Augusto dos Anjos - 036 - Gemidos de arte





Augusto dos Anjos - 036 - Gemidos de arte


I

Esta desilusão que me acabrunha

É mais traidora do que o foi Pilatos!...

Por causa disto, eu vivo pelos matos,

Magro, roendo a substância córnea da unha.

Tenho estremecimentos indecisos

E sinto, haurindo o tépido ar sereno,

O mesmo assombro que sentiu Parfeno

Quando arrancou os olhos de Dionisos!


Em giro e em redemoinho em mim caminham

Ríspidas mágoas estranguladoras,

Tais quais, nos fortes fulcros, as tesouras

Brônzeas, também giram e redemoinham.

Os pães — filhos legítimos dos trigos —

Nutrem a geração do Ódio e da Guerra....

Os cachorros anônimos da terra

São talvez os meus únicos amigos!


Ah! Por que desgraçada contingência

À híspida aresta sáxea áspera e abrupta

Da rocha brava, numa ininterrupta

Adesão, não prendi minha existência?!

Por que Jeová, maior do que Laplace,

Não fez cair o túmulo de Plínio

Por sobre todo o meu raciocínio

Para que eu nunca mais raciocinasse?!


Pois minha Mãe tão cheia assim daqueles

Carinhos, com que guarda meus sapatos,

Por que me deu consciência dos meus atos

Para eu me arrepender de todos eles?!

Quisera, antes, mordendo glabros talos,

Nabucodonosor ser no Pau d’Arco,

Beber a acre e estagnada água do charco,

Dormir na manjedoura com os cavalos!


Mas a carne é que é humana! A alma é divina.

Dorme num leito de feridas, goza

O lodo, apalpa a úlcera cancerosa,

Beija a peçonha, e não se contamina!

Ser homem! Escapar de ser aborto!

Sair de um ventre inchado que se anoja,

Comprar vestidos pretos numa loja

E andar de luto pelo pai que é morto!


E por trezentos e sessenta dias

Trabalhar e comer! Martírios juntos!

Alimentar-se dos irmãos defuntos,

Chupar os ossos das alimarias!

Barulho de mandíbulas e abdomens!

E vem-me com um desprezo por tudo isto

Uma vontade absurda de ser Cristo

Para sacrificar-me pelos homens!


Soberano desejo! Soberana

Ambição de construir para o homem uma

Região, onde não cuspa língua alguma

O óleo rançoso da saliva humana!

Uma região sem nódoas e sem lixos,

Subtraída à hediondez de ínfimo casco,

Onde a forca feroz coma o carrasco

E o olho do estuprador se encha de bichos!


Outras constelações e outros espaços

Em que, no agudo grau da última crise,

O braço do ladrão se paralise

E a mão da meretriz caia aos pedaços!


II


O sol agora é de um fulgor compacto,

E eu vou andando, cheio de chamusco,

Com a flexibilidade de um molusco,

Úmido, pegajoso e untuoso ao tato!

Reúnam-se em rebelião ardente e acesa

Todas as minhas forças emotivas

E armem ciladas como cobras vivas

Para despedaçar minha tristeza!


O sol de cima espiando a flora moça

Arda, fustigue, queime, corte, morda!...

Deleito a vista na verdura gorda

Que nas hastes delgadas se balouça!

Avisto o vulto das sombrias granjas

Perdidas no alto...Nos terrenos baixos,

Das laranjeiras eu admiro os cachos

E a ampla circunferência das laranjas.


Ladra furiosa a tribo dos podengos.

Olhando para as pútridas charnecas

Grita o exército avulso das marrecas

Na úmida copa dos bambus verdoengos.

Um pássaro alvo artífice da teia

De um ninho, salta, no árdego trabalho,

De árvore em árvore e de galho em galho,

Com a rapidez duma semicolcheia.


Em grandes semicírculos aduncos,

Entrançados, pelo ar, largando pelos,

Voam à semelhança de cabelos

Os chicotes finíssimos dos juncos.

Os ventos vagabundos batem, bolem

Nas árvores. O ar cheira. A terra cheira...

E a alma dos vegetais rebenta inteira

De todos os corpúsculos do pólen.


A câmara nupcial de cada ovário

Se abre. No chão coleia a lagartixa.

Por toda a parte a seiva bruta esguicha

Num extravasamento involuntário.

Eu, depois de morrer, depois de tanta

Tristeza, quero, em vez do nome – Augusto,

Possuir aí o nome dum arbusto

Qualquer ou de qualquer obscura planta!


III


Pelo acidentalíssimo caminho

Faísca o sol. Nédios, batendo a cauda,

Urram os bois. O céu lembra uma lauda

Do mais incorruptível pergaminho.

Uma atmosfera má de incômoda hulha

Abafa o ambiente. O aziago ar morto a morte

Fede. O ardente calor da areia forte

Racha-me os pés como se fosse agulha.


Não sei que subterrânea e atra voz rouca,

Por saibros e por cem côncavos vales,

Como pela avenida das Mappales,

Me arrasta à casa do finado Tôca!*

Todas as tardes a esta casa venho.

Aqui, outrora, sem conchego nobre,

Viveu, sentiu e amou este homem pobre

Que carregava canas para o engenho!


Nos outros tempos e nas outras eras,

Quantas flores! Agora, em vez de flores,

Os musgos, como exóticos pintores,

Pintam caretas verdes nas taperas.

Na bruta dispersão de vítreos cacos,

À dura luz do sol resplandecente,

Trôpega e antiga, uma parede doente

Mostra a cara medonha dos buracos.


O cupim negro broca o âmago fino

Do teto. E traça trombas de elefantes

Com as circunvoluções extravagantes

Do seu complicadíssimo intestino.

O lodo obscuro trepa-se nas portas.

Amontoadas em grossos feixes rijos,

As lagartixas dos esconderijos

Estão olhando aquelas coisas mortas!


Fico a pensar no Espírito disperso

Que, unindo a pedra ao gneiss e a árvore à criança,

Como um anel enorme de aliança,

Une todas as coisas do Universo!

E assim pensando, com a cabeça em brasas

Ante a fatalidade que me oprime,

Julgo ver este Espírito sublime,

Chamando-me do sol com as suas asas!


Gosto do sol ignívomo e iracundo

Como o reptil gosta quando se molha

E na atra escuridão dos ares, olha

Melancolicamente para o mundo!

Essa alegria imaterializada,

Que por vezes me absorve, é o óbolo obscuro,*

É o pedaço já podre de pão duro

Que o miserável recebeu na estrada!

Não são os cinco mil milhões de francos


Que a Alemanha pediu a Jules Favre...

É o dinheiro coberto de azinhavre

Que o escravo ganha, trabalhando aos brancos!

Seja este sol meu último consolo;

E o espírito infeliz que em mim se encarna

Se alegre ao sol, como quem raspa a sarna,

Só, com a misericórdia de um tijolo!...

Tudo enfim a mesma órbita percorre


E as bocas vão beber o mesmo leite...

A lamparina quando falta o azeite

Morre, da mesma forma que o homem morre.

Súbito, arrebentando a horrenda calma,

Grito, e se grito é para que meu grito

Seja a revelação deste Infinito

Que eu trago encarcerado na minh’alma!

Sol brasileiro! Queima-me os destroços!


Quero assistir, aqui, sem pai que me ame,

De pé, à luz da consciência infame,

À carbonização dos próprios ossos!

Pau d‘Arco, 4-V-1907


Augusto dos ANJOS (1884 - 1914) - Eu e Outras Poesias.


Augusto dos Anjos é um dos mais originais poetas brasileiros, e também um dos mais populares. Sua obra consiste, porém, em apenas um livro. Eu foi publicado ainda em vida do autor; outros poemas, publicados em periódicos ou inéditos, foram coligidos após sua morte e acrescentados ao volume organizado pelo autor, renomeado então Eu e Outras Poesias . Aclamada pelo público e pela crítica, sua obra foi repudiada por muitos em sua época, e ainda causa estranheza, pela mistura de vocabulário coloquial e científico, pelos temas exacerbadamente macabros e pessimistas, pelo exagero sistemáticos na linguagem e no tratamento dos temas. Não obstante as controvérsias que cercam sua obra, muitos de seus versos caíram no uso popular, tais como um urubu pousou em minha sorte , a mão que afaga é a mesma que apedreja e outros.




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