça como uma espécie de guerreiro em uma cruzada contra a Natureza, que, sendo “mãe e inimiga” quando deveria ser “só mãe, não inimiga”, não pode escapar impunemente. Se, na primeira volta da (nossa) leitura, a ênfase recaiu sobre a inação de Brás Cubas, na segunda volta é preciso que ela recaia em sua reação.

Nessa reação, a inação é sem dúvida uma das armas empregadas pelo narrador, mas não a única, nem tampouco a principal. Se a dor que o dilacera e ressente brota da trágica ambigüidade inerente à Natureza, que é “a vida”, mas “também a morte”, e que assim não raro escarnece das tentativas humanas de controle e previsão, a única maneira de dar o troco, de em certa medida controlar o incontrolável, é se antecipar à voracidade da Natureza, ser mais voraz do que ela. Se a ironia, no entender de Brás Cubas, é o traço fundamental de uma Natureza essencialmente ambígua, a única maneira de eliminar

341 MP, LXXI, p. 102: “Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica (...).”

essa ambigüidade e assim estabilizar o sentido dos acontecimentos “naturais”, tornando-os previsíveis, é utilizar a ironia de modo ainda mais sistemático do que a própria Natureza a utiliza, assim vencendo-a com suas própria armas.

Por isso é possível afirmar que a ironia de Brás Cubas, mimese da ironia que ele atribui à Natureza, será a principal arma em sua rebelião contra a Natureza e simultaneamente seu principal instrumento retórico para a demonstração da verdade de sua melancolia. Brás sabe que não basta vencer, que é preciso também convencer (os outros homens). Para obter essa vitória, ele não hesitará, como o Calígula de Camus, em sacrificar a própria vida, escrevendo a sua biografia de modo a eliminar dela mesmo aqueles acontecimentos que, por um motivo ou por outro, porventura pudessem escapar à voracidade da Natureza. A ironia de Brás Cubas é portanto a armadura intransponível que ele pretende ter construído para si. Uma armadura que, ao menos em sua segunda vida, sua vida de narrador, de defunto autor, nem mesmo a onipotente Natureza conseguiria atravessar. Isso, pelo menos, é o que ele espera. Terá conseguido?

3.9. O crepúsculo dos ídolos

A análise do capítulo do delírio explicitou de que modo o ressentimento de Brás Cubas com relação a uma Natureza que não é o que deveria ser aparece, ao longo das Memórias póstumas, como o traço mais saliente de sua melancolia. Essa articulação entre melancolia e ressentimento, se por um lado é evidente – a melancolia sempre se refere a um sentir de novo, a um re-sentir como atual e insuportável uma dor passada que, em princípio, deveria ter ficado para trás ou ao menos perdido aquela intensidade paralisante –, por outro é menos visível, na medida em que as representações tradicionais da prostração melancólica, como a de Dürer, por exemplo, tendem a encobrir o trincar de dentes e a ira que, ao menos no caso de Brás Cubas, estão associados ao temperamento melancólico. Essa face irada do ressentimento melancólico, porém, não escapou a Aristóteles, que, ao descrever os comportamentos relacionados à bile negra, anotou:

Como o efeito da bile negra é a cada vez distinto, os melancólicos são também diferentes, pois a bile negra pode ser muito fria ou muito quente. Como a bile negra determina o caráter – pois o quente e o frio são, em nós, o mais determinante para o nosso caráter –, ela atua como o vinho. De acordo com a quantidade em que o ingerimos, ele produz em nós efeitos diferentes. (...) Quando ultrapassa a reta medida, e o seu aspecto frio se radicaliza, ela produz paralisia, depressão e estados de medo excessivo. Quando, porém, ultrapassa a reta medida, e o seu aspecto quente se radicaliza, tendo em vista que o calor se encontra perto do lugar do entendimento, o melancólico é assaltado por ataques de raiva e loucura (...).342

Em termos aristotélicos, poder-se-ia dizer que as duas estratégias de Brás Cubas para se relacionar com a dor decorrente de sua descoberta da ambigüidade, ou tragicidade, inerente à Natureza correspondem às duas temperaturas da bile negra acima mencionadas. Se a inação de Brás Cubas corresponde ao esfriamento excessivo de sua bile negra, a sua reação corresponde a seu esquentamento excessivo, o qual, ainda segundo Aristóteles, teria levado até mesmo um herói como Hércules a sacrificar os seus próprios filhos343 – em movimento aliás não muito distinto do pretensamente realizado por Brás.

Tendo em vista que, segundo o próprio narrador, sua obra teria sido escrita “com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”344, a superação de uma oposição simples entre a galhofa como princípio formal e a melancolia como conteúdo das Memórias póstumas depende da possibilidade de reconhecermos a imbricação entre frio e quente, ou inação e reação, também na galhofa que Brás Cubas reivindica como o marco fundamental de sua pena, ou estilo.

Supondo, como supomos aqui, que a galhofa de Brás Cubas pode ser rebatizada como ironia, conceito que resguarda tanto aquela aparência de alegria quanto o fundo escarninho facilmente associáveis à galhofa, além de, fazendo jus à descrição aristotélica, ter uma relação mais direta com o “entendimento”, não é difícil perceber que os dois níveis da ironia trágica até agora discutidos correspondem fielmente aos dois extratos da melancolia que configuram a posição do narrador das Memórias póstumas. À inação de Brás Cubas, àquilo que mais propriamente o converte em um homem que vive friamente distanciado de qualquer engajamento existencial, como se fosse um mero observador, narrador ou defunto, corresponde a ironia do poeta (ou espectador) da tragédia, pensada como a capacidade (ou a maldição) de entrever, em tudo o que se mostra, aquilo que imediatamente não se mostra; em tudo o que vive, o “cheiro de sepulcro”.345 À reação de Brás Cubas, por outro lado, que, nutrindo-se do “calor que se encontra perto do entendimento”, é eminentemente paranóica –

342 ARISTÓTELES. Problema XXX. Em: KLIBANSKY, R; PANOFSKY, E; SAXL, F. Saturn und Melancholie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1992, p. 59. 343 Ibidem: “Por que todos os homens que foram excepcionais (perittoi) no que concerne à filosofia, à política, à poesia ou às artes aparecem como seres melancólicos, ao ponto de serem tomados pelas enfermidades oriundas da bile negra, como o que se diz de Hércules nos mitos heróicos?” 344 MP, “Ao leitor”, p. 11. 345 MP, LXXI, p. 102.

intelectual, intencional, sistemática e delirante346 – corresponde a ironia da ação trágica, que, se a princípio é o traço fundamental que ele julga reconhecer na Natureza, logo será apropriada por ele. Seu estilo como narrador, repitamo-lo ainda uma vez, será fruto desse movimento de apropriação, radicalização e estabilização da ironia da ação trágica que atribui à Natureza. Assim, irado frente à impossibilidade de agir, pois isso implicaria seguir desempenhando papéis ridículos na existência, a única ação a que ele irá ater-se será a denúncia, a destruição de todos os ídolos, de todas as ilusões que pretensamente dariam um sentido à sua vida – caso ele seguisse puerilmente os ditames de sua sociedade – e à de seus contemporâneos.

Esse crepúsculo dos ídolos, em que a ironia corrosiva de Brás Cubas ganha o proscênio, ocupa ao menos dois terços das Memórias póstumas, ao longo dos quais o narrador, inebriado pela voluptuosidade do nada, usará o seu martelo para destruir sistematicamente os pés de barro dos deuses de sua sociedade. Descrever uma a uma as marteladas dadas por Brás Cubas nos valores supremos de seus contemporâneos “seria curioso, mas nimiamente extenso – e aliás desnecessário ao entendimento da obra”347 . Por ora, será suficiente analisar brevemente três exemplos, extraídos da longa lista de ídolos derrubados pela ironia de Brás Cubas que expusemos na seção 3.4.

Dada a sua importância na construção das Memórias póstumas, eo fato de ocupar quase metade dos capítulos da obra, a relação, de início oficial e logo clandestina, entre Brás Cubas e Virgília não pode ser negligenciada em nossa análise do cáustico funcionamento da ironia do narrador. Como já foi indicado, para derrubar um dos deuses mais populares de sua sociedade – o amor348 –, Brás irá valer-se basicamente de duas estratégias: a antecipação (melancólico-hipocondríaca) da decadência e finalmente da morte de todas as coisas; e a aplicação daquela filosofia universalizante segundo a qual os homens seriam essencialmente egoístas e imorais, e as belas aparências, portanto, um mero engodo que só é capaz de enganar a quem ainda não escapou ao “olhar da opinião”.349

346 Cf. SHAKESPEARE, W. Hamlet. Porto Alegre: LP&M, 2001, p. 48. “POLÔNIO (À parte, referindo-se a Hamlet): Loucura embora, tem lá o seu método.” 347 MP, “Ao leitor”, p. 11. 348 Cumpre lembrar que uma das características que, segundo a crítica tradicional, marcam a transição de Machado de Assis, de uma primeira fase pretensamente romântica, que se encerraria com Iaiá Garcia (1878), para uma segunda fase essencialmente realista, inaugurada pelas Memórias póstumas (1881), é a guinada em sua visão do amor e sobretudo do casamento, que, se na primeira fase de sua produção, ainda era visto como potencialmente redentor, na segunda fase é encarado sob a égide de uma associação estrita entre matrimônio e patrimônio. 349 MP, XXIV, p. 54.

A primeira menção à Virgília, como uma das “nove ou dez pessoas” presentes ao seu enterro, uma “anônima que padeceu mais do que as parentas”350, ocorre já no capítulo que abre as memórias de Brás Cubas, como uma espécie de isca para aguçar a curiosidade do leitor. Sem dizer o nome daquela senhora, mas comprazendo-se com uma série de indicações pouco sutis de que teriam sido amantes, Brás encerra provisoriamente o assunto com as seguintes considerações:

‘Morto! morto!’, dizia consigo.

E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu

desferirem o vôo desde o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e

dos tempos – a imaginação dessa senhora também voou sobre os destroços

presentes até às ribas de uma África juvenil... Deixá-la ir; lá iremos mais

tarde; lá iremos quando eu me restituir aos primeiros anos.351

Tendo em vista que a descrição de sua relação com Virgília ocuparia quase a metade do livro, não é de somenos importância que o narrador comece-a chamando a atenção para o descompasso, baseado na idéia do tempo como ruína, entre os “destroços presentes” e as “ribas de uma África juvenil”. Quebra-se assim, desde o primeiro capítulo da obra, aquela ilusão de eternidade – ainda que seja a eternidade daquele célebre poema de Vinícius – que é inerente ao engajamento amoroso, e, em certo sentido, fundamental para o engajamento do leitor nos dramas amorosos à base dos romances românticos. Se, como mostramos anteriormente, há um período da vida de Brás Cubas que ele apresenta de maneira mais dramática do que narrativa, este decerto não é o período do florescimento e da morte de seu caso com Virgília.

A compulsão à antecipação do fim de todas as coisas, que está à base da opção do narrador por começar suas memórias pela descrição da própria morte, encontra na história de sua principal ligação amorosa a concretização mais sistemática. Já na segunda referência a Virgília, que ocorre ainda no prólogo metafísico da obra, como o intitulamos na seção 3.4., Brás, imediatamente após uma breve menção à fragilidade da existência e (implicitamente) à dor que sente face a ela – “vinha a corrente de ar, que vence em eficácia o cálculo humano, e lá sei ia tudo” –, põe em obra o mecanismo (irônico) que procura mitigar essa dor pela sua antecipação, deixando claro ao leitor que

350 MP, I, p. 16. 351 MP, I, p. 16.

não vale a pena sofrer por amor se, no final de tudo, no leito de morte, a visão do grande amor será sempre a de uma ruína; quando muito, a de uma “imponente ruína”.352

Após a descrição do destino inexorável de todo e qualquer amor – “o tempo (...) é o ministro da morte”353 –, destino que, assim o entende Brás, priva-o de seus sentido e valor – “De dois grandes namorados, de duas paixões sem freio, nada mais havia ali, vinte anos depois; havia apenas dois corações murchos, devastados pela vida e saciados dela, não sei se em igual dose, mas enfim saciados.”354 –, ele dá a deixa para a compreensão daquilo que, até o final do livro, haveria de comandar a sua memória, e não apenas as lembranças do caso com Virgília. Escreve o moribundo: “(...) eu, prestes a deixar o mundo, sentia um prazer satânico em mofar dele, em persuadir-me que não deixava nada.”355

O problema é que, no âmbito de sua compulsão à antecipação, “prestes a deixar

o mundo” estamos desde que começamos a respirar, de modo que “mofar” do mundo é

o único prazer que lhe parece possível e aceitável.

A importância dessa passagem para a compreensão das Memórias póstumas não pode ser superestimada, mas, atendo-nos exclusivamente à relação entre Brás e Virgília, é notável como ela antecipa o episódio da alucinação. Quando daquela alucinação, decisiva para o arraigamento definitivo da melancolia como sua disposição afetiva fundamental, o jovem Brás teoricamente ainda não seria um moribundo, e a pele de Virgília era ainda lisa como o mármore. O que sobrevém então? Brás encara-a e, com trinta anos de antecedência, projetando em sua pele a varíola de Marcela – outra das metáforas do narrador para falar do “ministro da morte” –, vê uma mulher arruinada, diante da qual ele não é capaz de esconder um “gesto de repulsa”.356

O que, naquele momento, não passara de alucinação, converte-se em verdade objetiva no fim da história, quando Brás e Virgília se reencontram em seu leito de morte. “A mais formosa dama entre as contemporâneas suas” acabara, de fato, transformando-se em uma “imponente ruína” e assim confirmando a intuição contida na

352 MP, V, p. 20: “Tinha saúde e robustez. (...) Vinha a corrente de ar, que vence em eficácia o cálculo humano, e lá se ia tudo. Assim corre a sorte dos homens. Com esta reflexão me despedi eu da mulher, não direi mais discreta, mas com certeza mais formosa entre as contemporâneas suas, a anônima do primeiro capítulo, a tal, cuja imaginação, à semelhança das cegonhas do Ilisso... Tinha então 54 anos, era uma ruína, uma imponente ruína.” 353 MP, VI, p. 20. 354 MP, VI, p. 21. 355 MP, VI, p. 22. 356 MP, LXI, p. 72.

alucinação de Brás. No fim das contas, portanto, alucinado embora, ele tinha razão – como sempre.

O fato de que, na construção das Memórias póstumas, o fim venha antes do começo, a morte antes do nascimento, é mais um indício de que a obra reproduz narrativamente a própria dinâmica da melancolia, sob cuja égide a visão do que ainda pulsa vem sempre conspurcada pela antecipação irônica357 do espasmo final. Esse fato, naturalmente, tem também uma intenção retórica, na medida em que, sub-repticiamente,

o leitor é levado a (re)encontrar na biografia de Brás a confirmação da filosofia do trágico apresentada diretamente no prólogo metafísico da obra, o que lhe confere, digamos assim, uma autoridade existencial que o mero relato da visão da Natureza como “mãe e inimiga” não teria.

O rebaixamento do valor do amor, que, de depositário do sentido da vida, a ironia de Brás Cubas converte em uma ilusão tão transitória quanto vã, torna inviável tomá-lo a sério, o que justifica por que Brás Cubas não poderia ter se casado com Virgília. Perdê-la, como mostramos na última seção do capítulo anterior, foi uma espécie de vitória sobre Lobo Neves e, mediatamente, sobre a Natureza, na medida em que, assim pensa Brás Cubas, só um tolo poderia assumir qualquer compromisso eterno face a uma Natureza que a tudo devora e corrói.358

Se não pode ser tomado a sério, experimentado como uma força capaz de roubar à vida o seu absurdo – nenhuma força o é, pensa Brás –, ainda assim o amor pode ter alguns usos: é inegavelmente um passatempo dos mais divertidos, espécie de antídoto contra o tédio que acomete o melancólico que recusa qualquer verdadeiro engajamento; além disso, agora rebaixado pela narrativa de Brás a sua “dimensão real” de caso amoroso, de affaire, o “amor” satisfaz a vaidade humana, sobretudo quando se trata de um caso com uma mulher casada, que permite a afirmação da própria superioridade sobre os outros homens – no caso, a vingança sobre Lobo Neves, “um homem que não era mais esbelto do que eu, nem mais elegante, nem mais lido, nem mais simpático, mas todavia foi quem me arrebatou Virgília e a candidatura”.

357 Na realidade, só se depreende a importância da ironia, ao menos de um de seus níveis, nas Memórias póstumas, quando se percebe que o mecanismo de antecipação que as constitui é essencialmente irônico, na medida em que inverte o significado daquilo que é narrado: o vivo ganha a marca do morto; o nobre do abjeto; o moral do imoral. 358 No filme “Confissões de Schmidt” (About Schmitt), de Alexander Payne (USA, 2002), a crise do protagonista, vivido por Jack Nicholson, é desencadeada quando, depois de sua aposentadoria, ele acorda no meio da noite, olha para sua esposa, e se pergunta: “Quem é essa velha dormindo ao meu lado?” Esse é o tipo de experiência que Brás Cubas acredita que precisa evitar a qualquer preço.

No âmbito dessa visão pretensamente realista do amor, a mulher aparece como um simples instrumento para a satisfação narcísica do homem, assim concorrendo para a defesa de um dos aspectos da filosofia de Brás Cubas: a idéia de que a exclusão da alteridade não é uma marca de sua narrativa apenas, mas da condição humana, do homem em geral. Das duas forças capitais anteriormente mencionadas, “o amor, que multiplica a espécie, e o nariz, que a subordina ao indivíduo”, deve ficar evidente que a segunda é a única verdadeiramente capital.

Em se tratando de seu caso clandestino com Virgília, no entanto, mais do que distrair da dor existencial implícita no humor apenas aparentemente anódino do tédio e mais do que ajudar a recompor o narcisismo ferido pela descoberta da própria insignificância face à pujança da Natureza, o “amor” permite a única vitória possível sobre a Natureza, já que coloca Brás Cubas em posição de usufruir os prazeres do presente sem qualquer responsabilidade por suas conseqüências, sem qualquer compromisso, sem ser forçado a desempenhar o ridículo papel de, por breves instantes de prazer, ter de passar, no futuro, inúmeros anos desfilando ao lado de imponentes ruínas. Amar clandestinamente é, em suma, a forma encontrada por Brás para realizar algo como se nada estivesse realizando, para agir como que à socapa, às escondidas da Natureza, e assim não comprometer o seu projeto de uma radical inação.

O relato de seu amor clandestino serve igualmente bem ao aspecto reativo de seu projeto, na medida em que a intensidade que a clandestinidade confere aos sentimentos permite a apresentação, de maneira condensada, de sua ridícula transitoriedade, assim como da hipocrisia e das máscaras sociais que maculam todo o valor do amor. Não apenas o do amor de Brás Cubas por Virgília, mas, de acordo com o funcionamento universalizante e iconoclasta de sua ironia, do amor em si, do amor como valor supremo. Eis o cerne da inversão irônica como que casualmente produzida pelas memórias de Brás: ao justificar “sinceramente” o papel do amor em sua vida, ele incita

o leitor a uma visão “realista” do amor que priva-o de quaisquer justificativa e valor.

Evidência disso são o prólogo e o epílogo de seu caso com Virgília. No prólogo, no que teoricamente seria o momento culminante de qualquer paixão, Brás ainda assim é capaz de antecipar a transitoriedade e denunciar a hipocrisia da sociedade. A tese implícita em suas considerações sobre o amor é a de que ele é uma quimera, já que o homem que foge de sua transitoriedade através de uma relação estável, como o casamento, acaba deparando com a hipocrisia, e quiçá o adultério; e o homem que foge da hipocrisia por meio de uma ligação clandestina, como a existente entre ele e Virgília, acaba experimentando a radical transitoriedade de seus sentimentos. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Escreve o autor:

(...) uma hipocrisia paciente e sistemática, único freio de uma paixão sem freio

– vida de agitações, de cóleras, de desesperos e de ciúmes, que uma hora pagava à farta e de sobra; mas outra hora vinha e engolia aquela, como tudo mais, para deixar à tona as agitações e o resto, e o resto do resto, que é o fastio e a saciedade: tal foi o livro daquele prólogo.359

Quanto ao epílogo do livro daquela paixão, ao menos o epílogo que precede o reencontro com Virgília, a “imponente ruína”, no leito de morte, ele reforça ironicamente a impossibilidade de o amor de fato alimentar o sentido de uma existência. Escreve Brás, no dia em que Virgília partiu para o Norte, encerrando geograficamente uma relação que o fastio já encerrara antes:

Não a vi partir; mas à hora marcada senti alguma coisa que não era dor nem prazer, uma coisa mista, alívio e saudade, tudo misturado em iguais doses. Não se irrite o leitor com esta confissão. Eu bem sei que, para titilar-lhe os nervos da fantasia, devia padecer um grande desespero, derramar algumas lágrimas, e não almoçar. Seria romanesco; mas não seria biográfico. A realidade pura é que eu almocei, como nos demais dias, acudindo ao coração com as lembranças da minha aventura, e ao estômago com os acepipes de Mr. Prudhon...360

Findo o caso com Virgília, passatempo que o livrara dos anos de reclusão voluntária que se seguiram à morte de seu pai, o que lhe poderia preencher o tempo, dar algum sentido a seus dias? Se o amor não era capaz de vencer a morte, e o absurdo a ela correlato, alguma coisa o seria?

Brás, o personagem, começa a suspeitar que não, chegando, de braço dado com

o leitor desavisado, onde queria o narrador. Nessa fase de sua vida pós-Virgília, à medida que ele envelhece, serão cada vez mais freqüentes os ataques de melancolia, e os capítulos dedicados a fundamentá-la metafisicamente. Uma série que começa ainda no almoço do “Hotel Pharoux”, “com os acepipes de Mr. Prudhon”:

Ai, dor! era-me preciso enterrar magnificamente os meus amores. Eles lá iam, mar em fora, no espaço e no tempo, e eu ficava-me ali numa ponta de mesa, com os meus quarenta e tantos anos, tão vadios e tão vazios; ficava-me para os não ver nunca mais, porque ela poderia tornar e tornou, mas o eflúvio da manhã quem é que o pediu ao crepúsculo da tarde?

359 MP, LIII, p. 84. 360 MP, CXV, p. 140.

Não por acaso, o capítulo que se segue ao do almoço chama-se justamente “O humanitismo”, nome da filosofia de seu amigo Quincas Borba, uma paródia, segundo diversos críticos, das filosofias positivistas e evolucionistas em voga à época de Machado de Assis. Quincas, que fora outrora o mais cruel dos colegas de turma de Brás, ainda na época do professor Barata na escola da rua do Piolho361, e que mais tarde, tornado mendigo, afanara-lhe um relógio no Largo de São Francisco, agora entrara na posse de uma bela herança, e reassumira um papel eminente, coisa que, desde a infância, sempre buscara: o papel de filósofo. Para que possa ficar mais clara a função que sua filosofia irá desempenhar no seio das Memórias póstumas, cumpre notar que o menino mimado, depois mendigo, depois herdeiro, acabará enlouquecendo, e morrerá na casa de Brás “jurando e repetindo sempre que a dor era uma ilusão, e que Pangloss, o caluniado Pangloss, não era tão tolo como o supôs Voltaire”.362

Assim como Virgília é um pretexto para Brás Cubas desconstruir o amor como potencial fonte de sentido para a existência, Quincas Borba servirá para o narrador demonstrar que, não havendo no amor consolação e muito menos redenção do absurdo, tampouco essas consolação e redenção devem ser buscadas na filosofia. A descrição detalhada do humanitismo e da biografia de seu inventor servirão aos propósitos retóricos de Brás como uma espécie de redução ao absurdo do valor da filosofia, notadamente dos grandes sistemas filosóficos, cuja pretensão de fornecer um sentido fechado para a existência ele terá de apresentar como um tipo especialmente risível de loucura.

Aqui, porém, a ironia por ele utilizada será eminentemente socrática. Em vez de ele próprio filosofar sobre o que há de impossível, risível e hipócrita na filosofia, como fizera no caso do amor, agora Brás Cubas dissimuladamente se fará passar pelo principal discípulo de Quincas Borba, para, ao lhe dar voz, uma voz assaz caricatural, expor de forma ainda mais contundente o ridículo das pretensões hermenêuticas da filosofia, e assim garantir a verdade de sua filosofia do trágico, de sua melancolia.

Quincas Borba será o contraponto radical da filosofia melancólica de Brás Cubas, aquele que tentará arrancá-lo ao influxo de Saturno, o devorador indiferente de todos os seus filhos. Para que fique claro esse contraponto, e antes de uma breve apresentação do sumo do humanitismo, exposto no capítulo que se segue imediatamente

361 Cf. MP, XIII, p. 37. 362 MP, CLIX, p. 173.

ao fim de caso com Virgília, avancemos um pouco na narrativa, até o qüinquagésimo

aniversário de Brás. Nesse momento, atolado na melancolia – “Tantos sonhos, meu caro

Borba, tanto sonhos e não sou nada.”363 – correspondente a seu estado de espírito

naquela época de sua vida364, o narrador escreve um dos capítulos que tematizam de

maneira mais explícita o fundamento de sua dor. Vale a pena acompanhá-lo na íntegra,

dada a sua articulação com o episódio do caso adulterino com Virgília:

E agora sinto que, se alguma dama tem seguido estas páginas, fecha o livro e não lê as restantes. Para ela extinguiu-se o interesse da minha vida, que era o amor. Cinqüenta anos! Não é ainda a invalidez, mas já não é a frescura. Venham mais dez, e eu entenderei o que um inglês dizia, entenderei que ‘coisa é não achar já quem se lembre de meus pais, e de que modo me há de encarar

o próprio ESQUECIMENTO’.

Vai em versaletes esse nome. OBLIVION! Justo é que se dêem todas as honras a um personagem tão desprezado e tão digno, conviva da última hora, mas certo. Sabe-o a dama que luziu na aurora do atual reinado, e mais dolorosamente a que ostentou suas graças em flor sob o Ministério Paraná, porque esta acha-se mais perto do triunfo, e sente já que outras lhe tomaram o carro. Então, se é digna de si mesma, não teima em espertar a lembrança morta ou expirante; não busca no olhar de hoje a mesma saudação do olhar de ontem, quando eram outros os que encetavam a marcha da vida, de alma alegre e pé veloz. Tempora mutantur. Compreende que este turbilhão é assim mesmo, leva as folhas do mato e os farrapos do caminho, sem exceção nem piedade; e se tiver um pouco de filosofia, não inveja, mas lastima as que lhe tomaram o carro, porque também elas hão de ser apeadas pelo estribeiro OBLIVION. Espetáculo, cujo fim é divertir o planeta Saturno, que anda muito aborrecido.365

Ao relatar essas reflexões sobre o “estribeiro oblivion” a seu amigo Quincas

Borba – não sem antes interpor entre o diálogo com o mestre e a sua resposta um

capítulo de duas linhas apenas para denegar366, e assim confirmar, a importância do

capítulo supracitado – Brás reproduz textualmente a resposta de Quincas, que, depois de

repreender-lhe por estar “escorregando na ladeira fatal da melancolia”, resume

informalmente o seu humanitismo com as seguintes palavras:

– Meu caro Brás Cubas, não te deixes vencer desses vapores. Que diacho! é preciso ser homem! ser forte! lutar! vencer! brilhar! influir! dominar! Cinqüenta anos é a idade da ciência e do governo. Ânimo, Brás Cubas; não

363 MP, CXLI, p. 159. 364 MP, CXXXVIII, p. 158: “Meu caro crítico, Algumas páginas atrás, dizendo eu que tinha cinqüenta anos, acrescentei: ‘Já se vai sentindo que o meu estilo não é tão lesto como nos primeiros dias.” Talvez aches esta frase incompreensível, sabendo-se o meu atual estado; mas eu chamo a tua atenção para a sutileza daquele pensamento. O que eu quero dizer não é que esteja agora mais velho do que quando comecei o livro. A morte não envelhece. Quero dizer, sim, que em cada fase da narração da minha vida experimento a sensação correspondente. Valha-me Deus! é preciso explicar tudo.” 365 MP, CXXXV, pp. 155-156. 366 Cf. MP, CXXXVI, p. 156: “Mas, ou muito me engano, ou acabo de escrever um capítulo inútil.”

me sejas palerma. Que tens tu com essa sucessão de ruína a ruína ou de flor a flor? Trata de saborear a vida; e fica sabendo que a pior filosofia é a do choramingas que se deita à margem do rio para o fim de lastimar o curso incessante das águas. O ofício delas é não parar nunca; acomoda-te com a lei, e trata de aproveitá-la.367

Por essa admoestação, com a qual Quincas Borba reduziu a uma pusilânime atitude de filósofo choramingas a melancolia de Brás Cubas e a filosofia do trágico a ela correlata, já vimos qual foi a paga que lhe deu o destino, “grande procurador dos negócios humanos”368 do narrador: a loucura. Face à ambígua constatação de Brás Cubas de que tudo tenderia ao ocaso e ao esquecimento369 , a voz de Quincas soa bastante razoável. Afinal, qualquer leitor poderia ser levado a repreender Brás Cubas por sua sanha, sua compulsão de lutar contra o inelutável. Qualquer leitor poderia ter sugerido amigavelmente a Brás Cubas que “o ofício das águas é não parar nunca”, que ele deveria acomodar-se a essa lei a aproveitá-la da melhor forma possível.

Se qualquer leitor poderia tê-lo feito, Brás (paranoicamente) antecipa-se a essa possível objeção incorporando-a à sua narrativa. A figura de Quincas Borba, no âmbito das Memórias, tem justamente essa função: ele corporifica uma perspectiva diametralmente oposta à de Brás, da qual brotam inúmeros argumentos acerca da falta de bom senso de sua luta contra a Natureza. Para destruí-la, Brás ironicamente levará a perspectiva de Quincas às últimas conseqüências, fazendo-se passar por um atento discípulo do mestre. Recordando postumamente os princípios básicos do humanitismo, ele nos permite ouvir (através da sua!) a voz do filósofo:

Entre o queijo e o café, demonstrou-me Quincas Borba que o seu sistema era a destruição da dor. A dor, segundo o Humanitismo, é uma pura ilusão. (...) Quincas Borba leu-me daí a dias a sua grande obra. Eram quatro volumes manuscritos, de cem páginas cada um, com letra miúda e citações latinas. O último volume compunha-se de um tratado político, fundado no Humanitismo; era talvez a parte mais enfadonha do sistema, posto que concebida com um formidável rigor de lógica. Reorganizada a sociedade pelo método dele, nem por isso ficavam eliminadas a guerra, a insurreição, o simples murro, a facada anônima, a miséria, a fome, as doenças; mas sendo esses supostos flagelos verdadeiros equívocos do entendimento, porque não passariam de movimentos

367 MP, CXXXVII, p. 156. 368 MP, LVII, p. 86. 369 MACHADO DE ASSIS, J. M. “Viver”. In: Várias histórias. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre: Jackson, 1952, p. 266. A ambigüidade da dor de Brás lembra a dor de Ahasverus, personagem bíblico apropriado por Machado que, condenado à imortalidade, só quer morrer, até o dia em que depara com a possibilidade concreta da morte, e aí, contrariamente a suas intenções, recua, levando a águia (devoradora do fígado de Prometeu, orgulhoso patrono da humanidade) que observava sua história a concluir, com palavras que iluminam também a face do defunto autor, que “nem ele a [a vida] odiou tanto, senão porque a amava muito.”

externos da substância interior, destinados a não influir sobre o homem, senão como simples quebra da monotonia universal, claro estava que a sua existência não impediria a felicidade humana. Mas ainda quando tais flagelos (o que era radicalmente falso) correspondessem no futuro à concepção acanhada de antigos tempos, nem por isso ficava destruído o sistema, e por dois motivos: 1.° porque sendo Humanitas a substância criadora e absoluta, cada indivíduo deveria achar a maior delícia do mundo em sacrificar-se ao princípio de que descende; 2.° porque, ainda assim, não diminuiria o poder espiritual do homem sobre a Terra, inventada unicamente para seu recreio dele, como as estrelas, as brisas, as tâmaras e o ruibarbo. Pangloss, dizia-me ele ao fechar o livro, não era tão tolo como o pintou Voltaire.370

Para além de todas as cabriolas e volteios da irônica prosa com que Brás Cubas descreve a grandeza do pensamento de seu amigo, advinha-se uma única motivação, que, uma vez considerada, torna supérflua qualquer tentativa de estabelecer parentescos coerentes e profundos entre os filosofemas humanitistas e outros filosofemas não menos risíveis surgidos na segunda metade do século XIX. A motivação de Brás é, na esteira do que já fizera com o amor, negar a possibilidade da negação de sua melancolia, por meio da redução ao absurdo de uma filosofia que, negando a dor fundamental da qual ela brotaria – “a dor é uma ilusão”, eis o pilar fundamental do borbismo –, propõe a simples inversão da filosofia do trágico de Brás Cubas: se, para o defunto autor, nada tem sentido, nada tem valor, para Quincas, como para Pangloss, tudo, absolutamente tudo tem um propósito, assim afirmando o sentido da existência, a regência universal da lei de Humanitas. Se o pensamento de Cubas é potencialmente subversivo, na medida em que se baseia em uma revolta metafísica contra uma existência que não é o que deveria ser, uma revolta que talvez pudesse até ser apropriada com fins políticos mais imediatos ou concretos, a filosofia de Borba constitui o auge do conservadorismo, aproximando-se perigosamente, como o reconhece o próprio, daquelas filosofias orientais que, pregando o caráter ilusório da dor, justificam as mais iníquas organizações sociais. Metafisicamente, no entanto, o sumo da filosofia de Borba é uma simples inversão da sabedoria trágica de Sileno abraçada por Cubas. Escreve ele:

Como a vida é o maior benefício do universo, e não há mendigo que não prefira a miséria à morte (o que é um delicioso influxo de Humanitas), segue-se que a transmissão da vida, longe de ser uma ocasião de galanteio, é a hora suprema da missa espiritual. Porquanto, verdadeiramente há só uma desgraça: é não nascer.371

370 MP, CXVII, p. 144. 371 MP, CXXXVII, p. 154.

O fato de que, sob a ótica de Brás Cubas, que sua narrativa se esforça por naturalizar, como se não houvesse outra perspectiva que não a sua, outra verdade que não a de sua melancolia, essa aceitação incondicional de uma existência derrisória é incapaz de suportar as contradições que engendra é comprovado por todas as ações realizadas por Brás desde que, tendo adotado o humanitismo de Borba, resolveu seguir

o seu conselho e, (aparentemente) deixando a melancolia de lado, passou a empenhar-se em “ser forte! lutar! vencer! brilhar! influir! dominar!”372

As ações que realizou no período final de sua vida, e de sua narrativa, embora aparentemente contradigam o seu princípio da inação, devem ser lidas como paradigmáticas representantes de seu princípio da reação e do ressentimento. Como ele ironicamente nos mostra, se fazer política é ocupar-se de superfluidades como o comprimento da barretina usada pela guarda nacional373; e engajar-se na caridade religiosa é usufruir da “teoria do benefício”, segundo a qual “o prazer do beneficiador é sempre maior do que o do beneficiado”374, então a única resposta eticamente coerente a uma existência que não é o que deveria ser é a inação. Se, na fase final de sua vida, Brás, absolutamente absorvido pela melancolia, ainda realizou qualquer coisa, cumpre notar que essas realizações só servem ao seu propósito retórico e reativo de apontar para

o ridículo e o absurdo de todas as ações humanas – o amor375, a filosofia, a política, a religião376 .

O coroamento da verdade de sua melancolia, que sepulta de vez o desvairado conservadorismo de Quincas Borba, e, no entender de Brás Cubas, qualquer (outra) filosofia que sequer roce uma afirmação da existência, acontece quando, após uma das peregrinações filantrópicas que se acostumou a fazer na “fase mais brilhante”377 de sua vida – ao longo da qual vê morrer, no “hospital da Ordem”, a “linda Marcela”, “feia,

372 MP, CXXXVII, p. 156. 373 Cf. MP, CXXXVII, pp. 156-158. 374 MP, CXLIX, p. 166. 375 Cumpre lembrar que, instigado pela irmã e pela vaidade advinda da idéia de “arrancar esta flor a este pântano” (MP, CXXII, p, 148), Brás chegou a ficar noivo de Nhã-Loló, prima pobre de seu cunhado Cotrim, com quem iria se casar, mas que morreu subitamente aos 19 anos, como consta do capítulo “epitáfio” (MP, CXXV, p. 150), precedido pela consideração de que “saltar de um retrato a um epitáfio pode ser real e comum”, na medida em que “há entre a vida e a morte uma curta ponte” (MP, CXXIV, p. 149). Este capítulo pode ser lido como um último argumento retórico de Brás, como se dissesse: “Eu tentei, mas o Destino não quis”, o qual já foi devidamente desconstruído na seção 3.6. deste capítulo. 376 Cf. MP, CLVII, p. 171: “O cristianismo”, diz-lhe Quincas, “é bom para as mulheres e os mendigos, e as outras religiões não valem mais do que essa: orçam todas pela mesma vulgaridade ou fraqueza. O paraíso cristão é um digno êmulo do paraíso muçulmano; e quanto ao nirvana de Buda, não passa de uma concepção de paralíticos.” Só o que restaria, segundo o eminente filósofo, seria então a “religião humanística”, ou, segundo o raciocínio implícito no distanciamento irônico de Brás Cubas com relação a seu amigo, nada. 377 MP, CLVII, p. 171.

magra, decrépita”, e reencontra, quando distribuía esmolas em um cortiço, “a flor da moita, Eugênia, a filha de Dona Eusébia e do Vilaça, tão coxa como a deixara, e ainda mais triste”, que, apesar de toda a sua elevação moral, não escapou à indiferença da Natureza (e da Sociedade)378 –, Brás, no penúltimo capítulo de sua obra, refere-nos a loucura (da filosofia) de Quincas Borba com as seguintes palavras:

Quincas Borba não só estava louco, mas sabia que estava louco, e esse resto de consciência, como uma frouxa lamparina no meio das trevas, complicava muito o horror da situação. Sabia-o, e não se irritava contra o mal; ao contrário, dizia-me que era ainda uma prova de Humanitas, que assim brincava consigo mesmo. Recitava-me longos capítulos do livro, e antífonas, e litanias espirituais; chegou até a reproduzir uma dança sacra que inventara para as cerimônias do Humanitismo. A graça lúgubre com que ele levantava e sacudia as pernas era singularmente fantástica. Outras vezes amuava-se a um canto, com os olhos fitos no ar, uns olhos em que, de longe em longe, fulgurava um raio persistente da razão, triste como uma lágrima... Morreu pouco tempo depois, em minha casa, jurando e repetindo sempre que a dor era uma ilusão, e que Pangloss, o caluniado Pangloss, não era tão tolo como o supôs Voltaire.379

Ao cabo desse verdadeiro crepúsculo dos ídolos, em que nenhum dos valores que tradicionalmente davam um sentido à vida dos homens teria como ficar de pé, resta a Brás Cubas, valendo-se daquele tom de superioridade que caracteriza a ironia como um riso superior, antes um riso de alguém do que um riso com alguém, afirmar a sua ambígua vitória sobre a Natureza, a série de todas as negativas com que foi capaz de confrontá-la, recusando-lhe quaisquer frutos à sua voracidade. Ouçamos as célebres últimas palavras do defunto autor:

Entre a morte do Quincas Borba e a minha, mediaram os sucessos narrados na primeira parte do livro. O principal deles foi a invenção do emplasto Brás Cubas, que morreu comigo, por causa da moléstia que apanhei. Divino emplasto, tu me darias o primeiro lugar entre os homens, acima da ciência e da riqueza, porque eras a genuína e direta inspiração do Céu. O acaso determinou o contrário; e aí vos ficais eternamente hipocondríacos. Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com

o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste

378 Esses encontros de certa forma fecham, em estrita obediência à sua representação da Natureza (e da Sociedade), o livro de seus encontros com a morte, sempre apresentada em sua narrativa com um nome de mulher. 379 MP, CLIX, pp.172-173.

capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.380

Nos dois parágrafos que encerram as Memórias póstumas de Brás Cubas, ressoam um lamento e uma bazófia.

No primeiro parágrafo, Brás lamenta o fato de ter levado para o túmulo “a invenção do emplasto Brás Cubas, que morreu comigo”, lamento que tem de ser ouvido ironicamente se, como nos esforçamos por mostrar ao longo desta seção, todos os esforços do narrador foram no sentido de negar a possibilidade de o homem, após a descoberta da finitude, encontrar qualquer sentido para a vida que pudesse propiciar uma superação da melancolia a que a nossa humanidade, segundo o diagnóstico de Brás Cubas, está condenada. “E aí vos ficais eternamente hipocondríacos”, escreve ele.

No segundo parágrafo, em inversão que alcança o cerne de sua filosofia do trágico, Brás gaba-se de tudo o que não foi e não fez, revelando ainda uma vez ao leitor que, diante de uma Natureza que, embora devesse ser “só mãe, não inimiga”, é não obstante “mãe e inimiga”, só resta não agir, só resta, dentro do possível, não ser. Se vida é morte, a única maneira de mitigar a dor dessa descoberta e de certa forma escapar à inexorável corrosão de tudo o que vem a ser é justamente fingir-se de morto, de defunto.

Brás sabe, porém, que não seria o suficiente para satisfazer o seu ressentimento simplesmente renunciar à vida, a qualquer engajamento existencial. A única necessidade que ele sente, o único impulso que, de certa forma contradizendo o seu princípio da inação, o leva a agir, é o seu espírito de vingança, que precisa, além da inação, de algo a mais para saciar-se. Esse a mais, esse excesso, é, segundo o fecho de ouro de suas memórias, o “saldo” de sua vida, “a derradeira negativa de seu capítulo de negativas”: o fato de não ter tido filhos, de ter propiciado a alguém a maior ventura dada aos mortais

– não ter nascido.

Com ele, em antecipação da confissão do menos célebre dos heterônimos de Fernando Pessoa, Brás deixa-nos a impressão de, através de sua narrativa, e da ironia que a tudo corroeu, ter logrado a única vitória possível no âmbito do que é finito: um suicídio vivido. Escreve o discípulo de Cubas, sintetizando a função da “derradeira

380 MP, CLX, p. 173.

negativa de seu capítulo de negativas”: “Se o vencido é o que morre e o vencedor quem mata, com isto, confessando-me vencido, me instituo vencedor.”381

3.10. A tragédia do narrador

A leitura das Memórias póstumas proposta ao longo de todo este capítulo teve como fio condutor a exposição das ambigüidades contidas na idéia de uma “tragédia de Brás Cubas”. Falou-se do modo como o leitor é obrigado a oscilar entre drama e narração, identificação e distanciamento, simpatia e ironia, tragédia (como gênero poético) e tragédia (como filosofia do trágico), Brás Cubas (como herói trágico) e Brás Cubas (como tragediógrafo).

Essa oscilação a que o leitor é obrigado, essa sustentação da tensão entre um pólo e outro, esse entretenimento é a condição para a participação na dinâmica da “obra em si mesma”382. Essa participação, em última instância, é o que propicia que o leitor experimente, ao longo de sua leitura, a tragicidade que Brás Cubas atribui à própria Natureza. Se a ironia de Brás Cubas é a mimese da ironia trágica da Natureza, não haveria melhor maneira de o narrador apresentar a sua filosofia do trágico do que recusar ao leitor, assim como a Natureza sempre lhe teria recusado, qualquer satisfação (duradoura) de suas pretensões (hermenêuticas).

O problema é que o fecho de ouro do livro de Brás Cubas parece, no final do romance, pôr fim a essa oscilação. Quando ele afirma que o seu “pequeno saldo”383 foi não ter tido filhos, não ter entregue quaisquer frutos à voracidade de uma Natureza que não é o que deveria ser, tem-se a impressão de que ele se sente pacificado com a idéia de que a tragicidade da Natureza priva a vida de seus sentido e valor. É como se, através da negação absoluta, daquilo que um de seus críticos, confundindo autor e narrador, já chamou de “pirronismo niilista”384 , ele tivesse finalmente entrado na posse de um sentido absoluto, imune ao tempo e à Natureza. Este sentido absoluto seria para Brás Cubas o absoluto não sentido.

Aqui, no entanto, cabe introduzir com relação ao Brás Cubas narrador o mesmo tipo de distância, ou quiçá ironia, que ele introduz com relação a si mesmo como personagem de suas memórias. Se é inegável, de acordo com uma das hipóteses centrais

381 TEIVE, Barão de. A educação do estóico. São Paulo: A girafa editora, 2006, p. 58. 382 MP, “Ao leitor”, p. 11. 383 MP, CLX, p. 173. 384 Cf. MEYER, A. Machado de Assis: 1935-1958. Op. cit., p. 14.

deste trabalho, que as memórias escritas por Brás Cubas foram construídas como uma armação paranóica, cuja finalidade conspícua é demonstrar a universalidade da melancolia, única disposição afetiva que restaria a homens que se recusam a seguir desempenhando os papéis ridículos que a Natureza, dada a sua transitoriedade, lhes atribui, cumpre indagar se essa armadura de fato conseguiu manter-se intacta, imune à ação dos vermes que minam sempre os projetos e a compreensão do homem. Cumpre investigar, em suma, se o projeto de Brás Cubas de uma negação sistemática de todos os valores que prendem o homem a esta vida não teria sido, ele mesmo, corroído por experiências que, a despeito das intenções do narrador, apontam para uma justificação e uma afirmação da existência como ela é.

Nessa investigação, torna-se necessário considerar um outro aspecto da ironia presente na idéia de uma “tragédia de Brás Cubas”. Além do genitivo subjetivo, que coloca o narrador Brás Cubas como autor de sua tragédia, e do genitivo objetivo, que coloca Brás Cubas como personagem da tragédia do Brás Cubas tragediógrafo, é preciso considerar, na tragédia de Brás Cubas, um outro sentido do genitivo objetivo, que revela como a própria armadura paranóica do narrador, que ele pretendera inexpugnável ao assumir a condição (pretensamente privilegiada) de defunto autor, é na verdade vazada por uma força muitas vezes superior e contrária à de sua melancolia. Sob essa ótica, também o narrador Brás Cubas aparece como um personagem, ou melhor, um joguete. A diferença é que agora (o personagem) Brás Cubas não aparece mais como um joguete de si mesmo (como narrador), mas justamente de um Outro, daquele mesmo Outro que, ao personificar na forma de Natureza, ou Pandora, o narrador acreditara ter domesticado. Esse Outro, que não raro impõe a sua alteridade e assim subverte tragicamente o tom melancólico que domina a narrativa, é a própria linguagem – cuja força, no plano da obra de arte, corresponde à força que, no plano da existência, Brás Cubas atribui à Natureza.

Isso significa que, além da ironia da ação trágica que Brás Cubas atribui à Natureza, e da clarividente ironia do poeta trágico que a sua posição privilegiada de defunto autor reivindica para si, haveria um terceiro nível de ironia na tragédia de Brás Cubas: a ironia da linguagem trágica. Se a ironia da ação trágica diz respeito à conversão do sentido de uma ação no seu oposto; e a ironia do poeta trágico diz respeito à distância reflexiva necessária para a compreensão do descompasso entre a intenção do herói trágico e o que ele efetivamente realiza; a ironia da linguagem trágica diz respeito à própria equivocidade do discurso do herói trágico, condição de possibilidade para que ele, sem o saber, seja em alguma medida o responsável pelo seu destino e desencadeie nos espectadores o distanciamento reflexivo necessário à experiência da ambigüidade que constitui o sumo da tragédia.

No caso das Memórias póstumas de Brás Cubas, a experiência dessa ambigüidade, dessa tensão que antecede ontologicamente os pólos que dela brotam, perpassa tudo, e a noção de uma tragédia de Brás Cubas, cujas implicações desenvolvemos ao longo deste capítulo, condensa toda essa série de ambigüidades, tornando visível a obra mesma como esse espaço e esse tempo entre Brás Cubas e Brás Cubas, drama e narração, poética da tragédia e filosofia do trágico.

*

A ironia da linguagem trágica, porém, pode naturalmente ser mais bem compreendida a partir das próprias tragédias gregas que serviram de modelo ao nosso tragediógrafo. “Decifra-me ou devoro-te”385, vale lembrar, foram as palavras ditas pela idéia fixa a Brás Cubas quando ele vislumbrou a necessidade de criar o emplasto anti-hipocondríaco. Será que, tragicamente, ele teria achado a fórmula do emplasto, ainda que sem se dar conta? Será que, sob uma certa ótica, o destino do narrador das Memórias teria sido análogo ao de Édipo?

Em Édipo rei, um exemplo claro da equivocidade da linguagem trágica aparece na cena em que Édipo, ouvindo os apelos do coro para libertar a cidade da peste, profere

o seu discurso, que não é nem univocamente uma sentença judicial, expressão do novo direito que ele quer instituir ao instaurar um processo racional contra o assassino de Laio, nem unicamente uma maldição, expressão do velho direito personificado por Tirésias. Édipo repreende o coro com as seguintes palavras:

O melhor dos reis havia desaparecido: cumpria levar as investigações a fundo. Vejo-me nessa hora de posse do poder que ele teve antes de mim, de posse do seu leito, da mulher que ele já havia tornado mãe (...). Sendo assim, eu é que lutarei por Laio, como se ele tivesse sido meu pai. (...) Rogo aos céus que o criminoso, quer tenha agido a sós, sem se trair, ou com cúmplices, tenha uma vida sem alegria, vivida miseravelmente, como um miserável; e, se porventura viesse a admiti-lo conscientemente em meu lar, que eu sofra todos os castigos que minhas imprecações lançaram sobre outros.386

A interpretação das ambigüidades introduzidas por Sófocles no discurso de Édipo como a condição de possibilidade para a sua própria condenação – note-se como

385 MP, II, p. 17. 386 SÓFOCLES. Édipo rei. Op. cit., pp. 19-21.

na passagem acima Édipo vale-se do poder mágico das palavras, que não é estranho ao mundo animista dos gregos, para amaldiçoar o assassino de Laio – e ao mesmo tempo para uma conversa silenciosa entre autor e espectadores, da qual os personagens da tragédia nada saberiam, coloca uma questão acerca da natureza da linguagem que transcende os limites de Édipo rei e mesmo os da tragédia como gênero poético. Coloca uma questão que nos aproxima de um dos problemas mais fundamentais na leitura de um romance, e, em certo sentido, de qualquer obra de arte. Trata-se da seguinte questão: até que ponto a linguagem da tragédia não implica necessariamente uma tragédia da linguagem?

Supondo que a linguagem da tragédia é constitutivamente irônica, na medida em que são as ambigüidades presentes nos discursos dos personagens trágicos que permitem a ironia da ação trágica – análoga à peripécia – e a ironia do poeta e do espectador da tragédia – análoga ao reconhecimento –, o encaminhamento da questão sobre a relação entre a linguagem da tragédia e a tragédia da linguagem pode ser ajudado por uma distinção entre duas formas de ironia: de um lado, o que Wayne Booth chamou de “ironia estável”; de outro o que ele chamou de “ironia instável”.387

Por ironia estável, entenda-se aquela ironia de matiz mais clássico, que pressupõe a possibilidade de que, dadas condições favoráveis à compreensão, o interlocutor daquele que ironiza tenha como apreender o verdadeiro sentido do que está sendo dito pela mera inversão do sentido aparente ou corriqueiro. A ironia estável, sob esse prisma, pode ser vista como um meio para um fim, como aquele tipo de (dis)simulação constantemente referido a Sócrates, que, ao representar o papel de ingênuo ou ignorante, conduziria aqueles que representam o papel de sábios a experimentarem a verdade existente para além do âmbito da representação.

Esse é o tipo de ironia trágica presente naquela leitura de Édipo rei que vê no percurso de Édipo a simples reiteração da força dos deuses, os quais, embora permitam ironicamente que o homem julgue estar no controle de sua existência e aja como se fosse autônomo, no final aparecem e revelam que tudo aquilo não passara de ilusão, que

o homem jamais deixara de ser uma marionete dos deuses.

A ironia instável, por outro lado, teria um matiz mais romântico, e o efeito imediato de seu aparecimento seria não apenas a inversão do sentido corriqueiro do dizer irônico, mas a desestabilização da possibilidade mesma de uma distinção

387 Cf. BOOTH, W. A rhetoric of irony. Chicago e Londres: University of Chicago Press, 1974.

definitiva entre o sentido corriqueiro ou aparente e o sentido verdadeiro ou essencial de um dizer. A ironia instável, sob essa ótica, pode ser vista como uma espécie de ironia reduplicada, que obrigaria o interlocutor daquele que ironiza a sustentar um distanciamento irônico-reflexivo inclusive com relação à sua própria interpretação do dizer original, o que converteria a tradução da ironia para a linguagem corriqueira em um novo dizer irônico, que por sua vez exigiria um novo distanciamento irônico-reflexivo, e assim o movimento da volta do eu sobre si mesmo teria de se repetir infinitamente, impossibilitando a fixação de um pretenso sentido último do dizer irônico, imaginariamente assemelhado à verdadeira face do ironista para além de todas as suas máscaras.388

Esse é o tipo de ironia trágica presente em uma leitura de Édipo rei que não se sente pacificada com a idéia de que a tragédia como gênero poético seria a expressão conservadora da religiosidade grega, espécie de exortação contra as mudanças sociais e políticas ocorridas com o advento da democracia. Sob a ótica da ironia instável, a tragédia grega é uma descrição da condição do homem – do “eu inteligível do homem”, como diria Lukács389 – como esse ser cindido, que se alimenta do paradoxo de, em certos momentos, até poder ser o que quer (ser), mas só poder saber desses momentos a posteriori – ou, em termos machadianos, postumamente. O problema é que, como sempre é possível uma nova interpretação póstuma de uma interpretação póstuma, a tensão dialética entre autonomia e heteronomia não pode ser definitivamente superada.

A partir dessa distinção, fica claro que só é possível falar em uma tragédia da linguagem se se compreende a ironia da linguagem trágica como uma ironia instável, ou seja, um tipo de ironia que não permite uma estabilização definitiva do sentido de um dizer e, assim, condena aquele que fala ou escreve a manter-se sem um controle a priori do sentido daquilo que diz, em situação provavelmente análoga à dos personagens de Édipo rei e das Memórias póstumas de Brás Cubas.

*

388 Cf. PESSOA, F. “Tabacaria”. In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 365: “Quis tirar a máscara, / Estava pegada à cara./ Quando a tirei e me vi ao espelho/ Já tinha envelhecido.” Já havendo se convertido em um homem póstumo, o poeta da Tabacaria só teria a sua memória, póstuma, para reconstruir o que jamais fora. 389 LUKÁCS, G. Teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 45s: “O caráter criado pelo drama (...) é o eu inteligível do homem; o criado pela épica, o eu empírico. O dever-ser, em cuja desesperada intensidade busca refúgio a essência proscrita da terra pode objetivar-se no eu inteligível como psicologia normativa do herói; no eu empírico, ele permanece um dever-ser.”

Se não é o objetivo deste trabalho fornecer uma posição fechada quanto ao tipo de ironia presente na tragédia de Sófocles, é importante ressaltar que, para um leitor da Teoria do romance de Lukács, causa estranheza a tese de que sem ironia não há tragédia. Para o pensador húngaro, a ironia, entendida romanticamente como “eterna agilidade”390 ou reflexividade infinita391, não existiria ainda no “mundo fechado” dos gregos, que “conhece somente respostas, mas nenhuma pergunta, somente soluções (mesmo que enigmáticas), mas nenhum enigma, somente formas, mas nenhum caos”.392

Na Teoria do romance, a ironia é definida como a “objetividade do romance”393 , aquilo que garante a essa forma uma fidelidade à situação histórico-filosófica do mundo em que surge, caracterizado como um mundo onde “a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente”, onde “a imanência do sentido à vida se tornou problemática”, mas ainda assim é buscada.394 O romance, escreve Lukács, “é a epopéia do mundo abandonado por Deus; a psicologia do herói romanesco a demoníaca; a objetividade do romance, a percepção virilmente madura de que o sentido jamais é capaz de penetrar inteiramente a realidade, mas de que, sem ele, ela sucumbiria no nada da inessencialidade”.395

A partir dessa definição, torna-se patente que, para Lukács, a linguagem da tragédia ainda não comportaria o tipo de negatividade que configura o que antes chamamos de tragédia da linguagem. Essa negatividade insuperável, essa ironia instável seria propriedade exclusiva do romance, cujas “categorias estruturais coincidem

390 SCHLEGEL, F. apud Szondi, P. “Friedrich Schlegel und die romantische Ironie”. In: Schriften II. Frankfurt am Main: Suhrkamp, p. 24: “Ironia é a clara consciência da eterna agilidade, do caos infinitamente pleno.” 391 Ibidem, p. 18: “Como auto-referencialidade, a reflexão é a expressão do isolamento do sujeito, e parece confirmá-lo. Enquanto o sujeito torna-se objeto de si mesmo, porém, ele ganha distância de si mesmo, vê-se a si mesmo e ao mundo e novamente supera através dessa visão conjunta (Synopsis)a divisão (Spaltung) que a reflexão produzira. É verdade que o mundo ainda está presente nessa síntese apenas como aparência (Schein), e a divisão interior, que o tornar-se-objeto significa, só pode ser superada (aufgehoben) em uma segunda reflexão. Como esta, igualmente, não desaparece (aufgeht), o processo continua, como uma sempre renovada potenciação da reflexão. O caráter aparente do mundo e do próprio ser aumenta, a reflexão torna-se cada vez mais vazia.” 392 LUKÁCS, G. Teoria do romance. Op. cit., p. 27. 393 Ibidem, p. 93s. “A ironia do escritor é a mística negativa dos tempos sem deus: uma docta ignorantia com relação ao sentido; uma amostra da manobra benéfica e maléfica dos demônios; a recusa de poder conceber mais do que o fato dessa manobra, e a profunda certeza, exprimível apenas ao configurar, de ter na verdade alcançado, vislumbrado e apreendido, nesse não querer saber e nesse não poder saber, o fim último, a verdadeira substância, o deus presente e inexistente. Eis por que a ironia é a objetividade do romance. (...) A ironia, como auto-superação da subjetividade que foi aos limites, é a mais alta liberdade possível num mundo sem deus.” 394 Ibidem, p. 55: “O romance é a epopéia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade.” 395 Ibidem, p. 90.

constitutivamente com a situação do mundo”396 moderno. Isso significa que, para o pensador húngaro, uma síntese entre eu e mundo, vida e essência como a que teria existido na Grécia só se tornaria novamente possível com uma mudança da situação do mundo. Se, por um lado, tal mudança não estaria descartada – e a sua posterior adesão ao socialismo já foi entendida como tentativa de realização dessa síntese –, ao menos quando da elaboração da Teoria do romance ainda estaria distante.

No que diz respeito ao objetivo desta seção, que é chamar a atenção para a complexidade do conceito de ironia em Machado de Assis, a qual configura a tragédia do narrador Brás Cubas, a menção a Lukács se justifica em dois sentidos. Em primeiro lugar, ao defender incisivamente a ironia como objetividade do romance, Lukács deixa claro que a interpretação de um romance, para fazer jus a seu objeto, tem de incorporar

o tipo de ironia que lhe é próprio. Nesse sentido, é preciso combater as interpretações das Memórias póstumas que estabilizam a ironia de Brás Cubas, atribuindo-lhe um sentido último, seja filosófico ou ideológico.

Em segundo lugar, e essa questão terá de ficar em aberto, será que um olhar póstumo para a tragédia a partir da ironia do romance machadiano não tornaria no mínimo problemática a ficção lukácsiana de um “mundo fechado dos gregos”? Se a ausência de (uma) ironia (instável) na tragédia tem como sua condição de possibilidade a idéia de um mundo onde as perguntas são respondidas antes mesmo de serem formuladas, não seria interessante contrapor a esse mundo “o velho colóquio de Adão e Eva”397, episódio das Memórias póstumas que Brás Cubas grafa só com reticências justamente para indicar que um mundo assim fechado só é possível na ausência da linguagem?

Em todo caso, se assumirmos, como Brás Cubas, que o único antídoto para a tragédia da linguagem é a sua ausência, seremos inevitavelmente obrigados a concordar com a sabedoria de Sileno como relatada por Nietzsche, e conseqüentemente com a leitura tradicional do fecho de ouro das Memórias póstumas de Brás Cubas, problemático para uma leitura que vê como (romanticamente) instável a ironia machadiana. Mas voltemos logo à tragédia que nos interessa.

*

396 Ibidem, p. 96. 397 MP, LV, p. 85.

A tragédia do narrador a que alude o título desta seção implica a idéia de que Brás Cubas, ao colocar-se na única posição em que julga poder manter-se imune ao curso da Natureza – a posição de um morto que narra –, ainda assim permaneceria sujeito a algo que escapa de seus controle e previsão, a algo que age na direção oposta à de suas intenções. É como se o refúgio da memória que construiu para si, um refúgio hermeticamente fechado contra qualquer sopro que não o da morte, contra qualquer contração que não a cadavérica, ainda assim não fosse capaz de apagar certos rastros de uma voz outra que não a do defunto autor. A idéia de uma tragédia do narrador Brás Cubas pressupõe, em suma, a convicção de que, apesar de todo o seu “desdém dos finados”398, de todo o seu pretenso conhecimento desinteressado e transparente de si mesmo (e dos outros), algo teria escapado a seu poder de sujeitar tudo a um nariz somente. Isso que teria escapado à armadura paranóica de Brás Cubas, à sua “composição”399, é justamente aquilo que a teria motivado. A tragédia de Brás Cubas é a tragédia de todos nós: nem um morto pode pular a própria sombra.

Essa constatação coloca um problema para a leitura fenomenológica do romance proposta anteriormente. Se de fato ninguém pode pular a própria sombra, e se, como mostramos a partir de nossa leitura da Teoria do romance, o leitor do romance precisa em alguma medida ser capaz de aceitar o tipo de ironia (instável) que o caracteriza, não será necessário colocar em questão a indicação do próprio Brás Cubas de que a melancolia teria sido a disposição afetiva que orientou a construção de suas memórias? Se a melancolia fosse de fato o ponto cego do narrador, como é que ele, desde o prólogo ao leitor e em diversos capítulos ao longo do livro, teria sido capaz de formular uma série de filosofemas sobre ela?

Se Brás Cubas tem como uma de suas principais características desconstruir ironicamente as atitudes e palavras de todos os seus personagens, doravante parece-nos necessário utilizar o mesmo procedimento com relação a ele, assumindo uma distância com relação ao narrador que é análoga à distância por ele assumida com relação a seus personagens.

Este tipo de leitura irônica, que pressupõe uma distância intransponível entre o sentido do romance e o sentido visado (explicitamente) pelo narrador do romance, foi

398 MP, XXIV, p. 54. 399 Cf. HEIDEGGER, M. “A questão da técnica”. In: Op. cit., p. 37: “Com-posição (Gestell) denomina, portanto, o tipo de desencobrimento que rege a técnica moderna, mas que, em si mesmo, não é nada de técnico. (...) Não sendo nada de técnico a essência da técnica, a consideração essencial do sentido da técnica e a discussão decisiva com ela têm de dar-se num espaço que, de um lado, seja consangüíneo da essência da técnica, e, de outro, lhe seja fundamentalmente estranho.”

exercitado com inexcedível brilhantismo por Roberto Schwarz, que, em Um mestre na periferia do capitalismo, demonstra que as Memórias póstumas de Brás Cubas foram escritas “contra o seu pseudo autor”400 e a elite brasileira cujo grotesco, ao expor em forma de caricatura, elas tornam visível. No âmbito dessa interpretação, que reconstruímos com maior detalhe na introdução deste trabalho,

uma das virtualidades conformistas do livro se poderia resumir pelo amor ao privilégio, quando se trata dos vivos; e pela melancolia metafísica, quando se trata do inelutável. A poesia desta contigüidade, módulo sempre repetido, é ideologia barata – como facilmente se percebe (...) uma vez levado em conta o outro Brás, o de classe, cuja presença, insidiosa ao extremo, entretanto é discreta.401

A posição de Schwarz é a de que quando Brás Cubas nos quer vender a idéia de que o amor ao privilégio seria uma característica de todos os homens, que para isso estariam dispostos a qualquer coisa, sua intenção é, através dessa universalização de seu amor a seus privilégios, justificar metafisicamente a corrupção das elites brasileiras. Ao mesmo tempo, ao pregar a impotência do homem, de todos os homens, diante do inelutável, compondo uma obra na qual a melancolia – e a inação a ela correlata – seria a única alternativa ao ridículo, Brás Cubas estaria insidiosamente defendendo a inutilidade de qualquer luta que pudesse transformar a iníqua estrutura social brasileira e assim roubar à elite os seus privilégios. De acordo com essa leitura da ideologia implícita nos argumentos de Brás Cubas, se não se pode fugir ao egoísmo universal, a chegada ao poder de oprimidos como Prudêncio, Dona Plácida ou Lula não alteraria nada; e se nada pode escapar à voracidade da Natureza ou do Capitalismo Globalizado, qualquer luta é não apenas inútil, mas ridícula, e ignorante o homem que não percebe que o único imperativo é aceitar as coisas como elas são, adequando-se ao sistema.

A interpretação de Roberto Schwarz revolucionou o estudo de Machado de Assis por dois motivos. Em primeiro lugar, tornou visível um interessantíssimo “Machado brasileiro”402 , grande crítico da ideologia das elites nacionais, que, ao criar um personagem como Brás Cubas e sobretudo ao lhe dar voz – uma voz cujo tom de

400 SCHWARZ, R. Um mestre na periferia do capitalismo. Op. cit., p. 82. 401 Ibidem, pp. 173-175. 402 Cf. BOSI, A. “Brás Cubas em três versões”. In: Brás Cubas em três versões: estudos machadianos. São Paulo: Companhia das letras, 2006, pp. 40-41: “A leitura sociológica trouxe contribuições relevantes para a construção da imagem de um Machado brasileiro. O seu olhar poderá ser cada vez mais iluminador na medida em que se abstiver de assumir uma função totalizante e monocausal e na medida em que reconhecer o caráter multiplamente determinado do texto, no sentido proposto pela dialética hegeliano- marxista para a compreensão do concreto individual.”

bazófia caracteriza à perfeição a postura dos poderosos que se julgam no controle da situação, até serem flagrados por um romancista ou... uma câmera escondida –, tornou possível uma crítica imanente da ideologia das elites nacionais, a qual, dada a nossa posição periférica, possibilita a desconstrução da ideologia que subjaz ao capitalismo supostamente civilizado do “Primeiro Mundo”. Em segundo lugar, Schwarz colocou na berlinda todas as “interpretações filosóficas” de Machado de Assis que, ao superestimarem a influência de um determinado filósofo da tradição sobre o seu pensamento, em geral Schopenhauer, passam por cima da especificidade de sua obra sem sequer discutir o problema da autonomia da obra de arte. Ao fazer isso, ele simultaneamente expôs a vacuidade das interpretações baseadas na literatura comparada, cujos autores ficam tão ocupados em exibir a própria erudição, em descobrir parentescos insuspeitos entre Machado e outros grandes nomes da ficção, que sequer cuidam do que há de irredutível em seu estilo.

A interpretação de Schwarz das Memórias póstumas de Brás Cubas é sem dúvida uma daquelas interpretações que necessariamente geram uma certa “angústia de influência”403 em todos os intérpretes que, depois dele, vierem a se aventurar pelo terreno da crítica machadiana. Porém, se não é honesto ignorá-la – a história da recepção de uma obra de arte é em larga medida responsável pela sua produção –, tampouco o seria não apontar aquilo que, a despeito da meticulosidade do autor, permanece problemático em sua abordagem.

Paradoxalmente, o problema central da interpretação de Schwarz é a sua excessiva consistência, a sua desmedida fidelidade a seu ponto de partida hermenêutico (e ideológico).404 Essas consistência e coerência, como quem quer que tenha acompanhado a interpretação fenomenológica das Memórias póstumas logo percebe, exige a violenta exclusão de todos aqueles elementos do romance que permitem uma identificação simpática com o protagonista. No âmbito da leitura de Schwarz, todos os episódios narrados por Brás Cubas, absolutamente tudo o que ele diz, deve ser lido com uma irônica (ou antipática) desconfiança, condição para tornar visível, em sentido inverso ao pretendido pelo narrador, que o mecanismo de universalização, que ele compulsivamente emprega, na verdade não diz nada sobre o universo, mas apenas sobre a sua própria posição: a posição de um representante das elites unicamente ocupado em

403 Cf. BLOOM, H. A angústia de influência: uma teoria da poesia. Rio de Janeiro: Imago, 2002. 404 Cf. BOSI, A. Op. cit., p. 43: “Creio que o que se ganha aqui em coesão metodológica arrisca-se a perder-se na restrição do alcance efetivo de processos formais específicos e do pathos de amarga melancolia que permeia a narrativa e enforma o seu tom humorístico.”

conservar seus privilégios. Assim, não é de se espantar que um episódio como o da morte da mãe de Brás Cubas, central para a compreensão da gênese de sua melancolia como uma resposta ao absurdo que ali se lhe descortinou, sequer seja considerado seriamente por Schwarz, que, não dando a esse episódio a importância que ele tem, vê-se incapaz de propor uma interpretação minimamente consistente sobre a questão do “defunto autor”, que vê como mera impostura de classe.

Ironicamente, porém, essa leitura tão antipática a Brás Cubas acaba por ser simpática a ele em um nível mais sutil: ao valer-se de tamanha violência para calar inteiramente a filosofia trágica de Brás Cubas, que não consegue ler senão como desconversa ideológica, Schwarz acaba sendo tão paranóico quanto ele, e, por maior que seja a admiração que se deve devotar à sua composição, nela são visíveis os vestígios de uma certa filosofia da ponta do nariz. Em suma: ao escrever Um mestre na periferia do capitalismo, parece-nos que o autor privilegiou excessivamente a contribuição de Machado de Assis a uma reflexão sobre (e a partir de) a periferia do capitalismo, mas silenciou violentamente um aspecto de seu pensamento que, ultrapassando a sua circunstância sócio-política imediata, o transforma em um clássico – um mestre.

Se, ao contrário de Schwarz, levarmos seriamente em conta a tensão que, na obra machadiana, se estabelece entre a universalidade de seu autor e a particularidade de sua inscrição social, veremos que, por mais consistente que seja a caracterização de Brás Cubas – baseada em seu romance de (de)formação como apresentado (especialmente) entre os capítulos X e XXII – como um típico representante das elites brasileiras, obrigado a conciliar inconciliáveis – o liberalismo teórico e a prática da escravatura –, essa inscrição social do narrador não anula inteiramente a verdade de sua filosofia do trágico. O fato de que a melancolia pode ser manipulada não anula a sua existência e menos ainda a dor que lhe dá origem. Simultaneamente, porém, e este é o motivo pelo qual a interpretação de Schwarz não pode de forma alguma ser negligenciada, a consideração da filosofia do trágico de Brás Cubas tampouco deve abstrair a sua inscrição social, condição para que assumamos a distância irônica necessária com relação ao narrador e não nos deixemos enredar tão facilmente por sua justificação da legitimidade ontológica da melancolia.

Lida sob chave ideológica, a melancolia, como a incapacidade de esquecer o passado, é de fato uma disposição afetiva conservadora, de modo que uma filosofia como a de Brás Cubas, que justifica a impossibilidade de superá-la – lembre-se que Brás Cubas morreu antes de chegar à fórmula de seu emplasto anti-hipocondríaco, ou pelo menos de divulgá-la; “e aí vos ficais eternamente hipocondríacos”405, diz-nos ele no fecho de suas Memórias –, pode efetivamente servir a interesses que nada têm de melancólicos, como por exemplo o interesse de usufruir eternamente privilégios sociais que, em princípio, o progresso da civilização já nos deveria ter feito esquecer – e aqui é inevitável lembrar da veneranda instituição brasileira da empregada doméstica. Por outro lado, a dor da finitude; o trauma do encontro com a morte como aquilo que não se deixa simbolizar – prever, controlar, justificar; o choque de quem esbarra com a alteridade radical; “a dor-homem”, em suma, “é a dor mais profunda”.406 A concretude dessa dor não pode ser negada pela simples consideração de que uma determinada maneira de senti-la e de se relacionar com ela, como a melancolia, pode servir a interesses espúrios.

Se, finalmente, as considerações de Roberto Schwarz nos permitem refrear a nossa tendência ingênua a nos identificarmos imediatamente com Brás Cubas, levando-nos a perceber como o conservadorismo tende a usar a melancolia como uma de suas principais armas407; por outro lado seria igualmente ingênuo querer simplesmente negar a dor fundamental, a dor-homem, a partir da qual essa melancolia brota, e assim, de certa forma, fundamenta metafisicamente. Afinal, a (gênese da) melancolia seria ininteligível se não houvesse de fato uma Natureza que, sendo a um só tempo mãe e inimiga, resguarda em si a ambigüidade que está na origem da revolta que está na base da filosofia do trágico enunciada por Brás Cubas no capítulo do delírio.

*

O longo comentário à interpretação paranóica que Roberto Schwarz faz das não menos paranóicas memórias de Brás Cubas justifica-se pelo fato de chamar a atenção para a paranóia embutida na interpretação fenomenológica, construída em torno da melancolia, apresentada por nós no capítulo anterior e concluída na última seção, sobre

o crepúsculo dos ídolos promovido por Brás. Assim como, em sua interpretação, Roberto Schwarz privilegia o “Brás de classe” e negligencia todos os elementos que

405 MP, CLX, p. 173. 406 NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p. 165. 407 Aqui vale lembrar de todas as campanhas contra a violência que se alimentam da construção de um passado pacífico, ideal, de um Rio de Janeiro feliz, onde a favela e o asfalto conviveriam em paz, mas, sobretudo, onde o pobre sabia o seu lugar, como naquele funk infame: “eu só quero é ser feliz/ viver tranqüilamente na favela onde eu nasci/ e poder me orgulhar/ e ter a consciência de que o pobre tem seu lugar.”

desestabilizam esse privilégio, em nossa interpretação, por mais que em algumas passagens tenhamos sustentado a tensão entre o Brás de classe e o Brás trágico408, em geral deixamos de lado aqueles elementos mais sociológicos que não interessavam diretamente à caracterização da melancolia metafísica de Brás Cubas. Nesse sentido, a exemplo da interpretação do narrador da (sua própria) história, dificilmente a interpretação fenomenológica proposta até aqui e a de Roberto Schwarz poderiam refutar a acusação de ser paranóicas. A interpretação fenomenológica, por sustentar uma simpatia, uma identificação excessiva com Brás Cubas, seja como personagem ou como narrador, herói trágico ou tragediógrafo. A de Roberto Schwarz, por sustentar uma antipatia, uma distância excessivamente irônica com relação a ele(s).

Essa constatação aparentemente endossa uma interpretação deste trabalho como um digno representante da moda do tempo: o relativismo. Não é disso, entretanto, que se trata. A defesa da polissemia hermenêutica, do fato de que os fenômenos naturais e sobretudo os fenômenos humanos, como a arte, podem receber múltiplas significações, foi necessária em um certo momento da história, quando o inimigo, o autoritarismo do senso comum, alimentava-se de um positivismo obtuso, da crença de um acesso imediato aos fenômenos, pensados como dados positivos e independentes do movimento hermenêutico.409 Atualmente, porém, depois da “virada hermenêutica”, as coisas se complicaram. Embora o positivismo conserve grande influência em meio à desorientação do presente, e o cérebro seja possivelmente o deus mais popular, a antropologia, filha do século XX, ensinou-nos a respeitar cegamente a cultura do(s) outro(s), e nos acusa de etnocentrismo, ou coisa pior, sempre que defendemos a verdade. O problema é que, neste trabalho, que não por acaso gira em torno de uma obra de arte – lugar privilegiado para o “vir-a-ser e acontecer da verdade”410 , na bela definição de Heidegger – é justamente da verdade que se trata. E a verdade, como “vira-ser e acontecer”, não pode ser nada de positivo, fechado, acabado. Assim, não há nada mais estranho à verdade do que a paranóia. Ou melhor: a verdade da paranóia não pode ser, ela mesmo, nada de paranóico. Cumpre-nos portanto tornar visível aquilo que, em

408 Ver por exemplo a seção 2.6, “Eugênia e a borboleta preta”, em que a coxidão da “bem nascida” é a um só tempo analisada como expressão da ideologia de Brás, cuja memória transforma um defeito social em natural, e como expressão da tragicidade da Natureza, cujas manifestações são sempre marcadas pela ambigüidade de Eugênia, bela e coxa, coxa e bela. 409 Niels Bohr, o eminente físico, escreveu na primeira metade do século XX que “o oposto de uma pequena verdade é uma mentira, mas o oposto de uma grande verdade é outra grande verdade”. 410 HEIDEGGER, M. Der Ursprung des Kunstwerkes. Stuttgart: Reclam, 1995, p. 73: „Also ist die Kunst: die schaffende Bewahrung der Wahrheit im Werk. Dann ist die Kunst ein Werden und Geschehen der Wahrheit.“

nossa interpretação, vai além da paranóia, descobrindo-lhe o limite e portanto a verdade, que permaneceu estranha a Schwarz e permanecerá sempre estranha à polissemia hermenêutica, na medida em que, pelo menos a princípio, defendê-la é o mesmo que defender a legitimidade de interpretações contraditórias, complementares e... paranóicas.

A defesa da polissemia hermenêutica, sob essa ótica, nasce de uma certa má consciência com relação à própria paranóia. Incapaz de se deixar transformar pela participação na dinâmica da obra, de deixá-la produzir qualquer transformação substancial em seu ponto de partida, o intérprete, para encobrir o violento mecanismo de identificação que elimina qualquer elemento que não se deixe adequar à sua armação paranóica, acaba por tornar-se um árduo defensor da polissemia hermenêutica. Essa aparente aceitação do outro, porém, é um mero estratagema para legitimar a exclusão do outro no âmbito de sua própria interpretação.

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Se, valendo-nos da preciosa indicação de Schwarz, assumimos que é preciso considerar uma distância fundamental entre o sentido visado pelo Brás Cubas tragediógrafo – a demonstração da destinação melancólica do homem – e o sentido do romance Memórias póstumas de Brás Cubas, alcançamos o nível mais essencial da tragédia de Brás Cubas.

Em uma primeira abordagem, da qual é interessante fugir tanto quanto possível, a tragédia de Brás Cubas é uma tragédia pelo fato óbvio, ao menos para aqueles que não se entregam a uma identificação total com o protagonista, de que Brás Cubas é um personagem. Não apenas, como mostramos anteriormente, um personagem de si mesmo, um herói trágico manipulado pelo autor da tragédia, o narrador Brás Cubas, mas um personagem de outro autor: Machado de Assis. Em seu nível mais superficial, portanto, a tragédia de Brás Cubas tem a ver com o fato de ele ser um personagem-narrador, ou um narrador-personagem – aqui a distinção não importa – de outro narrador (ou romancista)411 , Machado de Assis. Assim, o furo mais imediatamente visível em sua armadura paranóica tem a ver com o fato de, sem o saber, ele não ter o controle do sentido daquilo que diz.

411 Voltaremos à distinção entre narrador e romancista, central na especulação de Walter Benjamin, na próxima e última seção deste capítulo.

A partir da constatação desse primeiro nível da tragédia de Brás Cubas, os intérpretes tradicionais foram sempre fiéis imitadores do defunto autor, e, tão exasperados quanto ele diante da impossibilidade de criar uma armadura sem furos, assumiram a tarefa de remendar o furo na armação paranóica de Brás Cubas. A sua hipótese fundamental foi sempre a seguinte: Brás Cubas, de fato, não podia ter o controle daquilo que diz, mas sem dúvida alguém haveria de tê-lo. Esse alguém, naturalmente, só poderia ser o seu autor, Machado de Assis.

O problema desse raciocínio, além de converter Machado de Assis em um paranóico sem qualquer pudor, é que ele o convertia simultaneamente em um personagem de uma tragédia mais ampla. Afinal, como sabem todos os biógrafos, só é possível compreender as intenções de um autor compreendendo aquilo que as motiva, as suas influências familiares, sociais, filosóficas, literárias, etc. E assim, na tentativa de resolver o problema já em si mesmo complexo de determinar o sentidos das Memórias póstumas de Brás Cubas, o que fizeram muitos críticos de Machado de Assis? Assumiram como condição a resolução de um outro problema, ainda mais complexo: determinar o sentido da vida de Machado de Assis. Este, como foi influenciado por autores tão díspares quanto Sterne e o Padre Antônio Vieira, Montaigne e Schopenhauer, para não falar de sua madrasta doceira, só poderia ser entendido, de acordo com a interessante lógica embutida no raciocínio de seus biógrafos, se, antes de mais nada, tais influências fossem esmiuçadas. Que daí é um passo para a necessidade de esmiuçar as influências das influências, o leitor já terá percebido. Em suma: se o homem fosse imortal, talvez até fosse um passatempo interessante escrever biografias. Como, entretanto, preferimos sempre biografias de gente morta...

A segunda abordagem da tragédia de Brás Cubas é aquela que, recusando a tentação de explicar o sentido daquilo que diz Brás Cubas a partir de uma instância exterior às Memórias póstumas, reconhece, com base em uma meticulosa atenção aos elementos presentes na própria obra, vestígios da mão invisível de uma ideologia, como é o caso de Schwarz, ou de uma disposição afetiva fundamental, como foi o nosso caso até aqui. É então a partir de uma explicitação imanente dessa ideologia ou da gênese desse afeto fundamental que tais críticos ver-se-ão capacitados a determinar o sentido daquilo que Brás Cubas, embora sem o saber, quis dizer. Ou, se se preferir, a determinar

o sentido da “obra em si mesma”. Ainda que sejam muito mais consistentes do que as precedentemente mencionadas, o problema dessas abordagens é que elas continuam imitando o modo de ser de Brás Cubas, continuam insistindo em remendar o furo de sua armadura construindo uma armadura sem furos, continuam fazendo menção a um sentido mais profundo – que não necessariamente precisa ser atribuído à intenção do autor Machado de Assis. Tais críticos, em suma, dispõem-se a estabilizar a ironia das Memórias póstumas a qualquer preço.

Já o terceiro nível da abordagem da tragédia de Brás Cubas é aquele em que a fenomenologia, pensada a princípio como explicitação de uma disposição afetiva fundamental, salta para além de si mesma e, nesse salto, chega onde já sempre esteve: o princípio de que “a obra em si mesma é tudo”.412 Diferenciando-se de todas as abordagens não fenomenológicas, e também da abordagem fenomenológica (puramente formal) que, embora reconheça a evidência do círculo hermenêutico, fica presa a um círculo hermenêutico paranoicamente vicioso, a abordagem fenomenológica que rompe a paranóia sem romper o círculo é aquela que torna visível a dinâmica das Memórias póstumas de Brás Cubas como uma encenação da tragédia da linguagem.

*

Falar em uma tragédia da linguagem, no âmbito de um trabalho que não se propõe a tematizar explicitamente o problema da essência da linguagem, é um empreendimento decerto fadado à superficialidade, mas que não pode ser negligenciado por dois motivos: em primeiro lugar, porque revela como qualquer interpretação de uma obra de arte singular, se levada às últimas conseqüências, acaba confrontando o intérprete com o problema da essência da linguagem413; em segundo lugar, porque qualquer encaminhamento de um problema tão abissal quanto esse não deve se deixar contaminar pelo paralisante ideal (universitário) de uma preparação perfeita (especialização). Nunca se estará plenamente preparado para abordá-lo, de modo que, com relação a esse problema, como aliás com relação a qualquer verdadeiro problema (filosófico), as idéias de aposta e de salto são imprescindíveis.

Nas Memórias póstumas de Brás Cubas, a tragédia da linguagem, como já foi apontado em nossas breves considerações acerca da oposição estabelecida por Lukács entre a linguagem da tragédia e a linguagem do romance, torna-se visível a partir da

412 MP, “Ao leitor”, p. 11. 413 A progressiva consciência da centralidade do problema da (tragédia da) linguagem na reflexão contemporânea aparece nas polêmicas “viradas” na trajetória filosófica de pensadores tão distintos quanto Heidegger e Wittgenstein. O primeiro foi se interessando cada vez mais por pensar a linguagem, em detrimento dos afetos (como angústia e tédio); o segundo assumiu, em sua obra tardia, que calar não era uma solução da tragédia da linguagem, e reviu a posição anti-filosófica, no dizer de Adorno, enunciada no Tractatus.

complexidade do conceito de ironia (trágica). Nelas, a ironia ora aparece como a determinação ontológica da Natureza, cuja ambigüidade escarnece dos homens, convertendo sempre o sentido de uma ação em seu oposto414; ora aparece como o determinante da pena do narrador, que, se a princípio ri com a Natureza, escarnecendo de si mesmo como personagem e dos demais personagens de sua narrativa, de modo a mostrar ao leitor como uma ação (moral ou desinteressada) nunca é o que parece, logo se revela como alguém que ri da Natureza, que deixa de agir apenas para colocar-se em uma posição superior a ela; ora aparece, nas constantes parábases do narrador desde o seu “prólogo ao leitor”, como a atitude interpretativa que é exigida do leitor, uma atitude de distanciamento com relação ao que é narrado, ainda que a princípio não com relação ao próprio ato de narrar.

A partir dessa distinção entre os três níveis da ironia nas Memórias – a ironia da Natureza, a do narrador e a do leitor – propusemos, na esteira do estudo de Christoph Menke sobre o presente da tragédia415, uma analogia com os três níveis da ironia trágica perceptíveis na tragédia de Sófocles: a ironia da ação trágica, a ironia do poeta trágico e a ironia da linguagem trágica.

A ironia da ação trágica é aquela que converte o Brás Cubas personagem – como evocado postumamente pelo narrador – em um joguete da Natureza, e que portanto se confunde com a supracitada ironia da própria Natureza. A ironia do poeta trágico seria mais fundamental do que a ironia da ação trágica, na medida em que a torna visível. Como mostramos, esse segundo nível da ironia engloba tanto o poeta quanto o espectador da tragédia, porque, ao menos nas Memórias póstumas de Brás Cubas,a tragédia do Brás Cubas personagem, isto é, do Brás que é lembrado, é a encenação dramática da filosofia do trágico do Brás Cubas narrador. Tal filosofia só se torna passível de sistematização, e se converte em algo próximo a uma visão de mundo capaz de dar forma a uma obra de arte, quando Brás Cubas assume uma distância irônica com relação a si mesmo, a seu passado e, em última instância, à sua vida. Apenas quando assume a posição de narrador, defunto autor, espectador de si mesmo, é que Brás Cubas torna-se capaz de ver o que, enquanto ainda vivia e acreditava na possibilidade de

414 A definição clássica de ironia como aquilo que torna possível ao leitor experiente interpretar um enunciado como significando o seu oposto é, segundo Wayne Booth, imprecisa. Em vez de tropo da inversão do sentido, ele prefere ver na ironia o tropo do deslocamento do sentido. Essa moderna definição de ironia amplifica a instabilidade de qualquer dizer irônico. Quando se tratava de uma mera inversão, o significado de um enunciado permanecia controlado, mas agora, que se trata de deslocamento, insinua-se a possibilidade de uma proliferação de sentido infinita. 415 Cf. MENKE, C. Die Gegenwart der Tragödie: Versuch über Urteil und Spiel. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2005.

engajar-se existencialmente, enquanto era ainda apenas um joguete ou personagem da Natureza, não tinha condições de ver.

O problema é que, não contente com ser a um só tempo espectador de si mesmo, e, a partir dessa posição pretensamente privilegiada que é a do memorialista póstumo, poeta de si mesmo, tragediógrafo de sua própria tragédia, Brás Cubas entendeu que cumpria “evangelizar” os outros homens, transmitir-lhes (retoricamente) a sua filosofia do trágico, a um só tempo universalização de suas experiências particulares e condição para a sua memória póstuma como memória seletiva – o que, em seu passado, pudesse subverter a sua visão melancólica da existência, precisava ser necessariamente eliminado.

Essa missão de evangelização, cuja ironia416 Brás degusta em suas constantes referências à Bíblia, é o que, em última instância, torna possível o nível mais radical da tragédia de Brás Cubas: a tragédia do narrador, indissociável da ironia da linguagem trágica, que, devendo ser considerada como uma espécie de ironia instável, configura o que anteriormente chamamos de tragédia da linguagem.

A tragédia do narrador começa prosaicamente, quando Brás resolve “expedir alguns magros capítulos para esse mundo”. Mas deixemos que ele mesmo nos explique, ainda que sem o saber – ou não haveria tragédia! –, qual foi a sua “falta trágica”.

Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e

o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...

E caem! – Folhas misérrimas do meu cipreste, heis de cair, como quaisquer outras belas e vistosas; e, se eu tivesse olhos, dar-vos-ia uma lágrima de saudade. Esta é a grande vantagem da morte, que, se não deixa boca para rir, também não deixa olhos para chorar... Heis de cair.417

O “senão do livro”, título do capítulo LXXI, acima reproduzido na íntegra, é, segundo o próprio Brás Cubas, o leitor. Como, entretanto, a condição para a existência do leitor é o livro, o senão do livro é o próprio livro. O título do capítulo, portanto, poderia ser igualmente “o livro como senão”. Essa interpretação da “falta trágica” de

416 Etimologicamente, o “evangelho” é a “boa nova”. Brás Cubas, entretanto, crê que a nova que tem a transmitir aos homens, como fica claro na passagem abaixo, não é propriamente boa. 417 MP, LXXI, p. 102.

Brás Cubas, que o converte em joguete de uma força superior – a linguagem – análoga à

força da Natureza da qual ele tentou escapar justamente através do recurso à escrita (de

sua tragédia), é corroborada pelo capítulo imediatamente posterior ao supracitado, que

faz par com ele, e não por acaso se intitula “o bibliômano”.

Talvez suprima o capítulo anterior; entre outros motivos, há aí, nas

últimas linhas, uma frase muito parecida com despropósito, e eu não quero dar

pasto à crítica do futuro.

Olhai: daqui a setenta anos, um sujeito magro, amarelo, grisalho, que não ama nenhuma outra coisa além dos livros, inclina-se sobre a página anterior, a ver se lhe descobre o despropósito; lê, relê, treslê, desengonça as palavras, saca uma sílaba, depois outra, mais outra, e as restantes, examina-as por dentro e por fora, por todos os lados, contra a luz, espaneja-as, esfrega-as no joelho, lava-as, e nada; não acha o despropósito.

É um bibliômano. Não conhece o autor; este nome de Brás Cubas não vem nos seus dicionários biográficos. Achou o volume por acaso, no pardieiro de um alfarrabista. Comprou-o por 200 réis. Indagou, pesquisou, esgaravatou, e veio a descobrir que era um exemplar único... Único! Vós, que não só amais os livros, senão que padeceis a mania deles, vós sabeis mui bem o valor desta palavra, e adivinhais, portanto, as delícias do meu bibliômano. Ele rejeitaria a coroa das Índias, o papado, todos os museus da Itália e da Holanda, se os houvesse de trocar por esse único exemplar; e não porque o seja das minhas Memórias; faria a mesmo coisa com o Almanaque de Laemmert, uma vez que fosse único.

O pior é o despropósito. Lá continua o homem inclinado sobre a página, com uma lente no olho direito, todo entregue à nobre e áspera função de decifrar o despropósito. Já prometeu a si mesmo escrever uma breve memória, na qual relate o achado do livro e a descoberta da sublimidade, se a houver por baixo daquela frase obscura. Ao cabo, não descobre nada e contenta-se com a posse. Fecha o livro, mira-o, remira-o, chega-se à janela e mostra-o ao sol. Um exemplar único! Nesse momento, passa por baixo da janela um César ou um Cromwell, a caminho do poder. Ele dá de ombros, fecha a janela, estira-se na rede e folheia o livro devagar, com amor, aos goles... Um exemplar único!

As duas longas citações em seqüência justificam-se porque, além de “o senão do

livro” não poder ser compreendido satisfatoriamente sem a acusação ao

“bibliômano”418 , elas revelam à perfeição a articulação entre os diversos níveis da

tragédia de Brás Cubas analisados ao longo deste capítulo, simultaneamente

descortinando qual é a tarefa do leitor das Memórias póstumas.

No capítulo em que aborda “o senão do livro”, depois de mencionar que começa

a se arrepender de sua obra, cujas monotonia e “contração cadavérica”, além do “cheiro

418 Há um fenômeno curioso nas Memórias póstumas de Brás Cubas, que, até onde eu sei, recebeu pouca atenção dos críticos, e não obstante mereceria um estudo minucioso: o fenômeno dos capítulos-casados, que vêm em seqüência, e, apesar de poderem ser lidos individualmente, ganham um sentido muito mais consistente quando analisados em conjunto. Dois exemplos, além do agora em questão, me vêm imediatamente à memória: o dos capítulos XXXVIII e XXXIX (analisado no capítulo anterior deste trabalho); e o dos capítulos LXVIII e LXIX (analisado por Roberto Schwarz em seu livro).

de sepulcro”, seriam um “vício grave”, Brás Cubas interrompe o que parecia o preâmbulo a mais uma de suas pregações melancólicas e jocosamente quebra a expectativa do leitor acostumado à “flor amarela e mórbida”419 que traz em sua lapela, e não raro também em seu discurso. Afirma que o vício mais grave do livro seria o leitor, ou melhor, o descompasso entre o que Brás acredita ser a expectativa do leitor – uma “narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente”, que, como tal, chegue logo ao fim, ao que interessa, ao sentido último que justificaria o ato de leitura – e o que ele diz ser a sua marca autoral: um estilo como o dos ébrios, que, em imitação fiel de sua própria representação do estilo da Natureza e do curso da História, faz seus personagens serem chacoalhados por uma série de sensações contraditórias – “resmungam, urram, gargalham” – até, por fim, apresentar pomposamente a absoluta falta de sentido de toda essa azáfama, a queda inexorável, a morte.

Entre o preâmbulo melancólico e a conclusão melancólica do parágrafo, um senão emperra a marcha inexorável da retórica de Brás Cubas: o leitor. Será que, pergunta-se o narrador, a expectativa de sentido do leitor, que não por acaso tem “pressa de envelhecer”, terá a força de subverter o absoluto não sentido de qualquer narração, cuja explicitação é o que move o narrador Brás Cubas e ao mesmo tempo responde pelo “cheiro de sepulcro” dos “magros capítulos” de seu livro? A resposta consoladora que Brás dá a si mesmo, depois, é claro, de nos brindar com mais uma de suas frases de efeito – “Esta é a grande vantagem da morte, que, se não deixa boca para rir, também não deixa olhos para chorar...” –, é sintética: “Heis de cair”.

“Heis de cair.” Se, sob a ótica de Brás, essa “profecia” aponta para o fato de a inevitabilidade da morte inevitavelmente legitimar a vitória derradeira de sua filosofia do trágico, justificando a sua visão de uma inexorável destinação melancólica do homem, há que se perguntar por que, nas primeiras linhas do capítulo seguinte, ele cogita a possibilidade de excluir o capítulo anterior. “Talvez suprima o capítulo anterior; entre outros motivos, há aí, nas últimas linhas, uma frase muito parecida com despropósito, e eu não quero dar pasto à crítica do futuro.” Por que Brás Cubas continuaria inquieto face à possibilidade de o leitor subverter o sentido que se esforça por emprestar à sua obra se, como é certo, todos hão de cair?

A inquietude de Brás Cubas, cuja origem ele não consegue chegar a formular – não chega a nos explicar por que não quer “dar pasto à crítica do futuro” – é para nós

419 MP, XXV, p. 55.

uma indicação suficiente de que, nas Memórias póstumas de Brás Cubas, a linguagem tragicamente se volta contra ele.420 Ele percebe que algo não soa bem, que “o senão do livro” devia ser simplesmente excluído, que o melhor mesmo era sequer jamais ter chegado a mencioná-lo. Mas, para ele, era tarde demais. A despeito de seu perigoso “despropósito”, o capítulo anterior já não poderia mais ser eliminado. E o pasto à crítica do futuro, que Brás Cubas de fato deveria ter evitado fornecer, caso ele realmente tivesse um controle absoluto sobre (o sentido de) sua obra, acabou sendo dado.

“Heis de cair”, disse Brás Cubas. Mas a crítica do futuro – ao menos desde Roberto Schwarz – não caiu. Não caiu nas malhas da armação paranóica de Brás Cubas. Soube guardar a devida distância com relação a ela, e, voltando ironicamente o procedimento do narrador contra ele próprio, tornou-se finalmente capaz de surpreender um aspecto das Memórias póstumas de Brás Cubas que o defunto autor não teria como enxergar, mas que, não obstante, está lá. E assim o leitor, mais superficial senão do livro, torna-se capaz de surpreender o livro como o seu próprio senão. O livro em sua materialidade, o livro em seu despropósito, o livro em sua negatividade, o livro em sua equivocidade: o livro.

Evidentemente, porém, assim como resiste a se deixar submeter aos propósitos retóricos de Brás Cubas, o despropósito contido no aforismo “heis de cair” não pode ser simplesmente reinterpretado de modo a propiciar a negação absoluta do sentido inicial – melancólico – visado por Brás Cubas e servir, por exemplo, ao propósito sociológico da leitura de Schwarz. Não. “A inversão da metafísica é ainda metafísica”. Aqui, como já terá ficado claro, a prioridade ontológica é da tensão fundadora da obra de arte, no seio da qual o excluído é justo o princípio do terceiro excluído, isto é, aquilo que permitiria estancar o movimento hermenêutico.

O leitor, com o livro nas mãos, encara-o, busca um novo propósito, um novo sentido ao qual submetê-lo, mas, ainda que por breves instantes, emudece diante do olhar com que o livro, em seu despropósito, mira-o de volta.421 Nesse jogo de olhares, o leitor se aproxima da verdade das Memórias póstumas de Brás Cubas. Um exemplar

420 Quando afirmamos que a linguagem se volta contra o narrador, poderíamos igualmente, como é costume na bibliografia secundária sobre as Memórias, falar que Machado de Assis se volta contra Brás Cubas. Mas, como esperamos ter mostrado ao longo deste trabalho, pensar a tragédia da linguagem é um empreendimento muito mais concreto (em sentido hegeliano) do que postular quais seriam as intenções de um certo Machado de Assis. Até porque, em última instância, também essas intenções estariam sujeitas à mesma ironia instável que configura a tragédia (da linguagem) de Brás Cubas. 421 Cf. MP, VII, p. 26: “O silêncio daquela região era igual ao do sepulcro: dissera-se que a vida das coisas ficara estúpida diante do homem.” Dissera-se que a vida das coisas vive de sua recusa às pretensões hermenêuticas do homem, só assim podendo conservar a sua aura.

que não se deixa reduzir a nenhum sentido previamente dado. Um exemplar cuja ironia não se deixa estabilizar definitivamente. “Um exemplar único!”

Brás Cubas, porém, imaginando o leitor do futuro a se aproximar do furo em sua armadura paranóica, reage. Se, Brás Cubas bem o sabe, não está mais em seu poder não “dar pasto à crítica do futuro”, ao menos ainda estaria em seu poder valer-se de sua ironia corrosiva para denunciar o ridículo da crítica, que, como qualquer afã humano, só se deixaria compreender como sintoma da ignorância dos homens que a exercitam com relação à sua própria condição.

Usando mais uma vez a sua estratégia de minar uma atividade humana chamando a atenção para suas manifestações mais risíveis e vãs, Brás Cubas identifica a crítica à bibliomania. A partir dessa identificação, cuja aparência de naturalidade encobre a violência de seu martelo, discutida em maior detalhe na seção anterior, será fácil para o narrador realçar o que há de ridículo no seu potencial inimigo do futuro, pelo qual, como bom paranóico que é, ele já se sente antecipadamente ameaçado.

O crítico, ou melhor, o bibliômano, tem, segundo a descrição de Brás, duas características que o tornam digno de desdém: o amor da raridade pela raridade, que não cuidaria do verdadeiro valor da obra que se tem em mãos – “ele rejeitaria a coroa das Índias, o papado, todos os museus da Itália e da Holanda, se os houvesse de trocar por esse único exemplar; e não porque seja o das minhas Memórias; faria a mesma coisa com o almanaque de Laemmert, uma vez que fosse único”; e a alienação, a indiferença aos acontecimentos sociais e políticos de seu tempo, que o faria dar de ombros, fechar a janela, estirar-se na rede e folhear o livro devagar, “com amor, aos goles”, mesmo quando “passa-lhe por baixo da janela um César ou um Cromwell, a caminho do poder”.

Mas, diz-nos o narrador, para arrematar o retrato derrisório do crítico do futuro:

O pior é o despropósito. Lá continua o homem inclinado, com uma lente no olho direito, todo entregue à nobre e áspera função de decifrar o despropósito. Já prometeu a si mesmo escrever uma breve memória, na qual relate o achado do livro e a descoberta da sublimidade, se a houver por baixo daquela frase obscura. Ao cabo, não descobre nada, e contenta-se com a posse. Fecha o livro, mira-o, remira-o, chega-se à janela e mostra-o ao sol. Um exemplar único!

Essa é a provocação que os críticos do futuro, e não apenas Roberto Schwarz, jamais conseguiram aceitar. Mordidos pela afirmação do duplo despropósito que seria inerente à crítica – o despropósito de investigar despropósitos e o despropósito de, ao cabo, não chegar a nenhuma conclusão, não realizar qualquer propósito, tendo de se contentar com a ambígua posse de um exemplar inutilmente único –, tomaram para si a tarefa de desmentir o defunto autor, legitimando a sua própria posição através da construção de uma visão da crítica de arte como uma ciência, uma teoria voltada para a estabilização do sentido das obras de arte – o que, no caso das Memórias póstumas, implica a estabilização da ironia instável inerente a esse romance, ao “estilo de ébrio” de Brás Cubas.

Alguns o fizeram encontrando, “por baixo daquela frase obscura”, daquele oracular “heis de cair”, o propósito de transmitir uma filosofia trágica, melancólica, niilista, geralmente atribuída a um suposto pessimismo de Machado de Assis; outros, ainda mais radicais em não cair na esparrela do narrador, encontraram, “por baixo daquela frase obscura”, uma sofisticada e coerente crítica da ideologia, realizada por Machado de Assis através e a despeito de seu protagonista, cujo propósito seria contribuir para a construção de um pensamento de esquerda no Brasil.

Ao contrário desses críticos, parece-nos que, a despeito de suas intenções paranóicas, as palavras de Brás Cubas devem ser ouvidas sem qualquer trincar de dentes. Será que devemos ficar vexados pelo fato de a nossa tarefa crítica poder ser contada entre os despropósitos? Olhado sob uma luz distinta da que ele se esforça em produzir, o bibliômano ridicularizado por Brás Cubas, que “lê, relê, treslê, desengonça as palavras, saca uma sílaba, depois outra, mais outra, e as restantes, examina-as por dentro e por fora, por todos os lados, contra a luz, espaneja-as, esfrega-as no joelho, lava-as, e nada; não acha o despropósito”, não é muito distinto de nós.

O fato de que, “ao cabo, por baixo daquela frase obscura, não descobre nada”, é

o mais vigoroso indício de que, lidas, relidas e treslidas, aquilo que de mais precioso as Memórias póstumas de Brás Cubas têm a nos oferecer é a experiência, fugidia mas absolutamente necessária, da sua insuperável negatividade. “O único sentido íntimo das cousas”, dizia o guardador de rebanhos, “é elas não terem sentido íntimo nenhum”.422

O fato de que algo, nas Memórias póstumas, resiste a nossas investidas paranóicas, negando-se a compactuar com nossos mais elevados propósitos, retraindo-se a qualquer atribuição de sentido, é, em última instância, aquilo que, quebrando o caráter potencialmente vicioso do círculo hermenêutico, deixa finalmente luzir a alteridade

422 PESSOA, F. “O guardador de rebanhos”. In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.

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radical da obra de arte, que é não apenas o fundamento de sua autonomia, mas de nossas sempre renovadas tentativas de subjugá-la.

Apenas quando o intérprete das Memórias póstumas de Brás Cubas é capaz de incorporar a negatividade inerente à tragédia do narrador à sua própria interpretação, recusando a tentação de eliminar de sua leitura aqueles elementos cuja alteridade tende a desestabilizá-la, é que, indo além de uma problemática aceitação tácita da polissemia hermenêutica, ele poderá fazer uma experiência desta obra de arte como “o lugar de vir-a-ser e acontecer da verdade”.423 Se, em vez de se ocupar em estabilizar violentamente a instabilidade inerente à ironia trágica das Memórias póstumas, o leitor se empenhar em participar da dinâmica da obra em si mesma, não se sentindo nauseado pela oscilação a que a tensão que constitui a obra lhe obrigará, talvez lhe seja dado, ao cabo de sua leitura, vislumbrar a verdade que a obra põe em obra: o saldo de Brás Cubas.

3.11. O saldo de Brás Cubas

“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.”424 Esse é o “pequeno saldo” de Brás Cubas, “derradeira negativa de um capítulo de negativas”, segundo consta do último capítulo de suas memórias. Como mostramos na seção 3.9., essa célebre afirmação confirma a leitura fenomenológica que vê na melancolia a disposição afetiva fundamental que modula tudo o que é lembrado pelo defunto autor. O fato de ele ser um memorialista, sob essa ótica, deve ser lido como uma espécie de reiteração de sua incapacidade de esquecer um acontecimento decisivo do passado – no caso, os sucessivos encontros com a finitude e a radical alteridade que configuram a tragédia do Brás Cubas que é lembrado, do Brás Cubas personagem e objeto de si mesmo –, incapacidade estreitamente ligada à (in)disposição melancólica e ao ressentimento que lhe é correlato. Esse ressentimento, que se manifesta através de uma ironia que a tudo corrói, é o que em última instância o teria levado a afirmar que, face a uma Natureza que “só dá a vida para poder dar a morte”, a única vitória possível,

o único “pequeno saldo” é não realizar nada. Só o que já não é, segundo a lógica do narrador, seria capaz de resistir ao movimento de vir-a-ser como um vir-a-não-ser, o qual caracteriza, isto é, macula a vida. Não ter filhos, de acordo com essa compreensão, é a única verdadeira realização, já que concorre para que alguma criatura possa usufruir do maior de todos os bens: não ter nascido.

423 HEIDEGGER, M. Der Ursprung des Kunstwerkes. Stuttgart: Reclam, 1995, p. 73. 424 MP, CLX, p. 173.

Essa abordagem do saldo de Brás Cubas, como mostramos em diversos momentos deste trabalho, repousa sobre uma identificação excessiva com a trajetória do personagem e, conseqüentemente, com a filosofia do trágico do narrador, como se, depois de tudo por que passou, ele não tivesse qualquer outra saída senão a prostração e a ira dos melancólicos. Além disso, ela elide uma pergunta que advém da leitura mais superficial da última frase das Memórias póstumas: será que a identificação de Brás Cubas entre não ter filhos e não transmitir a nenhuma criatura o legado de nossa miséria procede? Não haveria outras maneiras de transmiti-la?

Na seção anterior, porém, sugerimos que a simpatia – disposição crítica exigida pela fenomenologia e também reivindicada pelo próprio Brás Cubas em seu prólogo “ao leitor” – por um romance como as Memórias póstumas de Brás Cubas, cujo protagonista permanece ironicamente distante de si mesmo – seja enquanto ainda vivia, e se mostrava incapaz de qualquer engajamento; seja já defunto, quando seu passatempo era, a partir da distância privilegiada e (pretensamente) desinteressada dos mortos, revelar o absurdo e o ridículo de todas as ocupações humanas –, implica que se assuma com relação ao narrador o mesmo tipo de distância irônica que ele assume com relação a seus personagens.

Vista à distância, após uma segunda leitura, ou, de acordo com a indicação do próprio título da obra, postumamente, a melancolia que serve de motor às memórias do narrador aparece como o fundamento de uma armação paranóica destinada a fundamentar ontologicamente a destinação melancólica do homem – e não apenas de Brás Cubas. A autoridade do argumento biográfico utilizado por Brás revela-se, sob essa perspectiva simpaticamente irônica, como um estratagema retórico, na medida em que dificilmente o leitor cogitaria a possibilidade de um homem perder a própria vida apenas para não perder a razão. Lidas postumamente, portanto, como aliás a própria composição da obra nos obriga a lê-la, as memórias de Brás Cubas, ao menos no entender de seu narrador, perfazem um círculo perfeito. Perfeitamente vicioso. A compreensão da destinação melancólica do homem e do fracasso do protagonista em criar um “emplasto anti-hipocondríaco”, apresentada ainda nas primeiras páginas do romance, vê-se confirmada sem arestas na última página, quando Brás regozija-se todo ao afirmar que “aí vos ficais eternamente hipocondríacos”.

O fato de que essa confirmação pressupõe, da parte do narrador, um controle absoluto da própria memória; um controle absoluto da significação de suas palavras; e, fundamentalmente, uma visão absolutamente transparente de si mesmo, é incontestável.

“Ao verme”, escreve Brás na célebre dedicatória de seu livro, “que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico como saudosa lembrança estas Memórias póstumas”. A tensão estabelecida pelo autor através desse jogo de palavras entre a reflexão, o ato de ver-me, e os vermes, que a tudo corroem, condensa genialmente a idéia de que a auto-reflexividade levada por Brás Cubas às últimas conseqüências – a hipertrofia de sua própria consciência e a sua incansável ironia – é o fundamento último de sua visão da vida como corrosão, e, conseqüentemente, de suas inação e reação, de sua morte e de suas contrações cadavéricas.

O problema é que, ao contrário de sua presunção – eis a tragédia do narrador –, Brás Cubas jamais chegou a ter o controle absoluto da situação, jamais chegou a ver-se de modo tão transparente quanto gostaria e, por mais que recuasse ironicamente, tentando expor as suas próprias motivações e as de seus personagens, sempre acabou esbarrando em algo que resistia até mesmo às violentas pretensões hermenêuticas de sua consciência hipertrofiada. Esse núcleo resistente, duro, esse resto indevassável, esse excesso que condena sempre a reflexão ao fracasso, respondendo em última instância por seu caráter potencialmente infinito, é, em seu sentido mais próprio, o saldo de Brás Cubas, o qual não pode ser definitivamente eliminado pelo simples fato de que não preexiste à reflexão e à interpretação, mas é produzido por elas, em um movimento essencialmente dialético.

Na realidade, esse resto, esse rastro, esse furo na consciência paranóica do narrador não é propriamente o saldo de Brás Cubas, mas o saldo das Memórias póstumas de Brás Cubas, cuja verdade encontra-se na diferença, na tensão que se estabelece entre os propósitos paranóicos de seu (pseudo-)autor – em alguma medida, também os (pseudo-)leitores das Memórias devem ser considerados como pseudo-autores – e aquilo que, em sua obra, resiste ao sentido que ele quer impor.

Na primeira parte deste trabalho, que engloba os capítulos 1 e 2, tentamos pensar esse saldo, esse resto, a partir da noção fenomenológica de disposição afetiva (Stimmung). A exposição de disposições afetivas, pensadas como aquilo que, preexistindo a toda e qualquer reflexão, modulam o nosso relacionamento com as pessoas e as coisas que povoam a nossa paisagem existencial, ou que, no caso de Brás Cubas, dão o tom de sua(s) memória(s), determinando o que será lembrado e o que será esquecido, foi a nossa primeira tentativa de aproximação do ponto cego do narrador, daquilo que, não se deixando positivar, resiste à sua auto-reflexão. Mostramos então como a melancolia era o acesso privilegiado à perspectiva do narrador e portanto à compreensão do sentido das Memórias póstumas, na medida em que a visão brascubiana da destinação melancólica do homem só é verdadeira a partir de uma perspectiva... melancólica, ou seja, não pode reivindicar a universalidade almejada pelo filósofo Brás Cubas.

A segunda parte desse trabalho, como consta das primeiras páginas da última seção, brotou de um incômodo. Se uma anatomia da melancolia de Brás Cubas era mesmo o acesso privilegiado ao ponto cego do narrador, e conseqüentemente ao sentido de sua obra, como entender as constantes referências explícitas de Brás Cubas à sua própria melancolia como a tinta com a qual teria redigido as suas memórias? Essas referências não demonstrariam que também a sua melancolia estaria a serviço de um ponto cego mais fundamental, este sim o determinante do sentido da obra?

Na resposta a essas questões, fomos inevitavelmente reconduzidos a um embate com Roberto Schwarz, para quem a filosofia melancólica do narrador não seria nada além de um estratagema para fundamentar ontologicamente a impossibilidade de transformar uma sociedade cuja injustiça garantia os privilégios da elite personificada por Brás Cubas. Sob essa ótica, em que a melancolia aparece como um instrumento ideológico, tal instrumento estaria na verdade a serviço da crítica da ideologia visada por Machado de Assis, que, como autor, seria o verdadeiro ponto cego do narrador.

A partir da insuportável tensão que experimentamos enquanto oscilávamos entre essas duas propostas contraditórias de interpretação das Memórias póstumas, ambas absolutamente consistentes, tornou-se-nos subitamente claro o que, a despeito de todas as suas diferenças, as unia: a pretensão, aliás idêntica à de Brás Cubas, segundo a leitura fenomenológica, ou de Machado de Assis, segundo a leitura sociológica, de eliminar de suas respectivas armações paranóicas qualquer elemento, qualquer resto, qualquer excesso que as pudesse desestabilizar.

“Louco não é quem perdeu a razão, mas sim quem perdeu tudo, menos a razão.” A partir deste célebre mote de Chesterton, que sintetiza bastante bem a tensão hermenêutica fundamental entre a aceitação do círculo hermenêutico e a sua transformação em um círculo vicioso, ou paranóico, formulamos finalmente a idéia de que o saldo das Memórias póstumas de Brás Cubas não é a absoluta negação da existência, nem tampouco a absoluta desconstrução do pensamento conservador que associa ideologicamente Natureza e Sociedade.

O saldo das Memórias póstumas de Brás Cubas é o fato de que, a despeito de Brás Cubas, cuja paranóia contaminou a maior parte de seus leitores, ele acabou por nos transmitir o legado de nossa miséria através de seu livro – o filho que teve quando já parecia tarde demais para realizar o que quer que seja. Esse legado, porém, ao contrário do que a um melancólico como ele possa ter parecido, nada tem de insuportável. Afinal, é a nossa miséria diante da natureza (e) da linguagem, a nossa incapacidade de estabilizar definitivamente o seu sentido, que, em uma obra de arte como as Memórias póstumas de Brás Cubas, motiva-nos a sempre de novo retomar a tarefa da interpretação.

O fato de que toda a interpretação baseia-se em uma seleção daqueles elementos (ou episódios) que, na obra interpretada, seriam significantes e daqueles que não seriam, constitui, por si só, uma tensão dialética no seio da qual qualquer interpretação, por mais consistente que seja, sempre produzirá um resto – os elementos selecionados como não significantes. Esse resto, ou saldo, ao ser ouvido em sua (in)significação própria – diferente, estranha, estrangeira, inassimilável –, necessariamente causará dissonâncias no seio da violenta harmonização de elementos díspares da qual depende a produção de (um) sentido.

O que as Memórias póstumas de Brás Cubas nos revelam é que, ao menos no âmbito da arte, o postulado ético do acolhimento da alteridade não depende de qualquer justificação moralista ou expectativa de punição para se impor. Afinal, o jogo livre entre imaginação e entendimento que a inesgotável complexidade das Memórias põe em movimento faz da mera busca pelo sentido prometido, mas sempre adiado, ou do sentido encontrado, mas logo subvertido por um elemento que não havia sido considerado, a fonte de um prazer que se torna cada vez mais raro: o prazer do verdadeiro entretenimento, que transfigura a melancolia de Brás Cubas face à finitude constitutiva da existência na alegria de seus leitores face à finitude constitutiva da compreensão.

Brás Cubas, enfim, acabou por nos legar, ainda que à revelia de si mesmo, a fórmula do emplasto anti-hipocondríaco: as Memórias póstumas de Brás Cubas, “um exemplar único”, evidência de que a tragédia da linguagem é a vida da interpretação.

EPÍLOGO

Da autonomia à soberania da obra de arte

“Apenas o incompleto pode ser compreendido,

pode nos levar mais além. O completo pode ser

apenas desfrutado.”425

Friedrich Schlegel

A idéia de uma tragédia de Brás Cubas introduzida no último capítulo permitiu-nos mostrar como as Memórias póstumas de Brás Cubas, redigidas por um narrador-personagem, exigem do intérprete uma consideração atenta do que está em jogo no próprio ato de narrar, que, tragicamente, muitas vezes ilumina o que é narrado por meio de uma subversão do seu sentido imediato ou aparente. Esse deslocamento subversivo do sentido, se muitas vezes serve apenas à sua inversão, outras serve à sua proliferação, de modo que se torna impossível para o narrador controlar ou mesmo prever com segurança as possíveis interpretações a que a sua obra dará ensejo. Quando a subversão do sentido de um dizer iguala-se à sua simples inversão, é possível identificar a presença de uma ironia estável; quando, por outro lado, serve de fundamento à sua proliferação, a ironia de que se trata tem de ser pensada como uma espécie de ironia instável.

Inspirados pela célebre afirmação de Lukács de que “a ironia é a objetividade do romance”426, mostramos, no último capítulo, como uma reflexão sobre as diferentes interpretações do uso da ironia no romance machadiano pode ser um fio condutor privilegiado para a exposição de sua verdade, aqui pensada como aquilo que não se deixa positivar, imobilizar, instrumentalizar.

425 SCHLEGEL, F. apud BENJAMIN, W. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. São Paulo: Iluminuras, 2002, p. 76. 426 LUKÁCS, G. Teoria do romance. Op. cit., p. 93.

Se, a partir da leitura fenomenológica empreendida ao longo deste trabalho, a ironia das Memórias apareceu como um instrumento para a imitação, no plano da escritura, da relação entre geração e corrupção, cuja consciência dilacera e revolta um melancólico Brás Cubas, ao qual não restaria nenhuma outra saída senão a vingança; com base no questionamento da excessiva simpatia pelo narrador-personagem que essa leitura pressuporia, a ironia passou a aparecer como um instrumento utilizado por Machado de Assis427, para, através e contra o seu narrador-personagem, empreender uma crítica da ideologia. Apesar de sua aparente disparidade, mostramos que ambas essas leituras definem a ironia machadiana como uma espécie de ironia estável, assim emperrando o movimento da obra, isto é, da interpretação. O irônico em ambas essas leituras, cabe repetir, é o fato de, ao terem exposto o ponto cego do narrador, a sua melancolia ou a sua ideologia, não terem problematizado o seu próprio ponto cego: a sua paranóica expectativa de sentido.

Quando se atenta, no entanto, para o fato de que, no ato mesmo de negar a vida, Brás Cubas a afirma com a criação de uma obra de arte; e também para o fato de que, apesar de sua classe social, Brás Cubas ainda assim toca em uma sabedoria trágica cuja origem, a “dor-homem”428 , dificilmente se deixaria reduzir à mera necessidade de conservar seus privilégios sociais, as leituras melancólica e ideológica, sem perderem a sua força, esbarram em algo que, na obra, resiste à estabilização de seu sentido.

Essa resistência é o que mais propriamente caracteriza a ironia machadiana, que é instável na medida em que, contrariamente a suas intenções, o narrador também afirma a vida quando queria unicamente negá-la; e o autor também encontra a contradição humana onde queria encontrar apenas a contradição brasileira. Entre um pólo e outro, não é já o (pseudo-)autor429 , mas o leitor quem hesita. Descobre, boquiaberto, que tem em mãos “um exemplar único”430, ou, nos termos deste trabalho, autônomo.

Único justamente porque resistente ao império do sentido previamente projetado pelo leitor. Autônomo porque, não se deixando domesticar pelo mecanismo de identificação que a atribuição de um sentido estável para a obra de arte pressupõe,

427 A menção a Machado de Assis, além de evocar o modo como Schwarz constrói o seu argumento, não tem indica de forma alguma que tenhamos pretendido devassar as intenções do autor. Machado de Assis, aqui, é antes o nome daquilo que, na obra, se faz tragicamente à revelia do narrador. 428 NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p. 165: “A dor-homem é a mais profunda dor.” 429 Cf. MP, XXVI, p. 56: “O autor hesita”. 430 MP, LXXII, p. 103.

produz em seu leitor um choque, um “empacamento”431 não muito distinto daquele experimentado diversas vezes por Brás Cubas ao longo de sua trajetória.

Boquiaberto embora, o leitor, como aliás imaginado pelo próprio Brás no capítulo sobre o bibliômano, não tem pressa. Sorve a obra “aos goles”432, tirando desse estranhamento, dessa hesitação ou dessa oscilação a que as Memórias póstumas o obrigam, aquele excelso prazer desinteressado que Kant associa à experiência estética e que qualquer leitor da obra machadiana tão bem conhece.

Se, para o narrador e os leitores mais afoitos da obra, essa trágica instabilidade que ela ironicamente expõe é a origem de uma dor insuportável, para a qual é necessário dar um fim o quanto antes, o leitor que se deixa inundar pelo prazer estético proporcionado por ela acaba reconhecendo que a materialidade das Memórias póstumas de Brás Cubas, a sua existência tátil como um “exemplar único”, é “o legado de nossa miséria”433 e exatamente por isso – eis o saldo (que escapa ao controle) de Brás Cubas!

– a fórmula do “emplasto anti-hipocondríaco”434 que Brás Cubas tragicamente acabou por nos transmitir.

O que o prazer derivado da experiência de ler uma obra de arte como as Memórias póstumas de Brás Cubas nos ensina, portanto, é que, em “um mundo abandonado por deus”435, a melancolia face àquilo que não se deixa apreender, ao nada que habita o âmago do ser, pode dar lugar a uma “virilidade madura”436, nutrida pela sabedoria de que o cultivo da interpretação de uma obra como essa vale mais do que a posse de quaisquer de seus frutos, ou sentidos.

Esse cultivo, de que esperamos este trabalho tenha sido um exemplo, tem a ver com a necessidade de retornar sempre e de novo à obra mesma, às palavras-coisas que a conformam, para, deixando vir à tona os elementos significantes excluídos que tendem a subverter a paranóia embutida em qualquer interpretação, mantê-la viva, ou melhor, intensificá-la.437 Se Brás Cubas esforçou-se ao máximo por apagar, em sua narrativa,

431 Cf. MP, XXI, p. 50; XXIII, p. 53; XXXII, p. 64; XL, p. 71; XLI, p. 72. 432 MP, LXXII, p. 103. 433 MP, CLX, p. 173. 434 MP, II, p. 17. 435 LUKÁCS, G. Teoria do romance. Op. cit., p. 90: “O romance é a epopéia do mundo abandonado por Deus; a psicologia do herói romanesco a demoníaca; a objetividade do romance, a percepção virilmente madura de que o sentido jamais é capaz de penetrar inteiramente a realidade, mas de que, sem ele, ela sucumbiria no nada da inessencialidade”. 436 Ibidem. O grande exemplo literário dessa virilidade madura é o de Santiago, o pescador de “O velho e

o mar”, de Hemingway. 437 A morte do narrador das Memórias póstumas, em antecipação das reflexões benjaminianas sobre o ocaso da narrativa (e a ascensão do romance) e a pobreza de experiência (substituída pelas vivências e o

todos os rastros que traíssem a sua idéia fixa de uma destinação melancólica do homem,

o fato de que tenha fracassado é o maior sucesso que as Memórias póstumas de Brás Cubas poderiam almejar. É o fracasso de Brás Cubas, e também de seus mais célebres leitores, que permite descobrirmos na ironia tragicamente instável das Memórias o caráter ironicamente trágico da própria linguagem e conseqüentemente da própria realidade.

*

O mistério de Brás Cubas, como o nomeamos na introdução deste trabalho, dizia respeito à dificuldade em conciliar a negação sistemática da existência empreendida pelo narrador do romance e o prazer estético que essa negação proporcionou a tantas gerações de leitores. Se levarmos em conta a leitura fenomenológica anteriormente exposta, que apresenta as memórias póstumas como uma armação paranóica de seu narrador com vistas a comprovar a destinação melancólica do homem, como explicar o prazer causado pela destruição sistemática de todos os ídolos da humanidade?

Em uma primeira abordagem, esse prazer deriva da impossibilidade de Brás Cubas, dada a irônica instabilidade da linguagem, que ele julgava dominar mas que acabou por lográ-lo, alcançar o seu propósito. O fracasso de Brás Cubas é a origem do prazer gerado pelo inacabamento das Memórias póstumas, que encenam magistralmente a vida da interpretação, expondo como o círculo hermenêutico só deixa de ser um círculo vicioso quando as expectativas de sentido do intérprete são subvertidas por elementos que não se deixam integrar à sua armação paranóica.

As memórias de Brás Cubas podem ser lidas, em vocabulário kantiano, como um múltiplo (sensível) de episódios que, sintetizados por sua memória (ou imaginação), prometem a cada passo um conceito determinante que permitiria fixar o seu sentido, isto é, o absoluto não sentido de toda a faina dos homens. Essa promessa, entretanto, não é

império da informação), aponta para uma segunda vida em que o narrador não será apenas o defunto autor condenado ao subsolo da própria interioridade, mas o leitor responsável por recolher os restos (como o Lumpensammler ou o chiffonier) excluídos de sua narrativa, deixando com que nela cintile algo outro. Cf. GAGNEBIN, J.M. Lembrar escrever esquecer. Op. cit., p. 118: “Ao juntar os rastros/restos que sobram da vida e da história oficiais, poetas, artistas e mesmo historiadores, na visão de Benjamin, não efetuam somente um ritual de protesto. Também cumprem a tarefa silenciosa, anônima mas imprescindível, do narrador autêntico e, mesmo hoje, ainda possível: a tarefa, o trabalho de apokatastasis, essa reunião paciente e completa de todas as almas no Paraíso, mesmo das mais humildes e rejeitadas, segundo a doutrina teológica (julgada herética pela Igreja) de Orígenes, citado em mais de uma passagem por Benjamin.”

cumprida. A complexidade das lembranças de Brás Cubas é apenas em princípio harmonizável com o sentido que ele lhes quer impor, mas não de fato, de modo que o leitor das Memórias póstumas é obrigado a prosseguir indeterminadamente em sua reflexão. Dessa reflexão potencialmente infinita, norteada pelo princípio da finalidade sem fim, ensina Kant, brota o prazer associado à experiência estética.

Esse prazer, cumpre salientar, não implica um simples apagamento da dor sentida por Brás Cubas após o(s) seu(s) encontro(s) com a Natureza, cuja incontornabilidade acabou por convertê-lo em um melancólico. Implica, ao contrário, uma outra maneira de senti-la.438 O que haveria de insuportavelmente doloroso na descoberta da finitude para um homem que pressupõe que a Natureza deveria ser “só mãe, não inimiga”439 , há de prazerosamente doloroso na descoberta da finitude da interpretação de uma obra de arte, ponto de partida para que sempre possamos voltar a ela e descobrir algo que anteriormente nos escapara.

A questão é que, se em Kant o prazer desinteressado face à impossibilidade de determinar de uma vez por todas o sentido de uma obra de arte caracteriza exclusivamente a experiência estética, já que no âmbito das experiências teórica e prática seria possível encontrar um conceito determinante que poria um fim à reflexão, de acordo com as Memórias póstumas de Brás Cubas, “a obra (de arte) em si mesma é tudo”. Uma obra singular como a de Machado de Assis, de acordo com o sumo desse aforismo, não encenaria unicamente a vida da interpretação de uma obra de arte ou a dinâmica que constitui a experiência estética, mas sim a vida da interpretação em geral, a experiência em sentido próprio440, revelando finalmente que “a obra em si mesma é tudo”441, porque tudo em si mesmo é obra.

Essa consideração, que, remontando ao romantismo alemão, está à base da hermenêutica fenomenológica, acaba por dinamitar a topologia kantiana da experiência, e permite um novo desdobramento do problema da autonomia da obra de arte. Se, a princípio, a contribuição kantiana é fundamental, na medida em que permite atribuir à obra de arte uma lei própria e assim arrancá-la às estratégias filosóficas tradicionais de

438 NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Op. cit., p. 57: “Dizeis: ‘A vida é dura de suportar.’ Mas para que teríeis, de manhã, a vossa altivez, e, de noite, a vossa submissão? A vida é dura de suportar; mas, por favor, não vos façais de tão delicados! Não passamos, todos juntos, de umas lindas bestas de carga. Que temos em comum com o botão de rosa, que estremece ao sentir sobre o corpo uma gota de orvalho.” 439 MP, VII, p. 25. 440 A palavra alemã para experiência, Erfahrung, diz respeito ao ato de viajar (fahren) para além dos limites do habitual e previamente conhecido, constituindo portanto a idéia de um atravessamento que não é possível para aqueles que ficam presos ao mecanismo de identificação. 441 MP, “Ao leitor”, p. 11.

desautorizá-la, que pensam a arte como “uma versão menos profunda da verdade”442, a qual caberia apenas à filosofia expor em toda a sua profundidade, por outro lado Kant nos lega o problema de determinar “a função disso que não tem função”.443 Afinal, se a “gente grave”444 passa ao largo da arte quando se esforça por remontar o sentido da obra a uma realidade extra-artística, a “gente frívola” fica igualmente distante da experiência estética quando pensa a obra de arte como uma mercadoria a ser consumida pelo freguês, que, como diz aquele venerando adágio comercial, tem sempre razão, ou seja, não deve ter as suas expectativas (de sentido) contrariadas.

Se Kant está correto quando diz que o prazer oriundo da experiência estética é um prazer desinteressado, esse desinteresse tem menos a ver com o apático diletantismo do consumidor de arte, que não se deixa transformar por aquilo que apenas desfruta, do que com o fato de o mais próprio da arte ser a sua capacidade de resistir sempre aos interesses e propósitos de seus intérpretes. Desse modo, o prazer desinteressado proporcionado pela experiência estética é condicionado pela quebra do interesse que ela propicia, cuja textura é a de um choque, um estranhamento, um “empacamento” diante daquilo que, de início, não se submete ao império do mecanismo de identificação.

A questão é que, ao concordarmos com a afirmação brascubiana de que tudo em si mesmo é obra, de que a reflexividade potencialmente infinita inerente à experiência estética revela o que, nas experiências teórica e prática, é violentamente recalcado pela idéia de leis necessárias e universais anteriores a toda e qualquer experiência possível, a afirmação da autonomia da obra de arte, que de início aparecia como uma resistência aos interesses colonialistas da filosofia metafísica, acaba por conduzir a periferia a colonizar a metrópole. Em sua recusa da vigência irrestrita do princípio de identidade que está à base da filosofia sistemática, a arte acaba por trazer à tona o fato de que não é mais possível à própria filosofia ignorar a violência (paranóica) sobre a qual repousa o seu pretenso “impulso desinteressado ao conhecimento”.445

Confrontada pela arte, a filosofia é obrigada a reconhecer que o seu “impulso desinteressado ao conhecimento” é uma construção histórica que serviu sempre à proliferação da violência moralista do império do sentido, que, assim ensina uma obra

442 HEGEL, G. Cursos de Estética I. São Paulo: Edusp, 1999, p. 34. 443 ADORNO, T. Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003, p. 22. 444 MP, “Ao leitor”, p. 11: “Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.” 445 Cf. NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das letras, 1993, p. 9: “O que, em nós, aspira realmente ‘à verdade’? (...) Nós questionamos o valor dessa vontade. Certo, queremos a verdade: mas por que não, de preferência, a inverdade? Ou a incerteza? Ou mesmo a insciência?”

como as Memórias póstumas de Brás Cubas, sucumbirá sempre diante da “mescla de força e juventude”446 da Natureza. Afrontado por essas caricaturas de filósofos que são Brás Cubas e Quincas Borba, o seu duplo447, que fracassam em uma empresa que não é distinta daquela assumida por muitos dos filósofos da tradição, cabe ao pensamento contemporâneo reconhecer que a articulação entre a onipresença do círculo hermenêutico e a ironia instável da linguagem aponta para o caráter trágico da própria realidade, assim convertendo a obra de arte no lugar privilegiado para a participação no acontecimento do real, cuja gratuidade ou horror, aí dependendo apenas da perspectiva do intérprete, é a sua verdade mais superficial e profunda.448

A partir dessas considerações, torna-se claro como o prazer estético gerado por uma obra de arte como as Memórias póstumas de Brás Cubas atua em sentido oposto ao daquele imaginado por Platão449, acostumando tanto o homem comum quanto o filósofo sistemático, inicialmente irmanados na paranóia, a suportarem galhardamente o caráter trágico, insuperavelmente ambíguo, da própria realidade. Um romance como as Memórias póstumas de Brás Cubas, sob essa ótica, traz à luz o parentesco essencial entre ontologia e estética, que, em vez de ser violentamente denegado, deve ser assumido como o ponto de partida indispensável para uma reflexão ontológico-epistemológica sobre as condições para um conhecimento desinteressado em sentido próprio, ou, nos termos de Nietzsche, “para além do bem e do mal”.

A articulação entre ontologia, epistemologia e estética, cuja separação, ausente entre os gregos, é tardia, contém ainda pelo menos mais um item, que, em uma obra como a República de Platão, é inclusive o mais fundamental: a ética. Retomemos a questão anteriormente esboçada: como, a partir de uma leitura das Memórias póstumas de Brás Cubas, é possível dissociar a afirmação da autonomia da obra de arte de sua conversão em simples mercadoria que serve à preservação do status quo? Como compreender, a partir do relato do defunto autor, aquela paradoxal afirmação de

446 MP, VII, p. 24. 447 A relação entre Brás Cubas e Quincas Borba, a filosofia trágica do primeiro e o humanitismo do segundo não pode ser negligenciada, na medida em que o filósofo que acaba por sucumbir à própria loucura é o duplo de Brás e de sua paranóia, ainda que na leitura mais superficial da obra apareça como a imagem dos filósofos da tradição, que Brás Cubas desprezaria justamente por construírem um mundo fechado, uma totalidade de sentido onde esta seria pura e simplesmente impossível. Como mostramos, porém, o esforço de Brás é construir uma totalidade de não sentido que, ao fim e ao cabo, é tão delirante quanto a de seu amigo. 448 Ver o filme Apocalypse now (USA, 1979), de Francis Ford Coppola, em que o Coronel Kurz, vivido por Marlon Brando, homem que conseguiu habitar o “coração das trevas”, título da obra de Joseph Conrad na qual o filme é baseado, afirma o seguinte: “É preciso que nos tornemos íntimos do horror. Do contrário, ele é um inimigo a ser temido.” 449 Ver a introdução deste trabalho, especialmente as pp. 4 -6.

Adorno, segundo a qual “o protesto, mesmo que mudo e reificado, é a função disso que

não tem função”450, isto é, da obra de arte?

O encaminhamento dessa questão talvez possa ser iluminado por uma passagem

de Brecht, cujas reflexões sobre a necessidade do “efeito de distanciamento” no teatro

podem ser lidas como uma fecunda ampliação do efeito das parábases constantemente

empregadas por Machado de Assis nas Memórias póstumas. Escreve o dramaturgo

alemão acerca da relação entre o verdadeiro entretenimento, isto é, a arte, e o falso:

(..) ao criticarmos o teatro adverso como um espetáculo meramente culinário, damos talvez a impressão de que o nosso é inimigo de todo prazer, como se não pudéssemos conceber o processo de aprendizado a que nos dedicamos senão como uma fonte de desprazer. Muitas vezes enfraquecemos nossas próprias posições para combater nosso adversário e, para obtermos vantagens imediatas, privamos nossa causa de suas dimensões mais amplas e mais válidas. Exclusivamente voltada para a luta, nossa causa pode talvez vencer, mas não pode substituir a que foi vencida. No entanto, o processo de conhecimento de que falamos é ele próprio agradável. O fato de que o homem pode ser conhecido de determinado modo engendra um sentimento de triunfo, e também o fato de que ele não pode ser conhecido inteiramente, nem definitivamente, mas é algo que não é facilmente esgotável, e contém em si muitas possibilidades (daí sua capacidade de desenvolvimento), é um conhecimento agradável. O fato de que ele é modificável por seu ambiente e de que pode modificar esse ambiente, isto é, agir sobre ele, gerando conseqüências – tudo isso provoca um sentimento de prazer. O mesmo não ocorre quando o homem é visto como algo de mecânico, substituível, incapaz de resistência, o que hoje acontece devido a certas condições sociais. O assombro, que devemos incluir na teoria aristotélica dos efeitos da tragédia, deve ser visto como uma capacidade que pode ser aprendida.451

Desconsideradas as diferenças terminológicas entre Brecht e Kant, por exemplo,

que não entendem os conceitos de “conhecimento” e de “agradável” da mesma forma, o

que essa bela passagem do dramaturgo alemão dá a entender é que a arte, sem perder a

sua capacidade de gerar prazer, ou melhor, exatamente por causa de sua capacidade de

entreter no sentido que a palavra entretenimento adquiriu ao longo deste trabalho, está

“exclusivamente voltada para a luta”. Essa luta, ao contrário do que uma leitura

preconceituosa do fragmento acima daria a entender – uma leitura por exemplo baseada

na informação de que Brecht era comunista –, não implica qualquer transmissão de uma

doutrina através da arte, como se esta fosse apenas um instrumento transparente para a

veiculação de uma mensagem ideológica qualquer. Implica, ao contrário, justamente a

quebra da naturalidade da obra de arte, a qual paradoxalmente constitui o que nela há de

450 ADORNO, T. Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003, p. 22. 451 BRECHT, B. apud BENJAMIN, W. “Que é o teatro épico: um estudo sobre Brecht”. In: Obras escolhidas (vol. 1). São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 89.

mais artificial, na medida em que encobre os pressupostos sobre os quais assenta e o próprio processo criativo. Ao propor uma resistência à arte como entretenimento em sentido vulgar, ao que ele chama de “espetáculo meramente culinário”, o qual se baseia nos mecanismos infantis de projeção e identificação, que, ao levarem a platéia a uma identificação excessiva com os personagens, inviabiliza a distância necessária à reflexão e à crítica, Brecht não está negando a necessidade de algum nível de empatia entre personagens e espectadores. Justamente porque pressupõe a tendência à identificação como dada, e é capaz de entrever a naturalização ideológica dos mecanismo sociais que, quando permanece invisível detrás das identificações, converte o homem em “algo de mecânico, substituível, incapaz de resistência”, Brecht aposta que o “assombro (...) deve ser visto como uma capacidade que pode ser aprendida.”

Aprender o assombro, se nos é permitido retomar os termos deste trabalho, é aprender a suportar que nenhuma identificação, nenhuma tentativa de atribuição de um sentido familiar previamente dado é capaz de eliminar a alteridade radical que constitui

o imo da obra de arte, e ao qual ela, em certo sentido, apenas serve de moldura. Isso significa que, em Machado como em Brecht, a autonomia da obra de arte depende de todas as tentativas de colonizá-la heteronomamente, de conferir alguma transitividade à sua radical intransitividade – o fato mais superficial de que, em última instância, só se pode dizer que a obra de arte é –, mas depende, igualmente, de que o intérprete tenha sido educado para suportar a participação nessa experiência sempre assombrosa que é viajar para além dos limites do previamente conhecido, familiar, dado.

A função da experiência estética, portanto, é a função de, acostumando o homem a um encontro prazeroso com o que não tem função, com o que não se deixa instrumentalizar, com o inteiramente outro, servir de ponto de partida para que o encontro com o outro não precise ser necessariamente traumático, assim ou bem gerando a necessidade de evitá-lo, como o faz Brás Cubas, ou bem a necessidade de eliminá-lo, como fizeram os nazistas.

Exatamente por preservar a sua autonomia, a leitura aqui proposta de uma obra de arte como as Memórias póstumas de Brás Cubas garante à estética a possibilidade de reivindicar uma interessante soberania sobre a ontologia, a epistemologia, a ética e a política. Ela permite, em última instância, que nos seja dado cultivar um pensamento que, transcendendo a tradicional divisão metafísica das disciplinas filosóficas e a especialização acadêmica, seja eficiente na luta pela realização do ideal supremo da educação: “evitar que Auschwitz se repita”.452

452 ADORNO, T. “Educação após Auschwitz”. In: Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 119. Cumpre ressaltar que, em tempos de paranóia anti-terrorista (isto é, anti-alteridade) como o nosso, a experiência da autonomia da obra de arte torna-se imprescindível.

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