Florbela Espanca - Doce Milagre





Florbela Espanca - Doce Milagre


O dia chora. Agonizo

Com ele meu doce amor.

Nem a sombra dum sorriso,

Na Natureza diviso,

A dar-lhe vida e frescor!


A triste bruma, pesada,

Parece, detrás da serra

Fina renda, esfarrapada,

De Malines, desdobrada

Em mil voltas pela terra!


(O dia parece um réu.

Bate a chuva nas vidraças.)


As avezitas, coitadas,

'Squeceram hoje o cantar.

As flores pendem, fanadas

Nas finas hastes, cansadas

De tanto e tanto chorar...


O dia parece um réu.

Bate a chuva nas vidraças.

É tudo um imenso véu.

Nem a terra nem o céu

Se distingue. Mas tu passas...


E o sol doirado aparece.

O dia é uma gargalhada.

A Natureza endoidece

A cantar. Tudo enternece

A minh'alma angustiada!


Rasgam-se todos os véus

As flores abrem, sorrindo.

Pois se eu vejo os olhos teus

A fitarem-se nos meus,

Não há de tudo ser lindo?!


Se eles são prodigiosos

Esses teus olhos suaves!

Basta fitá-los, mimosos,

Em dias assim chuvosos,

Para ouvir cantar as aves!


A Natureza, zangada,

Não quer os dias risonhos?...

Tu passas... e uma alvorada

Pra mim abre perfumada,

Enche-me o peito de sonhos!


Florbela Espanca (1894-1930)

foi uma poetisa portuguesa.